A novela e o cabelo black power: quando o racismo velado vem à tona

Deu polêmica estes dias uma ordem interna do autor de uma novela da Globo, Walcyr Carrasco, em que ele pedia para mudarem o visual do cabelo black power de um menino negro, que na novela é adotado por um casal gay de classe alta.

Teria dito, para justificar seu pedido: “Tenho ouvido críticas pesadas ao cabelo dele. Quero um personagem bem aceito”.

É óbvio, em defesa desse autor, que a "nota" que saiu no Globo, sobre uma ordem interna de trabalho, foi motivada por má fé. Ou quem vazou a nota, ou o jornal que a conseguiu, evidentemente quis prejudicá-lo. 

Mas, uma vez o mal feito, não há como não entrar na discussão. No caso, me sinto motivado a isso, por razões pessoais. Queira ele ou não, novela é uma coisa pública, que depende do público (aliás, é o que motiva seu pedido de mudança) e, pior, que vem moldando há décadas no Brasil o comportamento social de grande contingente de pessoas, pelos valores que ela, a novela, deseja.

Devem ser incontáveis os artigos, trabalhos, teses, que estudam como as novelas apresentam ao Brasil, de vilarejos rurais em nosso sertões pobres às modernas capitais, um universo cultural, um padrão de vida e de comportamento social de perfil branco, rico e elitizado. Queira-se ou não, é esse padrão, em que prevalecem geralmente valores fúteis e consumistas, problemas sentimentais ridículos para quem tem de se preocupar  com a falta de emprego, de comida, a violência doméstica, que serve de modelo e de referência para milhões de brasileiros.

Claro que a novela pode também ser vista como uma ficção, uma espécie de teatro de variedades entregue em casa diariamente, para aliviar o stress da vida real com historietas que alimentam as conversas no trabalho, no salão de beleza, e assim por diante.

Com o tempo e a democratização, algumas vezes as novelas passaram a ser tratadas como grandes veículos de avanço do país rumo a valores mais democráticos e justos: negros começaram a ter o direito de serem como brancos e ricos nas personagens das tramas, beijos gays apareceram, corpos nus ganharam um foco artístico. A novela deixava para trás o fardo de ter sido o "pão e circo" da ditadura, com todas suas censuras e limitações, e ganhava roupagem transgressora e "política". Seus artistas adquiriram status - e comportamento - hollywoodianos na provinciana dimensão tupiniquim. No fundo, as novelas se outorgavam o feito de determinar os "avanços" que a nossa sociedade poderia dar em função da cabeça de seus autores ou da liberalidade dos donos de televisões.

As jornadas de junho começaram enfim a mostrar (ou a relembrar aos que viveram antes de 64) como se dão os verdadeiros avanços democráticos em uma sociedade: por saltos imprevistos e surpreendentes de gerações que vão às ruas, e que nenhum folhetim televisivo seria capaz de insuflar.

Mas voltemos ao episódio do Walcyr Carrasco. Pelas fotos que vi (está na abertura deste post), o lindo menino, Jayminho é seu nome, tem uma belíssima cabeleira Black Power daquelas muito estilosas.

Em sua defesa contra a reação de blogueiros e militantes de toda ordem que se indignaram com o viés racista da ordem interna que havia dado, o autor se defendeu da seguinte forma (clique aqui e aqui para ara ler as matérias) . Primeiro, relembrou justamente ter sido ele um dos autores "transgressores" de novelas "democratizantes": “Só quero lembrar que eu escrevi “Xica da Silva”, primeira novela com protagonista negra no Brasil. Isso sim é lutar contra o preconceito”.

E em seguida, se explicou: “Mas a verdade é essa: só pedi para mudar o visual de Jayminho porque ele foi adotado por alguém de dinheiro. É o que aconteceria”.

Acredito sinceramente que esse Walcyr Carrasco tenha orgulho de absoluta boa fé e acredite em seu papel educativo na história da teledramaturgia brasileira. E não se pode negar que, mesmo com os vieses acima colocados, escrever uma novela pela primeira vez no país com uma protagonista negra é um ato bastante nobre,  assim como tematizar a adoção por um casal gay. Também acredito que não tenha dado a ordem de cortar o cabelo por ser, ele, racista e achar o black power feio, senão não o teria colocado até agora. Ele, profissionalmente, está respondendo à lógica comercial da novela. Teve "pesadas críticas" por parte da audiência, e sua novela sobrevive dessa audiência. Então, mudemos.

Certamente, é aí que mora o problema: "transformar a sociedade" com os instrumentos da dominação tem seus custos. Eu mesmo já me deparei muitas vezes, ao ir a algum programa em grandes canais da mídia, com a equação  "contribuir para o poder da mídia dominante com minha participação X conseguir falar alguma coisa transformadora para um universo de ouvintes inimaginável por outros meios", e em geral acabo achando que a segunda opção vale a pena, mantida uma linha de corte quanto ao nível de superficialidade do programa em questão.

No fundo, essa é a questão frente à qual esse autor parece se deparar: "utilizo a novela como meio de transformação crítica da nossa sociedade mesmo sabendo das limitações inerentes ao meio de comunicação escolhido para fazer isso?" (se é que essa é verdadeiramente sua principal preocupação).

No caso da novela, o custo é evidente: ela deve se dobrar à audiência. E a audiência do senso comum noveleiro é o retrato dos setores mais medíocres e retrógradas da nossa sociedade. Os que não só veem novela como ainda se dão ao trabalho de comentá-las, interpelar atores na rua venerando-os ou confundindo-os com seus personagens, escrever carta aos autores, comprar revistas para saber dos bastidores. Eles que alimentam a máquina comercial que é uma novela, e que não podem, de maneira alguma, ser desagradados.

E eles teceram "pesadas críticas" ao cabelo do menino.  Traduzindo: há de se mudar a novela para não perder audiência.

É claro que a reação nos comentários dos blogs à reação dos sempre "chatos" patrulheiros antirracistas, é a de que a questão nada tem a ver com a cor do menino, mas sim com o seu cabelo, que está "feio". Poderia ele ser loiro de olhos azuis, reclamariam do mesmo jeito. Não é racismo, apenas questão de gosto.

O professor da USP Kabenguele Munanga trabalha com maestria as características do nosso "racismo à brasileira", ou o preconceito no país da cordialidade: existe realmente um racismo no Brasil, diferente também do racismo praticado na África do Sul durante o regime do apartheid...porque nosso racismo é, utilizando uma palavra bem conhecida, sutil. Ele é velado. Pelo fato de ser sutil e velado isso não quer dizer que faça menos vítimas do que aquele que é aberto” [1].

Só sabem disso ou sentem de fato isso os negros, ou em alguma medida, os que com eles convivem verdadeiramente. Os outros, tergiversam. É esse racismo existente porém não confesso, camuflado em uma simples avaliação de "beleza do cabelo" (seja ele de qualquer cor), que se manifesta na reclamação dos telespectadores incomodados. A turma do "deixa pra lá" vai dizer que não há nada de anormal. Faço então um desafio ao Wacyr Carrasco: coloque na sua novela um garoto branco, de olhos azuis e traços de Brad Pitt, de cabelão rasta cheio de dreads, e vejamos se haverá as mesmas reações.

A questão que se coloca é: por que o cabelo black power do menino incomoda (não o autor, mas os telespectadores que teceram "pesadas críticas")? Porque ele afirma demasiadamente a identidade negra. E isso, no Brasil, ainda não é aceito. Mesmo que de forma sutil. Que se pegue uma criança negra para fazer o papel de um menino pobre de um abrigo para adoção é aceitável, porque faz sentido no Brasil e respeita a ordem social das coisas. Que esse menino seja adotado por um gay é aceito, pois o "gesto bonito" com que se confunde o ato da adoção (que é tão somente um gesto de paternidade) reveste de ternura um personagem gay, em momento em que ganha espaço, felizmente, a luta contra a homofobia. O cabelo black power, porém, ultrapassa os limites, mesmo que talvez até subliminarmente, os incomodados nem percebendo que é isso de fato o que os incomoda.

Se engana o Walcyr Carrasco, entretanto, em um ponto: "só pedi para mudar o visual de Jayminho porque ele foi adotado por alguém de dinheiro. É o que aconteceria”.

Na verdade, me parece que, talvez justamente pelo efeito das novelas, o black power da identidade negra ainda não se difundiu pela maioria não-branca dos brasileiros pobres. A chapinha e o alisamento ainda são comuns, como para fugir de uma condição que, no Brasil, é a do dominado. As expressões "mais moreno" ou "menos moreno", muito comuns nas periferias, representam a compreensível dificuldade de se afirmar, de fato, como negro.

O Black Power é, na verdade, usado por uma elite. É um penteado caro e trabalhoso de se manter, que demanda tempo e cuidados. É usado orgulhosamente pelas lideranças que estão à frente da luta antirracista no Brasil. E pelos filhos negros de pais negros de classe média e média alta. E pelos filhos negros adotados "por gente de dinheiro", negros ou brancos. É só o Walcyr Carrasco ir nas praças dos bairros antenados e das manifestações de vanguarda que ele verá. Nos abrigos, de onde Jayminho vem, o black power é pouco comum, pois não é exatamente prático em um contexto em que há de se cuidar de muitas crianças. Portanto, se quiser ser fiel à realidade, é justamente agora que ele foi adotado por "gente de dinheiro" que, pela ironia dos destinos que as mazelas do nosso país nos oferecem, o menino poderá talvez ter um cabelo que expresse a beleza da sua raça. É infeliz e contraditório, mas é assim.

Falo isso com conhecimento de causa. E já ouvi, sobre minha filha que tem o cabelo mais black power que sua idade lhe permite, coisas que um branco, mesmo com o maior espírito crítico quanto à sociedade em que vive, jamais imaginaria ser possível ouvir.

Por isso, nesse caso e não em outros (não falo aqui da Xica da Silva nem de qualquer outra situação) , aceitar as "pesadas críticas" e fugir da realidade mudando o cabelo do menino é, sim, bater mais um preguinho sutil da estrutura do nosso "racismo à brasileira".

 

 

 

 

 

[1] MUNANGA, Kabengele. Nosso racismo é um crime perfeito. Entrevista a Camila Souza Ramos e Glauco Faria.Revista Fórum, nº77, ano 8, São Paulo, agosto de 2008.