Ainda sobre os transportes (antes de falar da repressão)

A estas alturas, o que havia começado como uma manifestação em defesa do transporte público, a partir da mobilização do movimento Passe Livre, desdobrou-se em um novo assunto: o da assassina e inaceitável ação da polícia contra os manifestantes.  

Mas antes de comentar este novo assunto, embora ele talvez neste momento ele seja mais urgente, vale continuarmos um pouco a discussão sobre a tarifa dos transportes. Em resposta aos acontecimentos desta semana, o prefeito Fernando Haddad acabou de convocar uma reunião extraordinária do Conselho da Cidade (do qual faço parte), que ocorrerá na próxima terça-feira, na qual abriu as portas para os representantes do movimento Passe Livre colocarem suas propostas. Embora possa desagradar aos mais críticos que leram minha postagem anterior, defendo ser essa uma atitude importante, que comprova a abertura ao diálogo que a atual gestão vem mostrando.

O transporte de uma cidade pode ser operado diretamente por uma companhia estatal, ou por uma autarquia, como nos casos da RATP parisiense ou do Metrô de São Paulo. Pode ser também operado por empresas privadas contratadas, como ocorre com os ônibus de São Paulo, desde a extinção, pelo Maluf, da CMTC, que era uma companhia municipal.

A questão então é saber qual a melhor forma de se fazer a transferência do direito de operar esse serviço público. A mais comum é a da concessão, que dá a determinadas empresas o direito de explorar as linhas da cidade. As empresas geralmente recebem por passageiro transportado, além de subsídios da prefeitura, para cobrir os custos e garantir lucro. Nesse sistema, há dois problemas centrais: primeiro, a falta de transparência na composição desses custos, fazendo com que seja difícil saber o quanto as empresas de fato ganham. Tratando-se de uma prestação de serviço público, em que a demanda é garantida (pelos usuários que precisam de transporte), esse lucro deveria ser, na teoria, controlado. O segundo é que ele é propício a formação de carteis: como há linhas mais lucrativas (por exemplo, as que passam pela Av. Paulista) e outras menos, estabelece-se uma disputa entre as empresas concessionárias para controlar as linhas que transportam mais passageiros. Nesse jogo pouco transparente, consolida-se o lobby e vencem os mais poderosos. Em São Paulo, até onde eu tenho conhecimento,  são apenas três ou quatro grupos que participam das licitações das linhas, além de oito cooperativas, atuando em menor escala. 

Nas últimas gestões, houve uma pequena diminuição da quantidade de ônibus em circulação (são cerca de 15 mil), mas aumentou significativamente (quase dobrou desde o início do século) o número de passageiros, que hoje é de cerca de 3 bilhões de pessoas/ano, assim como aumentou também a tarifa. Ou seja, no atual sistema, aumentou a arrecadação das empresas, embora estas argumentem que também aumentaram os custos operacionais. É para obter essas informações, de forma a subsidiar um debate público sério, que a abertura das contas dos transportes é necessária e urgente.

O aumento de passageiros se deve em muito à facilidade do bilhete único, que significou um grande avanço. Mas os corredores de ônibus, também fundamentais para a redução dos custos e para a eficácia do sistema, tiveram seu ritmo de construção quase paralisado nas últimas gestões. O projeto do corredor da Celso Garcia, por exemplo, foi abandonado.  O anúncio de novos corredores na 23 de maio e na Marginal Tietê são medidas importantes. Ainda assim, há diversas modalidades de corredores, que permitem ou não ultrapassagens dos ônibus, ou que operam com ônibus exclusivos ou não. Nesse aspecto, São Paulo tem muito o que melhorar, a exemplo dos sistemas de Bogotá ou da Cidade do México: colocar ônibus exclusivos para o corredor evita que veículos de várias linhas o utilizem como parte de seu trajeto, congestionando-o.

Na gestão de Luiza Erundina, houve uma importante mudança na lógica do sistema, que infelizmente não durou além de seu governo, tendo sido abandonada por Maluf. Promoveu-se a chamada "municipalização", pela qual as empresas não eram mais concessionárias, mas apenas prestadoras de serviço. Eram remuneradas não por passageiro transportado, mas por quilômetro rodado. Dessa forma, acabava-se a disputa por linhas mais ou menos rentáveis. Em vez de valer mais a pena operar uma linha curta com muitos passageiros, passava a ser mais interessante operar linhas distantes. Isso favorecia a oferta de bons serviços também na periferia, independentemente do número de passageiros transportados. Além disso, por aquele sistema, valia a pena para uma empresa colocar mais ônibus nas ruas, e em mais horários (pois tudo isso aumentava os quilômetros rodados). A empresa SP Trans foi criada para gerenciar o sistema, e controlar os custos das diferentes linhas, para remunerar adequadamente as empresas. A empresa pública CMTC, reduzida, serviria para dar, a partir das linhas que operava, os valores de referências dos custos de operação.

Evidentemente, a crítica a esse modelo era a de que ele seria custoso demais, já que ônibus rodariam "à toa", sem passageiros. Diziam que o "prejuízo" das empresas teria que ser coberto pela prefeitura. Evidentemente, isso não era "prejuízo", mas sim investimento público em transporte. Além disso, esses argumentos desconsideram as possibilidades de gestão de fluxos, hoje muito avançadas graças à informática, que otimizam os trajetos e aumentam ou diminuem a frequência de ônibus conforme a demanda. 

O sistema de cobrança por prestação de serviço seria um passo importante, em termos de racionalização e potencial de planejamento do sistema, para se chegar a um modelo de gratuidade, que foi elaborado naquela gestão com o nome  "Tarifa Zero", mas não foi aplicado. Como já dito na postagem anterior, trata-se aqui tão somente de uma decisão sobre o quanto a prefeitura quer e pode, dentro de seu orçamento, investir no transporte. Na época do Tarifa Zero, percebeu-se que o custo total do sistema representava uma porcentagem pequena do IPTU arrecadado na cidade.

Não é simples dizer se hoje é possível ou não adotar uma política assim, ainda mais considerando a situação de falência em que a prefeitura aparentemente se encontra. Mas aqui entra um argumento importante e raramente colocado em discussão, apontado por minha amiga e colega Bia Tone nos comentários da postagem anterior. Quanto custa para os cofres públicos todo o sistema de transporte de carros, que é individual e serve somente 30% dos paulistanos? Quanto custa tal prioridade dada à modalidade do automóvel, e tudo que ela implica, como toda a operação da CET, dos semáforos, do sistema de rodízio, do controle de emissão, a construção e manutenção dos túneis e pontes de São Paulo que são exclusivos para os carros, a construção sem fim de novas vias? Quanto isso representa em relação a um eventual custeio total de um sistema gratuito de ônibus? É provável, e muito, que seja muito mais caro, hoje, sustentar o modelo insustentável do automóvel, do que promover a gratuidade do transporte coletivo, que serve este sim, a 70% dos paulistanos.