sobre o teatro do julgamento do mensalão.

Demorei para falar do assunto neste blog, pois não havia clima para tal. O patrulhamento dos conservadores e oposicionistas na internet é insuportável. Que me perdoem os antipetistas, antidilmistas e afins. Adoram gritar indignados em defesa da democracia, da ética e da justiça quando lhes convém. Porém, quando são contrariados, passam imediatamente a tecer e difundir na internet raciocínios antidemocráticos, facciosos e de um simplismo assustador. Por isso, após a decisão do STF de inocentar os réus do mensalão por formação de quadrilha, e antes que se repanda demasiadamente a versão que começa a aparecer de que foi tudo uma "manipulação de Dilma e seus petralhas", vale fazer algumas observações.

Algum dia a farsa do julgamento do mensalão iria aparecer. Atenção, não estou dizendo a farsa do mensalão, mas a farsa "do julgamento" do mensalão pelo STF. Que houve desvio de dinheiro para um caixa 2 partidário todo mundo sabe, isso nem se discute. É lamentável que sem as reformas de base a política brasileira ainda funcione assim, e que o PT tenha usado também desse expediente para galgar o poder, logo ele que carregava desde sua origem um discurso ético diferenciado. Mas, que seja com FHC comprando sua reeleição, com o PSDB de Minas, com tantos outros casos (centenas, milhares?) que não vieram à tona porque são o dia a dia da política por aí, ou com o PT do "mensalão", a verdade é que há poucas diferenças entre todos, que praticam um modus operandi político bastante lamentável. 

O PT por ser vidraça - e quanto a isso sabia o quanto arriscava ao fazer o mesmo jogo de todos os outros - foi escolhido para ser "o" caso exemplarmente combatido, evidentemente com um viés eleitoral e político muito bem capitalizado pela oposição e sua porta-voz, a mídia corporativa. Até aí, é louvável que se combata esse modo de "fazer política". Porém, ao dar ao mensalão inédita velocidade de julgamento, ao enviar ao STF réus que não deveriam ir (pois teriam direito de serem julgados em instâncias inferiores), enquanto que se imprimia inacreditável morosidade a outros casos mais ou menso semelhantes mas envolvendo outro partido , o julgamento do mensalão (e não o mensalão, repito) ganhou evidentes ares de teatro político.

No mensalão tucano de Minas manteve-se para a maioria dos réus o julgamento em instâncias inferiores e demorou-se tanto para iniciar o processo que parte das acusações prescreveu no tempo ou pela idade avançada dos acusados. No caso da corrupção no metrô de São Paulo, em que sobram evidências de desvios cujos valores superam astronomicamente os de qualquer um dos mensalões, a blindagem da mídia e a morosidade das apurações começam a tornar-se quase caricatas.

O julgamento do mensalão do PT tem traços teatrais porque os "acordos" políticos escondidos tornam-se evidentes demais. Os lados em contenda aceitam certas derrotas, à medida que as acusações dramaticamente amplificadas pela mídia "peguem" ou não junto ao eleitorado mais conservador, desde que não se avance, porém, além de certos limites. Pois se ultrapassados desmoronaria a República, não sobraria ninguém, já que o modus operandi  ancorado no financiamento privado de campanhas e a consequente lógica de favores e compromissos devidos é generalizado para todos os grandes partidos do cenário político. Brincam de acusar-se, mas a opinião pública mais séria, aquela que não cai no falatório simplório das vejas e afins, fica com a clara impressão de que todos sabem muito mais sobre todos, mas nunca falarão.

Nesse teatro polarizado na disputa PT x PSDB, Lula teve de dobrar-se no jogo de forças que se estabeleceu no encaminhamento do julgamento do mensalão, aceitando-o. A partir daí, sobraram estranhezas: na pressa do julgamento, soube-se que o mais alto tribunal do país havia simplesmente se omitido de ler parte significativa do material compilado, desdenhado testemunhas da defesa e enviado para inquérito secreto provas favoráveis aos réus. Condenou-se um Ministro de Estado, José Dirceu, mesmo sem provas materiais ou testemunhais, fenômeno cuja estranheza foi apontada por juristas e constitucionalistas até mesmo da oposição, como bem lembrou o jornalista Brenno Altmann (ler aqui). Utilizou-se para isso uma inédita teoria do "domínio do fato" que autorizou o Supremo a condená-lo pela simples presunção de que sabia de tudo, mesmo que não tivesse provas concretas disso. O próprio autor da teoria, o jurista alemão Claus Roxin, declarou que ela fora usada de forma inadequada no julgamento do mensalão (ler aqui). O presidente do STF passou a realizar uma série de atos que mais valeriam para um justiceiro de bangue-bangue do que para um juiz da Suprema Corte: mudou autoritariamente o juiz de Brasília responsável pela execução das penas (e recebeu forte contestação do mundo jurídico e dos juízes por isso), para garantir rituais pouco ortodoxos, como a prisão midiática em pleno feriado nacional, o deslocamento dos condenados para fora de sua cidade de residência, ou o não cumprimento da sentença, como a negação do regime semi-aberto aos que tinham direito (leia aqui).

Tudo isso não elimina a existência do mensalão, um esquema de Caixa 2 para financiar votos no parlamento, mas desqualifica, e bastante, o julgamento do mesmo. Essa é a questão: ao promover um processo cheio de vícios, é estranho que Joaquim Barbosa não imaginasse que, em algum momento, tais fragilidades não apareceriam, em um regime democrático com independência e autonomia do poder judiciário. Pior, é assustador pensar que o presidente do STF e alguns dos seus raivosos membros não tenham se preocupado minimamente com a fragilização e perda de credibilidade que seus atos traziam ao mais alto tribunal do país, em nome de seus projetos políticos pessoais. Se até o STF pode armar um julgamento cheio de contradições e vícios, é possível então acreditarmos que, em algum momento, a justiça pode realmente ser imparcial? Era isso que estava em jogo.

Porém, durante alguns meses, toda e qualquer argumentação no sentido de apontar as inconsistências do julgamento, como o fez corajosamente e com muita precisão o jornalista Paulo Moreira Leite (ler aqui o último texto) , eram automaticamente patrulhadas e denunciadas como "argumentação dos petralhas". A tática, que bem servia à manobra política impetrada pelo STF e seu presidente Joaquim Barbosa, era confundir os argumentos, fazendo achar que quem se indignava contra a condução do julgamento estava defendendo o mensalão. Desonestidade intelectual em seu mais puro estado.

No julgamento dos embargos infringentes, no dia 27, em que o STF julgou a condenação por formação de quadrilha - o argumento politicamente mais caro à Barbosa e à oposição, pois dava ao mensalão uma feição mafiosa muito bem vinda -, a argumentação do Ministro Barroso foi, ao contrário do que vociferou Joaquim Barbosa, essencialmente técnica. Pior, apoiava-se nas fragilidades que o próprio Barbosa criara.

A argumentação de Barroso, explicitada na sua fala mas também posteriormente em entrevista à imprensa, foi de uma clareza inquestionável. Não sou jurista, mas consegui entender bem: os crimes de lavagem de dinheiro e corrupção ativa são, pela lei, mais graves do que o de formação de quadrilha, e suas penas, também segundo a lei, devem logicamente ser mais altas do que a pena para formação de quadrilha. Entretanto, no julgamento do mensalão, o STF majorou (ou seja, aumentou em relação à pena mínima) as penas  de lavagem e corrupção em valores em torno de 20%, enquanto que a pena de formação de quadrilha, que deveria ser menor, foi majorada em cerca de 75%. Algo estranho, como haviam sido tantos outros aspectos do julgamento do mensalão.

O irônico é que a posição de Barroso foi tão técnica que praticamente não entrou no mérito de se haveria ou não a formação de quadrilha. Ateve-se a dizer que tal discrepância criava uma fragilidade tão grande para o STF, que ele não tinha, como ministro do mesmo, como manter uma decisão juridicamente tão frágil. De alguma maneira, a posição de Barroso e dos outros cinco ministros que votaram com ele, era a de resgatar alguma coerência e seriedade na condução do julgamento, recuperando assim, evidentemente, a imagem do tribunal e a dos próprios ministros.

Observe-se, fato que o patrulhamento antigovernista gosta de amenizar, a decisão do dia 27 não tem nada a ver com "acabar em pizza", pois os acusados não foram absolvidos, e tampouco ganharam liberdade. Continuam condenados pelo mensalão, porém com suas penas definidas por uma lógica mais jurídica do que política. Se essas penas são brandas demais para o gosto de alguns, se isso fará alguns réus saírem mais cedo da cadeia, é um outro problema, que remete à uma prática cada vez mais comum: a de vociferar contra o que é constitucionalmente definido com a maior naturalidade, como se isso não fosse uma atitude das mais atidemocráticas. Compara-se aos que querem a pena de morte a qualquer custo, ou que acham corretos os linchamentos a sangue frio e a justiça pelas próprias mãos. 

É a partir daí que começam os aspectos mais escandalosos do episódio, e que surgem os argumentos antidemocráticos dos fanáticos antipetistas de plantão.

1) Joaquim Barbosa admitiu em alto e bom som que sim, ele mesmo (e obviamente parte do STF que votou com ele) manipulou seu julgamento para "forçar" um resultado que lhe agradasse, com uma naturalidade espantosa. Ao ouvir a insinuação cautelosa de Barroso, de que ele não estava dizendo que ao definir desproporcionalmente as penas Joaquim Barbosa poderia ter atuado com "intenções escusas", apenas para garantir que os condenados não pudessem ter direito à prisão semiaberta (deturpando o entendimento legal de dosimetria das penas para forçar uma situação por motivação pessoal), o presidente do supremo soltou um inacreditável "mas foi por isso mesmo, oras!".

Quando o presidente do mais alto tribunal do país admite que suas decisões podem não ser juridicamente técnicas, mas sim definidas por manobras visando garantir um determinado resultado pré-estabelecido (no caso o de forçar o regime fechado, mais desgastante politicamente para os réus), ele está simplesmente jogando no lixo a credibilidade do mesmo. Era contra essa inconsciente destruição da credibilidade do tribunal que o ministro Lewandowski contrapô-se reiteradamente a JB, sendo linchado por isso pela grande mídia.

O fato que aponto aqui foi observado por um articulista do insuspeito, no caso, Estadão (leia aqui do blog do Nassif)

2) Pior, o presidente do Supremo, vendo-se derrotado, após desqualificar publicamente, de forma agressiva e deseducada, o voto de seus colegas - o que por si só também ajuda a desqualificar o tribunal - , faz uma fala final em que, literalmente, coloca em dúvida a integridade do STF, "advertindo a sociedade" de que "coisas piores" estariam por vir. 

É simplesmente inacreditável que o presidente do mais alto tribunal do pais, após uma votação regimental em que renomados juízes explicitaram por horas seus votos com argumentações das mais consistentes (para ambos os lados), possa desqualificar a atuação de seus colegas e colocar o próprio tribunal sob uma suspeição mal explicada, visando a criação de um mal-estar nacional e de um clima de instabilidade. É de uma irresponsabilidade política assustadora. JB jogou a suspeita de que o STF pode forjar julgamentos quando o que se revelou foi justamente que ele, no julgamento do mensalão e como ele mesmo admitiu, foi quem alterou penas com o intuito de forjar um resultado que lhe conviesse. 

Mas o recado estava dado, e os destinatários o receberam: não precisou de mais de um dia para que pipocassem na internet os comentários de que o STF estaria passando por uma "venezuelização", como quem diz que seus ministros estariam sendo "indicados politicamente" pelo PT para garantir resultados favoráveis a ele e criar um "regime autoritário à la Chavez".

3) Por fim, a cereja do bolo. Como disse no começo, antipetistas, antidilmistas e afins adoram gritar indignados em defesa da democracia, da ética e da justiça quando lhes convém, mas quando são contrariados, passam imediatamente a tecer e difundir na internet raciocínios antidemocráticos, facciosos e de um simplismo assustador.

O argumento da vez é que "ministros nomeados por Lula e Dilma compõem uma corja petista para salvar os petralhas". Ora, esquecem estes senhores que o próprio Joaquim Barbosa, assim como Fux (que votou a favor da formação de quadrilha) também foram indicados por Lula e Dilma? Quando as decisões do STF eram contrárias aos réus, isso não tinha importância e o STF era idôneo, mas agora que o resultado os contraria, o STF é parcial e as indicações políticas?

Pior, essa argumentação mostra ignorância quanto ao funcionamento da República e ajuda a difundir um clima golpista. Ora, os ministros do Supremo têm mandatos que se encerram compulsoriamente aos 70 anos, e a constituição prevê que, quando da aposentadoria de um ministro, sua vaga é preenchida por indicação do Presidente da República, com a aprovação do Senado. Gostem ou não os fãs de Joaquim Barbosa e do teatro do julgamento do mensalão, essa é a regra democrática. Os últimos ministros foram sim nomeados por Dilma pois assim é a lei. Assim como parte deles foi nomeada por Lula e, antes dele, por FHC (Gilmar Mendes), Fernando Collor (Marco Aurélio) e José Sarney (Celso de Mello). Ao confundir os incautos "acusando" Dilma de nomear ministros como se isso fosse um crime, e não o cumprimento da Constituição, os arautos da "ética" e da "democracia", desde que estas estejam do seu lado, tornam-se, assim, repentinamente os panfletadores da instabilidade democrática. Um horror.