Desafios para a construção de uma teoria crítica a partir da periferia

Publicado nos Anais do Colóquio Internacional: os desafios urbanos no Brasil e na África do Sul - Sessão Temática 5, IPUUR/UFRJ, Rio de Janeiro, 2007. Atualizado nesta edição.

As teorias socioeconômicas que sustentam as políticas públicas brasileiras, em qualquer setor da produção capitalista, e portanto também no da produção do espaço, na maioria das vezes reproduzem modelos e metodologias já experimentadas nas economias centrais do sistema. Tal prática têm explicações evidentes, que se situam tanto em dinâmicas exógenas quanto endógenas: de fora, as matrizes que parametrizam nossas políticas são difundidas pelas agências multilaterais, pelos governos dos países centrais em suas parcerias e acordos de cooperação, pelas empresas transnacionais, pela influência do pensamento acadêmico, e traduzem uma dinâmica de dominação e criação de dependência econômica de cunho ideológico, que obviamente serve aos interesses econômicos e políticos dos países centrais. Mais ainda no bojo do atual processo de expansão do capitalismo em crise, que se convencionou chamar de globalização, mas que alguns autores denominam, mais corretamente, de expansão ultraliberal. 

De dentro, a aceitação dessas matrizes se dá pela submissão dependente na política, na economia, na academia, aos ditames das receitas importadas, mesmo que quando aplicadas aqui se tornem ideias “fora do lugar”. As razões para tal submissão podem ser decorrentes de uma muito útil alienação (que se vale também da perpetuação da miséria como fomentadora de massa de manobra), consolidada pela força dos processos de formação de opinião, especialmente com o uso ideológico da mídia, mas também são decorrentes de decisões conscientes dos setores dominantes internos – tanto no interior do Estado quanto no mercado – que historicamente se beneficiam dos pactos realizados com as forças do capitalismo mundial (e agora, “global”), para reforçar sua hegemonia, mesmo que para isso tornem-se agentes essencialmente antinacionais, antidemocráticos e antidesenvolvimentistas (considerando o desenvolvimento como o crescimento com distribuição da renda) (Sampaio Jr. , 2001).

Assim, não há nada de anormal no fato de que as políticas públicas brasileiras sempre tenham exacerbado a estrutura absolutamente desigual da nossa sociedade. O Estado – até recentemente sempre nas mãos dos setores dominantes  – especializou-se em promover ações desestruturadoras que pudessem justamente consolidar aquilo que é a base fundamental da nossa sociedade: o antagonismo de dois grupos, um dominante e minoritário, outro dominado e majoritário, que desde sempre compuseram as relações de forças política e econômica brasileiras. O primeiro, em cada momento da nossa história, sempre que possível com o apoio das forças capitalistas externas, re-impõe reiteradamente suas condições de dominação, baseadas na exploração absoluta do trabalho e no controle do território e da propriedade fundiária. 

Assim se sustentaram cada um dos ciclos da nossa história – excetuados alguns poucos períodos – sobrepostos uns aos outros por “novas” matrizes supostamente “modernas” do ciclo subsequente, mas que nunca superaram (ou nunca quiseram superar) os antagonismos do anterior. Essa matriz da “modernização conservadora”, nos termos de Maria Conceição Tavares, alimenta o “mito do desenvolvimento” e favorece a manutenção de um consenso em torno de políticas excludentes que apenas consolidam a hegemonia interna do grupo dominante. Por isso, o Estado brasileiro, cuja característica patrimonialista imiscui o público e o privado para o favorecimento dos que detêm o poder, é uma máquina azeitada durante séculos não para estruturar, mas sim para desagregar, desarticular o tecido social, desmontar as estruturas eventualmente includentes, e assim fortalecer os mecanismos de poder. É por isso que no Brasil temos, em quase todas nossas cidades e ao longo dos século XX, “não-políticas de transportes”, que favoreceram o transporte individual em detrimento das modalidades mais democráticas do transporte de massa, e que hoje cobra seu preço no novo paradigma da “sustentabilidade”. Temos historicamente uma “não-política habitacional”, que quando produziu habitação o fez por um recorte privatista sem beneficiar efetivamente as classes de renda mais baixa, para a qual restou a solução da autoconstrução, um modelo propício, como lembrou Chico de Oliveira, à manutenção do baixo custo de reprodução da mão-de-obra (Oliveira, 1982). É por isso que a inversão de prioridades tornou-se o padrão da ação pública, sempre excluindo ao invés de ampliar e incluir. Essa foi a base da nossa “industrialização com baixos salários”, que nas cidades se traduziu pela “urbanização com baixos salários” (Maricato, 1996).

Evidentemente, essa lógica alimentou-se permanentemente nas dinâmicas externas, em um movimento simbiótico pelo qual as dinâmicas internas interessam aos setores dominantes da economia mundial. Como se sabe, o Brasil sustentou parte da sua industrialização e do seu crescimento acelerado da década de 60 e 70 na sua capacidade de fornecer mão-de-obra barata, assim como a China hoje sustenta seu significativo crescimento. A manutenção de um modelo econômico interno recordista mundial de concentração da renda, enquanto o PIB alcançava a oitava posição mundial é o retrato mais evidente dessa equação .

As políticas públicas “na contramão” do sentido público  se repetem invariavelmente na área da saúde, da educação e, é claro, na da infraestrutura urbana, que é o investimento social necessário à produção do ambiente construído. Se a diferenciação dos investimentos em infraestrutura está na base da compreensão do conceito de valor de localização como motor da produção da cidade capitalista, onde quer que ela se situe, o fato é que aqui no Brasil essa lógica se exacerba, pela peculiaridade da estrutura socioeconômica brasileira.

O sentido da economia de escala e da permanente agregação do valor está na base da compreensão do modelo do bem-estar social: à economia capitalista que se consolidava, interessava ampliar mercados, agentes econômicos e trocas, sempre pautada pelo conflito de classes e pela dominação capital/trabalho, ainda que amenizados pela mediação estatal. Nesse sentido, uma infraestrutura urbana abrangente e homogênea garante a permanente ampliação da forma-mercadoria, incluindo novos agentes à produção capitalista. A partir da crise de 1930 e reconstrução do pós-guerra, a montagem do sistema do bem-estar social keynesiano, nos EUA e na Europa respectivamente, respondeu à necessidade de aumento generalizado do poder aquisitivo e de ampliação da capacidade de consumo e do mercado, graças aliás ao forte apoio dos EUA, embora tal processo tenha se dado, como se sabe, às custas da internacionalização da divisão do trabalho e da dependência dos países subdesenvolvidos. Por mais que as cidades capitalistas desenvolvidas tenham no período gerado marcada diferenciação espacial, em função da competição própria do capitalismo por localizações, por mais que o mercado imobiliário tenha tido um papel predador na estruturação do espaço, como bem mostrou Topalov, ainda assim a lógica dominante nas sociedades do Estado do Bem-Estar Social era uma lógica inclusiva. Por isso um nível de homogeneização razoável da infraestrutura urbana, embora a lógica da diferenciação continuasse inalterada.

No Brasil, tal lógica econômica não funciona, e por isso torna-se contraditória. Ou melhor, não funcionava, pois na era da globalização as dinâmicas mudaram sensivelmente. Pelas peculiaridades apontadas acima, entre outras, a dinâmica capitalista se inverte na formação brasileira, o que foi amplamente discutido pelos interpretes desse processo. A agregação generalizada não era necessária, pois o capital não dependia dela. O lucro estava em outros mercados, à exceção de um limitado mercado interno, quase residual. Nossa competitividade econômica externa se dava, como mostrou Rui Mauro Marini, pela exploração exacerbada do trabalho (a escravidão duradoura foi um bom exemplo disso). A manutenção de uma economia “entravada” (Deák, 1991) que não se desenvolve plenamente pela própria ação da burguesia (mais propriamente uma elite, que promove na verdade a “contra revolução” burguesa, segundo Florestan Fernandes) e a rigorosa restrição ao acesso à terra (inclusive por meio de entraves jurídicos à profusão) são a marca do subdesenvolvimento. O chamado processo de Globalização trouxe novos elementos a essa análise (Ferreira, 2007), que discutiremos adiante. 

Voltando ao âmbito do espaço urbano, resta que aqui, historicamente, a lógica nunca foi – e continua não sendo, mesmo em tempos de grande “modernização” – a de ampliar a infraestrutura e democratizar as cidades, mas de promover sua concentração, exacerbando as diferenciações de valor e favorecendo uma pequena parcela da sociedade. As “cidades” brasileiras do discurso hegemônico, aquelas que são objeto da ação dos arquitetos, dos planejadores, das leis e, é claro, do mercado formal, não são cidades mas apenas pequenas parcelas delas, aquelas áreas bem estruturadas e formais, enquanto que uma “não-cidade”, excluída, marginalizada, onde o desemprego predomina, esquecida pelo poder público (exceto pela presença policial, para estabelecer permanentemente as divisas desses territórios), recebe geralmente metade ou mais da nossa população urbana.  

Este é o quadro social brasileiro decorrente do subdesenvolvimentismo, já bastante discutido, e que no âmbito urbano, teve sua exacerbação com a industrialização acelerada da segunda metade do século XX. É uma matriz composta ela mesma por uma sobreposição de matrizes supostamente “modernas”, que se implantam, pela imposição política dos grupos dominantes, por sobre as matrizes arcaicas. 

As marcas dessa matriz estrutural são visíveis nas formas de ação do Estado patrimonialista, nas dinâmicas econômicas de exclusão, nas leis que se aplicam para uns e não para outros, na aparente “incompetência” do Estado na condução de políticas “públicas”. O que é geralmente parte da própria lógica da nossa sociedade é tido como incapacidade: políticas “não dão certo”, levando muitos a estudar as razões desses fracassos, quando na verdade o fracasso é a própria comprovação da eficácia do sistema.  “Soluções” apresentadas nas cartilhas das agências multilaterais como modelos de práticas a serem seguidas não dão e nem podem dar certo porque não enfrentam verdadeiramente as causas estruturais dos problemas. Muito se faz, muito se pensa, quando na verdade a quase totalidade desses esforço se volta para problemas que não dizem respeito às causas mais profundas da nossa fratura social. 

No âmbito urbano, grande parte dos pesquisadores, dos legisladores, dos governantes, pensa e reflete problemas que focam apenas parte da cidade como se ela fosse a única, fingindo-se que não se vê que a cidade que precisa ser pensada não é essa. Concursos são lançados, muitas vezes por governos progressistas, invariavelmente para pensar e propor partes da cidade “ideal”, invariavelmente aquela onde a economia funciona e os investimentos são feitos, onde as leis valem, onde há arquitetura, onde há transportes. A necessária inversão absoluta e radical das prioridades, a mudança corajosa dos paradigmas que ditam a ordem dos investimentos públicos, a priorização intransigente das necessidades da cidade informal, dos excluídos, esta não é feita e, pior, quando é sugerida tal postura é automaticamente tolhida, censurada e marginalizada. A simples sugestão de uma mudança mais radical dos parâmetros da ação do Estado e dos investimentos públicos, para que estes se tornem mais “públicos” em um país em que isso significa simplesmente dar vez aos pobres, é automaticamente vista e rotulada como uma subversão da ordem pública, radical, insurgente. Em todas suas formas de expressão, sejam econômicas, políticas, culturais, as dinâmicas de funcionamento da nossa sociedade, conduzidas pelas classes dominantes, reproduzem quase que invariavelmente uma postura de completa ignorância para com a parte majoritária da sociedade, a dos excluídos. Exceto quando esta lhes serve, é claro.

Os exemplos são intermináveis. A população das periferias das metrópoles brasileiras compõe a quase totalidade da mão-de-obra da construção civil. Serve a empreiteiras, construtoras, arquitetos e engenheiros, a donas de casa em busca de um “faz tudo”, sempre em condições precárias de emprego e salários, com contratos informais, alojamentos subumanos. Mora na periferia, porém é comum que a enorme maioria dos estudantes de arquitetura das nossas escolas – que aprendem cedo em seus estágios profissionais como se comportar como empregadores – sequer cheguem a conhecer, nos seus vários anos de formação, essas mesmas periferias. Não a conhecem quando estas deveriam ser o objeto natural de suas preocupações como arquitetos-urbanistas. A violência é um tema que preocupa e ocupa a mídia somente quando ela invade o território das elites, saindo dos bairros periféricos onde ela há tempos impõe sua lei sem que isso pareça ter incomodado ninguém. No Rio de Janeiro, um prefeito chegou a propor que simplesmente se construísse um muro para separar a “cidade” das favelas, da “não-cidade”. A propriedade privada é sagrada quando alguns pobres excluídos resolvem ocupar um prédio mantido vazio por décadas em plena cidade urbanizada, em total contrassenso com a gritante demanda social por moradia. Reintegrações de posse são rapidamente expelidas por uma justiça das mais ágeis. Mas a mesma propriedade privada não parece ser tão importante quando ela é pública, e glebas inteiras são ocupadas ilegalmente para a construção de shoppings-centers ou condomínios de luxo. 

Mais recentemente, no bojo da matriz “modernizadora” da “globalização”, um novo paradigma invadiu nossas cidades, tornando-se a prioridade das políticas urbanas: a construção de “cidades-globais” que supostamente respondam às “exigências” da economia globalizada. Tomando-se por modelo os paradigmas do planejamento estratégico e outras cartilhas urbanísticas, discute-se nas universidades e implementa-se nos governos soluções de gestão urbana importadas dos “cases” de sucesso das grandes cidades europeias e norte-americanas, que criam ilhas de fantasia da modernidade, ignorando-se absolutamente as periferias e o fato de que a metade das populações das metrópoles brasileiras ainda vive na informalidade, grande parte sem sequer saneamento adequando. O mercado imobiliário fervilha com os novos objetivos de construção de bairros de negócios “compatíveis” com a globalização que nos promete o Primeiro-Mundo, e recursos e mais recursos públicos são canalizados para permitir seu surgimento, enquanto se adia mais um pouco a reversão pelo menos parcial da absoluta segregação  a que são submetidos os cada vez mais distantes bairros periféricos informais, que crescem ininterruptamente. A mesma massa de mão-de-obra, ignorada em seus direitos aos transportes e à mobilidade urbana, privada de acesso a sérvios e equipamentos públicos tão básicos como a moradia, a educação e a saúde, é a que constrói os novos barros da “cidade-global” tão propagandeada.

Ocorre que as dinâmicas de dominação estão tão enraizadas que elas passam despercebidas. Porém, uma observação mais atenta mostra rapidamente os incontáveis exemplos de como nossa sociedade ainda é, em essência, a mesma sociedade escravocrata de duzentos anos atrás. E assim, um novo elemento, pouco considerado, surge como mais um entrave à possibilidade de construção de uma sociedade mais justa, ou de uma ação do Poder Público efetivamente mais “pública”: é a absoluta intolerância à pobreza, a negação enfática por parte dos que tem um pouco mais em relação àqueles que têm menos. Essa intolerância perpassa as ações públicas e privadas, molda os comportamentos das elites, torna-se um elemento cultural que alimenta no Brasil uma espécie de apartheid social, pelo qual os segregados não são somente os negros, mas os mulatos, os nordestinos, enfim, essencialmente, os pobres.

A intolerância à pobreza molda o comportamento das elites, mas também do Poder Público que muitas vezes a estas lhe serve, determina as políticas públicas, as dinâmicas sociais e, evidentemente, as urbanas. Em agosto de 2007, a tradicional Faculdade de Direito da USP foi “invadida” simbolicamente, por 24 horas, por movimentos sociais e estudantes, que lá promoveram shows musicais e manifestações pela defesa da inclusão social. Visto como ameaçador, tal movimento foi duramente debelado pelo batalhão de choque da polícia. Sintomaticamente, após sua ação, esta separou e “fichou” apenas os militantes do movimento negro e do MST, liberando sem constrangimento os estudantes envolvidos na ocupação, estes evidentemente na sua maioria oriundos das elites, que têm acesso a tão tradicional universidade. Assim, a mesma intolerância demonstrada no âmbito da justiça e do uso da força “legítima” do Estado quando se massacram presos no Carandiru ou Trabalhadores Sem-Terra no Pará, a mesma indiferença demonstrada quando se deixam morrer pessoas nas filas do serviço público de saúde, a mesma intolerância que se vê quando escolas são sucateadas, deixadas a professores com salários miseráveis, a mesma intolerância que se observa na maneira como são contratadas e tratadas as empregadas domésticas nos lares abastados das nossas cidades, essa mesma intolerância se repete e molda as dinâmicas urbanas e as políticas urbanísticas.

Em São Paulo, por exemplo, as empregadas domésticas, aliás, muitas vezes são obrigadas a morar, abdicando até de suas famílias, em quartos de 3,5 m², sem janela, nos fundos de apartamentos de luxo, quando a legislação exige um mínimo de 5 m² para ambientes “de repouso” em apartamentos habitacionais. As construtoras escrevem nas plantas que se trata de “depósitos”, e a administração pública faz que não vê. Milhares e milhares de plantas são aprovadas, quando se sabe que os ditos “depósitos” são os quartos de empregada, a serem ocupados por estas escravas da era moderna. Nas áreas nobres da cidade, a prefeitura implantou “rampas anti-mendigos” em baixo de viadutos e objetos pontiagudos nos bancos públicos para evitar o pernoite de indesejados moradores de rua, sob o argumento de garantir a segurança pública. A pobreza, aliás, é sistematicamente confundida com a criminalidade pelo discurso hegemônico, ajudando a reforçar a intolerância cultural, enquanto milhões de trabalhadores pobres sofrem diariamente a violência de passar quatro horas ou mais de seu dia (não computadas na jornada de trabalho) espremidos em transportes coletivos precários. 

Outro exemplo é o da legislação urbana: de que serve pensar, nos meios acadêmicos, nas casas legislativas, em novos instrumentos urbanísticos supostamente capazes de fomentar a democratização da cidade se estes são quase sempre rejeitados pelos poderes dominantes sem o menor constrangimento no momento em que deveriam ser regulamentados pelos municípios? De que servem essas novas ferramentas “democráticas” se nos Planos Diretores municipais simplesmente ignora-se a população pobre e suas demandas? Como bem lembra Flávio Villaça, tornam-se planos inúteis, peças de pura ideologia destinadas a confundir e criar a impressão de que se faz urbanismo democrático no Brasil. Embora exista um esforço – sempre por meio da proposição de instrumentos que acabam não saindo do papel – para se pensar em formas de povoar democraticamente as áreas centrais das cidades, que estão se esvaziando, recentemente um empresário do setor imobiliário declarou que a questão da diversidade nessas regiões era apenas uma “preocupação da academia”, e não uma questão de fato importante para se pensar o centro das cidades, pois o lugar dos pobres não deveria ser, de fato, nas áreas valorizadas. Enquanto instrumentos como as ZEIS - Zonas Especiais de Interesse Social propõem – no papel – a destinação de 50% ou mais de sua área construída para habitações para as faixas mais pobres da população, em 2003, um concurso de urbanismo pediu um “bairro novo” para São Paulo, em uma área vazia de um milhão de m² na região central, mas no edital – elaborado pelo mesmo Poder Público encarregado de implementar as ZEIS – solicitava-se apenas 700 unidades habitacionais de interesse social de um total de cerca de dez mil, ou seja, apenas 7% do total. 

Há alguns anos, um documentário canadense sobre São Paulo mostrava a ação impune dos guardas particulares de um grande condomínio de luxo, destruindo violentamente alguns barracos de pessoas que tinham ousado instalar-se em terrenos vizinhos aos muros do condomínio. Em 2007, moradores de um prédio de classe média atearam fogo nas madeiras que iriam servir à construção de moradias precárias em um terreno baldio vizinho. A grande preocupação dos moradores era, em uma completa inversão de valores, o fato de que a presença indesejada de uma favela iria “desvalorizar” seu imóvel. Também no mesmo ano, a indesejada presença de uma favela no terreno vizinho a um novo mega-empreendimento residencial de luxo, no bairro da Cidade-Jardim, levou os incorporadores a oferecer R$ 40 mil por família para que estas desocupassem “amigavelmente” a área, “limpando” a vizinhança, quando o terreno em questão já havia sido delimitado como ZEIS e estava portanto supostamente no aguardo da tão esperada regularização fundiária e produção de moradias. Como se vê, os exemplos são intermináveis.

A intolerância à pobreza impede o desenvolvimento urbano em moldes minimamente democráticos, ela interfere na valorização fundiária e imobiliária, torna-se um elemento a mais, talvez tão importante quanto o da infra-estrutura de acesso. No centro de São Paulo, áreas delimitadas como ZEIS tiveram suas atividades imobiliárias simplesmente congeladas. Ninguém compra onde há conjuntos habitacionais anunciados. Em pesquisa recente, verificou-se que os corretores escondem deliberadamente o fato de que se trata de ZEIS quando interrogados pelos potenciais clientes. Na Mooca, quando da revisão do Plano Diretor Municipal, em 2006, a população de classe média mobilizou-se para que as ZEIS previstas no plano dois anos antes, porém nunca implementadas, fossem retiradas. Não queriam pobres em seus bairros, estavam fartos da presença de moradores de rua, de sujeira, de ratos, em suas palavras. A perspectiva da presença da pobreza desestimula o negócio, afugenta compradores. Viver ao lado de pobres é, para a elite, inaceitável. Mesmo que tal intolerância os obrigue a deslocar-se por horas desde seus bairros residenciais para o local de trabalho: são motoristas de ônibus, seguranças, faxineiros, caixas de supermercados, empacotadores, ascensoristas, empregados do comércio, office-boys, todos trabalhando duramente para que a “cidade” continue a funcionar. São úteis a ela, mas têm que residir o mais longe possível.

As transformações recentes na economia, sob o paradigma da chamada “globalização”, podem estar alterando um pouco tal quadro, mas, como dito, elas podem estar exacerbando ainda mais as dinâmicas da intolerância, pois justamente as afetam diretamente. Como comentado inicialmente, a globalização é um processo de reação à crise de superprodução e endividamento pela qual vem passando a economia capitalista desde a década de 70, quando se inicia o que David Harvey chamou de “reestruturação produtiva”. Face à contradição clássica de um sistema que aumentou exponencialmente sua capacidade de produção graças às novas tecnologias da informática, ao mesmo tempo que gerou um desemprego crescente e a incapacidade de sustentar o modelo do bem-estar social, as economias centrais passaram a expandir-se em busca de novos mercados de consumo. E, uma vez que os blocos econômicos aperfeiçoaram ao extremo, já na década de 80, as barreiras tarifárias e alfandegárias, afunilando a concorrência inter-blocos na busca de novos consumidores, os mercados do Sul, dos países chamados “emergentes” tornaram-se o alvo preferencial para o escoamento da produção capitalista, desde que tais países fizessem, evidentemente, alguns ajustes.

Os ajustes visavam evidentemente a estabilização monetária para que uma maior parte dos segmentos mais capitalizados de sociedades com extrema concentração da renda pudessem de fato consumir, vencendo a barreira desorganizadora da hiperinflação. Por meio de forte aparato de imposição ideológico, que na América do Sul se traduziu no Consenso de Washington, planos de estabilização monetária foram adotados, e permitiram o desejado ingresso dessas economias no consumo global. Se até então elas participavam da economia mundial com o fornecimento de mão-de-obra barata, agora passavam a oferecer, além da mão-de-obra, também consumidores potenciais. Além disso, a forte dependência monetária, em razão do modelo de juros altos e significativo endividamento, “obrigou” a processos de privatização que se traduziram em mais uma porta de entrada para empresas internacionais, com destaque para o setor de serviços, que tem forte relação com a questão urbana. No que alguns autores chamam de avanço ultraliberal, os mercados do Sul foram compulsoriamente desregulamentados, privatizados e abertos para a livre circulação dos produtos internacionais. Se antes era oferecida à população brasileira pouca ou nenhuma assistência social, educacional, de saúde, esta agora tornou-se radicalmente privatizada, com a livre movimentação de empresas que exploram o mercado de consumo de uma classe média sem alternativas, sob a (des)regulamentação de “agências reguladoras”.

Essa nova perspectiva abriu sem dúvida possibilidades de mudanças significativas para o Brasil, que foram iniciadas já na década de 90, mas mais eficazmente postas em prática e capitalizadas pelo governo Lula. A economia brasileira estaria, de alguma forma, passando para o “estágio intensivo” de desenvolvimento (Deák, 1991), ampliando-se, e tendo que incorporar uma classe média mais importante. Também se beneficiaria da crise recorrente das economias centrais, que não se resolveu na globalização. Porém, ainda aparece claramente que esse processo é mais um “avanço modernizador”, sem que por isso, como em eventos anteriores, tenham sido resolvidos os entraves históricos do subdesenvolvimento. É esse seguramente o maior dilema conjuntural que o país vive hoje: enfrentar a euforia de uma “modernização” que pode ser não só limitada, como certamente afunda nas frágeis bases do ornitorrinco (Oliveira, 2003).

Pois se o padrão econômico brasileiro já era segregador, a nova matriz de modernidade a estabelecer-se sobre as bases arcaicas anteriores agora exacerbava essa condição, ao permitir a entrada no “mundo globalizado” apenas parcelas da população, agora consumidoras, mas deixando de fora parte significativa da sociedade. A matriz da “globalização” inclui apenas quem pode consumir, e nesse processo são deixados de lado os de sempre, as massas que desde sempre “sobram” nas periferias das cidades, solenemente ignoradas pelas políticas públicas e pela sociedade “que vale”. O aumento festejado de uma nova classe média parece ser um processo real de enriquecimento das faixas pobres (D) em direção à classe média baixa (C), mas não afeta verdadeiramente a concentração da renda e altera com pouca velocidade a situação das faixas de extrema pobreza, embora haja melhorias (Oliveira, 2011 e Pochmann, 2012). Nas metrópoles, a exacerbação desse processo resulta na continuidade do crescimento regular dos assentamentos periféricos informais, enquanto que a cidade das classes médias tende a se estabilizar, ou mesmo a diminuir. Mike Davis (XXXX) tratou precisamente desse problema, ao apontar como o novo padrão urbano do mundo capitalista é o da produção de “massas sobrantes” que aos poucos vão se tornando não mais a exceção, mas a regra.

Ainda assim, o fenômeno de ampliação do mercado vem provocando, especialmente nos centros urbanos mais desenvolvidos, onde se concentra a população consumidora, algumas alterações que parecem interessantes. De certa forma, a presença de empresas multinacionais no mercado interno pressiona para que este se amplie, o que significa inverter a lógica dominante até agora, incluindo setores antes segregados no mercado potencial. O choque entre o moderno e o arcaico começa a ocorrer em um campo antes inexplorado, porque desnecessário: o do mercado de consumo. A possibilidade de ampliação do crédito, possibilitada pela estabilização monetária, vem permitindo a entrada no mercado de consumo barato de faixas antes excluídas. 

Um exemplo atual, porque ligado à questão da “sustentabilidade”, é o dos carros "populares", agora acessíveis – embora com enorme sacrifício – a mais pessoas. Uma dezena de novas montadoras se instala no país a partir da década de 90, e é esse hoje o segmento comercial de maior lucratividade: acentua-se em nome do consumo e da lucratividade das empresas privadas a opção pelo transporte individual, em detrimento dos sempre adiados investimentos em transportes coletivos de massa. As cidades não têm mais onde colocar tantos veículos, e torna-se evidente mais uma vez o choque do novo padrão de modernidade – sob o paradigma do consumo – com as matrizes estruturais atrasadas. 

É certo que esse movimento de emancipação do mercado, no bojo da atual "modernização", cujos aspectos aparentemente positivos ainda não deixaram claro o quanto superam os aspectos negativos da consolidação do liberalismo, estão relacionados também com a visível emancipação e democratização políticas, cujo amadurecimento ficou claro nas duas últimas eleições. Qual a relação entre esses processos? Ainda é cedo para analisar. Porém, Luiz Werneck Vianna atentou, em artigo recente, para o fato de que a democracia política deverá "passar pelo duro teste da democracia social". Para o autor, o controle social sempre foi o instrumento da expansão econômica, o que explica, como dissemos, termos uma economia avançada ao lado de níveis exacerbados de desigualdade social. Agora que esse controle se enfraquece, em razão do amadurecimento do jogo político democrático, é possível que essa desigualdade torne-se de fato obstáculo à democracia social, necessária ao novo consenso para a formação de um mercado de consumo mais amplo. Em que medida a intolerância absoluta à pobreza, traço como vimos característico das classes médias e altas, será superado na construção de uma economia que, ainda que extremamente excludente, pretende ser um pouco mais agregadora e inclusiva?

Bibliografia

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FERNANDES, Florestan. “Sociedade de classes e subdesenvolvimento”. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1968.

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OLIVEIRA, Francisco de. “Crítica à razão dualista, o ornitorrinco”. São Paulo: Boitempo Editorial, 2003.

OLIVEIRA, Francisco de: “O avesso do avesso”, in Oliveira, Braga e Risek. “Hegemonia as avessas: economia, política e cultura na era da servidão financeira”, São Paulo: Boitempo, 2010.

POCHMANN, Marcio. “Nova classe média? O trabalho na base da pirâmide social brasileira”, São Paulo: Boitempo Editorial, 2012

SAMPAIO Jr., PLÍNIO de A. – Entre a nação e a barbárie – Petrópolis: Vozes, 2001