Crônica de uma prisão anunciada não engana o mundo

Enquanto a suprema corte do país (sem maiúsculas) vai caminhando para a decisão de uma prisão há tempos anunciada, vale algumas reflexões sobre a prisão do Lula, pelo enfoque de quem vê o processo do exterior. Estive em janeiro dando aulas na França e na Bélgica, quando ocorreu o julgamento do Lula no TRF 4. Interessante observar as reações por lá. Embora as pessoas sejam em geral conduzidas pelas versões da grande mídia, que se alimenta das agências de informação daqui, todas nas mãos de grupos que tiveram parte ativa no golpe contra Dilma, os franceses e os belgas, habituados a acompanhar a imprensa com um olhar um pouco mais crítico, já começam a desconfiar.

Tudo parece armado demais e, pouco a pouco, um sentimento de desconfiança torna-se quase que geral, pelo menos nos meios universitários em que circulo. Apesar da grande mídia martelar e martelar a imagem de um Lula corrupto e de um PT que “afundou” o Brasil, a memória por lá não se apaga tão rápido e o sucesso estrondoso da economia sob Lula, que foi amplamente festejada na época, alimenta a desconfiança de que há coisas mal explicadas.

A começar pelo afastamento de Dilma. Não é nem sequer necessário entrar no mérito da questão. São aspectos factuais que desmoralizam o impeachment e fazem com que a palavra “golpe jurídico-parlamentar-midiático” seja plenamente compreendida por lá. De fato, parece muito estranho que o “gravíssimo” “crime de responsabilidade” cometido por Dilma, as famosas pedaladas, capaz de tirá-la do poder de tão grave que era (embora realizado constantemente por todos os Estados e Municípios no Brasil e no exterior, inclusive por lá), tenha sido autorizado legalmente poucos meses depois de seu afastamento pelo mesmo Congresso, e que Temer tenha ele mesmo “pedalado” na sequencia, com valores muito superiores aos de Dilma. Quando, ainda  por cima, se inteiram que não pesa sobre a presidente legítima uma única acusação de corrupção, e que deixaram a ela os direitos políticos (quebrando a Constituição) como “prêmio de consolação” pelo golpe deselegante, ai então a coisa toma ares de comédia.

Vem então o caso Lula. Antes mesmo de comentar a questão da corrupção em si, de novo são os procedimentos jurídicos, tão absurdamente tendenciosos, que saltam aos olhos. O fato de Lula estar de longe na liderança das pesquisas, apesar de toda a perseguição, não é considerado lá um fato ameno. A vontade popular, essência da democracia, é mais respeitada.

A surpresa se amplia quando se explica que Lula pôs os pés uma única vez no tal tríplex motivo de julgamento, quando ainda estava em obras, e que ninguém conseguiu comprovar de fato que a propriedade do mesmo estaria em nome dele, sendo claramente propriedade da empreiteira que supostamente o “ofereceu” a Lula. A Prefeitura do Guarujá cobra o IPTU atrasado dessa empresa, a própria justiça do DF colocou o apartamento como garantia em um processo contra essa mesma empreiteira. Naqueles países, em que pese uma degringolada, lá também, de uma justiça “isenta” quando se trata de questões políticas, ainda assim o patamar do “aceitável” nesses desvios de conduta está muito, mas muito acima do nosso. “Nessas condições, sem prova material da propriedade, sem usufruto da mesma, que nunca sequer teve a obra concluída, nunca a justiça aqui poderia abrir um processo”, me disse um jurista francês.

A coisa torna-se mais espantosa quando se explica que a tal acusação partiu apenas de delações, estas feitas por pessoas envolvidas elas mesmas em corrupção, em que a chantagem jurídica – utilizando-se abusivamente da prisão preventiva – foi comprovadamente usada para obter “confissões dirigidas”. A enxurrada de casos de delatores que declararam ter sido “forçados” a incluir Lula em seus depoimentos anularia imediatamente, segundo o mesmo jurista, o processo.

Mas o espanto não cessa aí. Por que as acusações feitas por outro delator contra o próprio juiz do caso (as de Tecla Duran) não levaram à abertura de inquérito? Como o presidente do Tribunal Superior (o TR4) que iria julgar na segunda instância, deu declarações de que o processo “estava muito bem montado” sem ter sequer recebido oficialmente o mesmo pelos trâmites da justiça (fato observado no artigo do NYT, abaixo citado)? Por que esse tribunal de apelação fez esse processo “passar na frente” de outros na fila, gastando três vezes menos tempo que a média para julgar o caso tríplex? Por que nesse julgamento o tribunal superior “corrigiu” a pena de forma tão cirúrgica, aumentando de 9 para 12 anos e 1 mês, de forma a evitar descaradamente que o “crime” prescrevesse?

Tudo isso desmoraliza o processo contra Lula, o torna aos olhos de fora um espetáculo de perseguição jurídica e desacredita – o que é o mais grave – o combate à corrupção no país. Não bastassem essas questões em aberto, sobram algumas mais: como é possível que a justiça tome decisões oportunistas que alteram o entendimento constitucional e jogam no lixo a presunção da inocência, permitindo a prisão em segunda instância, claramente com o único intuito de “pegar” o Lula? A manobra do STF contra Lula é tão descarada que, como bem lembrou uma amiga facebookiana, logo mais, as ADCs (Ações Declaratórias de Constitucionalidade) serão julgadas e provavelmente Rosa Weber votará contra a prisão em segunda instância. Se as ADCs fossem votadas antes do Habeas Corpus de Lula, este sairia livre na espera da última instância. Como Carmen Lúcia colocou antes na pauta, após a votação das ADCs todos os demais políticos ficarão livres na segunda instância. Talvez tenham que soltar Lula. Mas a foto dele algemado terá sido tirada, é o que interessa. Uma sofisticação cirúrgica na perseguição que, como vimos, contou também com estratégica ameaça do exército.

Mas voltemos ao julgamento do Lula. Tira credibilidade internacional também o fato de que casos muito mais graves envolvendo senadores e assessores diretos do Presidente (flagrante de mala com dinheiro, helicóptero de senador apreendido com drogas, etc.) não resultaram em nada. Como aceitar tamanha discrepância no tratamento da justiça, com rigorosíssimo procedimento investigativo para casos pouco relevantes e absoluta impunidade em casos flagrantes muito graves?

Sim, porque mesmo entrando no mérito da dita “corrupção” de Lula, ela não convence mais. Não só porque não se comprovou a propriedade do tal tríplex, mas porque para todos parece absolutamente improvável que acusações envolvendo contratos bilionários com uma estatal de petróleo significassem “pagamentos” tão ridículos quanto um tríplex de menos de 300 m² em uma praia de classe média, quando as maiores fortunas – incluindo-se políticos – do país tratam essas questões a base de mansões e ilhas particulares. Não faz sentido, exceto para o imaginário preconceituoso das elites nacionais, que vêm nisso um caráter “popular” do ex-presidente Lula, que “nem seria capaz” de exigir coisas tão sofisticadas.

A questão é que quando se explica que a operação anticorrupção brasileira pegou casos de grandes empreiteiras e fez “ligações” com os dirigentes políticos (usando-se inclusive do fantasioso conceito de “domínio do fato”), isso inevitavelmente provoca sorrisos de ironia por parte dos interlocutores europeus.  Sim, porque estamos falando, no caso da França, do país da Elf, Alstom, Bouygues e Cia., grandes empreiteiras metidas em escândalos a perder de vista ao longo das últimas décadas. Nada justificável, um horror até, símbolo da perversidade extrema do capitalismo atual, e Sarkozy até foi preso também, ainda bem, mas vamos combinar que o que justifica julgamentos por lá são coisas um tanto mais graves e, sobretudo, com provas. Para se ter uma ideia do que estou falando, por lá a Lafarge, uma das maiores produtoras de cimento do mundo, fechou acordo de corrupção com o Estado Islâmico, nada mais nada menos, para que suas fábricas em territórios sob controle da organização terrorista continuassem funcionando. O escândalo obviamente respingou sobre François Hollande, a responsabilidade do presidente existe e deve ser discutida. Mas o ex-presidente não foi diretamente responsabilizado por isso, pelo menos não em situação de manda-lo prender na segunda instância. Imaginem se fosse o Lula.

Os observadores externos se espantam também com a heterogeneidade da ação judiciária no nosso país. O escândalo mundial em torno de um pequeno apartamento cuja propriedade sequer conseguiu ser formalmente provada, contrasta quase que escandalosamente com a absoluta indiferença da justiça (e da mídia) com uma fazenda inteira de propriedade do ex-Presidente FHC, em Buritis, sabidamente reformada por uma empreiteira, e que recebeu não uma antena de celular (como se “acusa” no caso do sítio que Lula eventualmente frequentava), mas uma pista de pouso capaz de receber Boeings. A mesma empreiteira que, aliás, ganhara concorrência para a ampliação do aeroporto de Brasília e que reformou o Instituto do ex-presidente. Mas, neste caso, é normal o respeito ao ex-presidente. Talvez porque ele seja branco, rico, e da elite. É absolutamente escancarada a forma com que o tratamento dado a Lula é contaminado por enorme carga de preconceito. Uma espécie de punição por ele, torneio mecânico sem formação superior, ter ousado ser presidente (e promovido o maior crescimento nos últimos 30 anos). Isso é imperdoável. Como sempre, pesos e medidas bem diferentes.

O espanto internacional torna-se ainda maior quando se observa alguns traços do julgador inicial do caso, o juiz Moro. Que é casado com dirigente local do PSDB, que manifesta-se publicamente e pejorativamente em redes sociais contra o réu (o chama há anos, como é sabido, de “ninefingers”), que chega a receber graças a manobras “legais” (porque são os juízes que as criam) que criam auxílios de toda sorte, nada menos que 100 mil Reais em alguns meses (algo como 25 mil Euros), muito acima do teto constitucional. O que, obviamente, configura-se como corrupção, já que se trata de desvio “legalizado” de dinheiro público, para “complementar”, com benesses, salários já incrivelmente (e escandalosamente altos).

Sem falar no casuísmo extremo de fazer o STF “interpretar” um texto cristalino da Constituição, o artigo 5º LVII, sobre a presunção da inocência, somente para “agradar” Moro e permitir-lhe por em prática seus métodos de pressão, voltados especificamente a obter privas (sem sucesso, pois não as obteve, contra Lula). E de reforçar essa interpretação no julgamento de hoje, mais casuístico ainda, como já vimos, e criticado por juristas do porte de um José Afonso da Silva (leia aqui).

Tudo isso levou o jornal Le Monde, bastante conservador diga-se, a grafar a manchete “O Brasil é uma sociedade de castas”, em artigo que critica as estranhas manobras judiciais brasileiras, embora não ouse inocentar, mas também não acusar, o ex-presidente (leia aqui). O New York Times, por sua vez, deu espaço para artigo de opinião intitulado “A democracia brasileira à beira do abismo” (leia aqui), onde todo o processo de Lula é questionado. Diz o texto: “talvez mais importante seja o fato de que o Brasil se reconstituiu como uma forma muito limitada de democracia eleitora, na qual um Poder Judiciário politizado pode evitar que um líder político popular postule à presidência. Isso seria uma calamidade para os brasileiros, a América Latina e o mundo”.

O STF iniciou o caminho sem volta ao aceitar presidir a farsa do “impeachment”, dando legitimidade a um processo instaurado por um bandido que controlou o Congresso, votado por loucos cuja maior parte nem sequer votos receberam, oferecendo ao mundo um dos piores espetáculos que o país já ofereceu, e referendado por senadores que abertamente negociaram cargos em troca de seus votos. O STF não falou nada, e a partir daí deu espaço para que, a cada dia desde então, um pedaço da nossa democracia se esfacele. Curioso que um dos gurus da direita liberal mais tosca, o Reinaldo Azevedo, tenha nesse episódio postura corretíssima. Entendeu que ao interpretar texto cristalinamente não-interpretável da Constituição, o STF está afundando a democracia, e que isso é um caminho sem volta.A decisão de hoje, que ainda não saiu neste momento, mas que parece decidida há tempos, só aprofunda a crise do STF e, com ele, da democracia. O que será deste país após a prisão do Lula, com as forças ultradireitistas, preconceituosas, agressivas e intolerantes à solta, a tropa na espreita, e a enorme frustração popular – que não terá como ser indefinidamente escamoteada pelos UOLs e Globos –  pela prisão, zombando-se da constituição e do sentimento de justiça, do candidato líder absoluto das pesquisas? Nem ouso pensar.