USP cai em ranking mundial: rugas de preocupação

Hoje a mídia nos brindou com mais uma dessas notícias ralas que correm as redações e são reproduzidas até o cansaço, sem nenhum conteúdo crítico ou alguma reflexão mais aprofundada. Como sempre, repetem-se roboticamente as chamadas genéricas produzidas pelas agências de notícias.

A manchete é que a USP e a Unicamp caíram no "principal" ranking internacional das universidades, o do Times Higer Education (embora seja apresentado como o "mais importante", nenhum jornal sequer apresenta quem faz o ranking, de que país ele vem, qual a instituição e sua credibilidade). A USP era a 158ª, e agora está entre o 200º e 250º lugar. Crise geral. Hoje almoçando em uma praça de alimentação tive a medida do impacto gerado pela mídia. Duas senhoras conversavam: "- você viu, a USP em greve, os estudantes querendo eleger o Reitor, e enquanto isso ela d-e-s-p-e-n-c-o-u no ranking. - Pois é, isso é Brasil. Também você quer o que: o PT põe no ministério da educação um Haddad ou um Marcadante, dá nisso. Enquanto isso gente que dá aula a décadas nem é ouvido".

Claro que gostaria de ter me metido na conversa, para dizer primeiramente que a USP e Unicamp são estaduais, e que a rigor o Haddad e o Mercadante não eram diretamente responsáveis pela queda. Poderia dizer também que o Haddad é professor da USP, do departamento em que estudava em 1995, ou seja j´há 18 anos. Não são os 30 que a senhora queria, mas convenhamos que não está mal. Enfim, não disse nada obviamente, mas sai impressionado como se constrói o senso comum a partir das manchetes de jornais. 

Essa história de ranking de universidades é tremendamente complexa, para não dizer perversa. Todo professor sabe, aliás, que avaliações em si são uma coisa complicada: quem avalia o que? com que critérios? o que se deve considerar importante e digno de uma nota alta em uma avaliação? É como avaliar a inteligência. Sabe-se hoje o quanto os testes ditos "objetivos" como o de QI são insuficientes para medir todas as facetas e a diversidade do que poderíamos chamar de "inteligência" de uma pessoa. Por isso surgiram termos como a "inteligência emocional", "capital social individual", "capacidade de socialização", que ajudam a diversificar os parâmetros usados para "avaliar" a inteligência de alguém.

Como então avaliar uma universidade inteira? A resposta é tão complexa quanto existem rankings diferentes para a questão. Há poucos meses a mídia veiculou com certo destaque o fato da mesma USP estar entre as 100 "melhores" do mundo em outros rankings. Um era da China, se bem me lembro, outro avaliava em função da "presença" da universidade na internet, e assim vai. Então, qual é o que "vale"?

O meio mais comum de avaliar uma universidade é por sua "produção". É assim inclusive que se avaliam os próprios professores e pesquisadores das universidades brasileiras, que pontuam sua produção a medida que a relacionam em uma base geral de currículos, chamada Lattes. Uma maneira razoável, mas longe de ser perfeita. Não é tão incomum no meio acadêmico vermos professores e pesquisadores "latteiros", que se especializam em somar pontos de atividades realizadas (artigos publicados, presença em congressos, pesquisa realizadas, etc.) sem que estas sejam, obrigatoriamente, de conteúdo verdadeiramente relevante. O "produzir por produzir" sem que haja qualidade é possível, e por isso também a avaliação da "produção" de docentes e pesquisadores deve ser vista com algum cuidado.

Ou seja, o que fica muito claro nesses tipos de avaliação é que se avalia o que se quer, da forma que se quer. Ou, em outras palavras, a avaliação no fundo serve para mostrar se uma instituição está ou não coerente com UM determinado perfil, aquele definido pelo avaliador. E se eu não concordar com esse perfil? E seu eu não achar que esse perfil seja indicador de qualidade? Posso por exemplo fazer uma avaliação se uma escola infantil "garante critérios de higiene e limpeza adequados". Para isso, vou montar um ranking que considere a limpeza das salas, o brilho dos pisos, o número de lavatórios, a quantidade de faxineiros, e assim por diante. A "melhor" escola nesse quesito certamente será a mais limpa. Disso não há dúvidas. A questão é saber se esse critério é ou não importante para se avaliar uma escola. E se, por exemplo, eu achar que é mais saudável para uma criança ser feliz e se desenvolver ela voltar enlameada da escola, um lugar em que ela deve poder sujar e se sujar à vontade? Nesse caso, aquele ranking já não me serve para nada.

Neste caso, o tal ranking  "adota 13 critérios para examinar as universidades, divididos em cinco categorias: ensino (30%), pesquisa (30%), citações (32,5%), parcerias com indústrias (2,5%) e diversidade internacional (5%)". Ou seja, as "melhores" universidades serão aquelas que responderam melhor a esses critérios. Posso, porém, perguntar: em um país como o Brasil, que ainda tem milhões de pessoas vivendo na absoluta pobreza, e cerca de 40% da população urbana morando na informalidade e na precariedade, será que um critério "parcerias com órgãos governamentais responsáveis por políticas públicas" não deveria constar da avaliação de uma universidade, tanto quanto, ou mais até, do que o da parceria com indústrias?

No ranking que hoje se divulgou, parece que a USP pecou justamente na "diversidade internacional". Seus professores não publicam em inglês o suficiente (para os critérios de quem?), não dão aulas em inglês, e a universidade não tem estrangeiros atuando na docência. Isso pode ser até verdade. Mas por que, por exemplo, dar ênfase ao inglês, mais do que ao chinês?  Qual dessas línguas é hoje mais promissora para a inserção econômica futura? E o francês, ou o alemão, tão importantes na filosofia? E se eu achar que é mais importante estabelecer vínculos sul-sul e com a América Latina do que com os países anglófonos, e achar portanto que é sinal de qualidade uma universidade promover a integração linguística em árabe, chinês, espanhol? Nesse caso, evidentemente, a mesma estaria fora desse ranking.

A parametrização internacional de universidades pode ser boa em alguns aspectos, mas é em geral tremendamente imprecisa e direcionada. Na França, por exemplo, a mais prestigiosa das faculdades, a Ecole Normale Superieure (ENS),  é tão, mas tão prestigiosa entre os franceses, que nem diploma final dá. Uma pessoa apenas se apresenta como "ex-aluno da ENS" e isso lhe basta para abrir todas as portas. Os doutorandos da ENS fazem suas teses em qualquer faculdade, à sua escolha. Assim, quando surgiram os rankings internacionais que avaliam por número de diplomas e por doutorados oferecido, a ENS simplesmente não apareceu! Pelos rankings, a mais prestigiada escola superior francesa se compara a qualquer faculdade de fundo de quintal.

A maioria dos rankings divulgados são eurocentristas ou americanistas. A dificuldade de "furar" os filtros impostos pelas "grandes" e ricas universidades americanas e europeias, para publicar ou mesmo se fazer ouvir, é enorme. Assim, o critério "citações" é determinado em muito pela capacidade de pesquisadores e professores em colocar um texto nas revistas internacionais. Mas quem disse que estas abrem assim tanto espaço, em comparação com o que elas abrem para as universidades americanas ou europeias, líderes dos mesmos rankings? Na minha área, por exemplo, a questão das favelas não é, definitivamente, assunto que interesse muito por lá. Mas interessa muito a nós, que temos que enfrentar e propor soluções para essa questão.

Não estou querendo aqui "defender" a USP perante qualquer ranking ou a mídia. Obviamente que a USP tem problemas, como qualquer outra universidade. A questão é que os rankings apontam para um questão equivocada.

O problema da universidade brasileira não deve ser medido por um viés elitista, do quanto suas melhores universidades (unicamente elas) estão ou não conseguindo "aparecer" para o mundo. No geral, USP e Unicamp estão muito bem, obrigado. Seguem liderando, e de longe, a produção acadêmica do país, ao lado de alguns campi das universidades federais. Não importa o que digam rankings de qualquer espécie. Nem o que achem as senhoras da alta classe média almoçando em shoppings.

A questão muito mais premente é a necessária ampliação do acesso à universidade no país, é a busca de melhor qualidade não em duas ou três instituições da elite do ensino, mas na média geral das universidades,  é a exigência de que universidades com perfil mercantilista se voltem realmente para a produção do conhecimento. Que me desculpem as senhoras lá do começo, indignadas com o "desmoronamento da USP", mas isso é muito mais importante do que tentar saber se estamos inserindo nossas "melhores" universidades em rankings cujos parâmetros sempre serão questionáveis.

E, nesse quesito, o Brasil vem sim melhorando, com uma ampliação sem precedentes, nos últimos dez anos, do número de universidades federais, públicas, gratuitas, e de qualidade. Também avançamos na proposição das cotas para democratizar o acesso á elas. Mas essas coisas os rankings internacionais, infelizmente, não levam em conta. 

 

 

 

http://www.estadao.com.br/noticias/vidae,-usp-cai-em-ranking-mundial-de-universidades,1081254,0.htm