Precisamos de milhões de Ditos

Muita gente pergunta, já foi tema de debate, sobre as heranças da ditadura que nosso país ainda vive.

Pois é, a militarização sem controle da polícia é um dos exemplos mais gritantes. Porém, esse é um fenômeno que também atinge países sem passado autoritário recente, como se vê em frequentes imagens de ações policiais na Europa ou nos EUA.

O que realmente nos faz relembrar os tempos dos militares é a tranquilidade com que os agentes "da ordem"  passam por cima dos direitos constitucionais mais elementares, rindo deles, e sem nenhuma preocupação com as consequências. No nosso país, parece que o que diz a lei, quando é para as autoridades policiais, é um mero detalhe. São todos impunes.

As Guardas Civis municipais, por exemplo, aramaram-se sem que até hoje tenha sido aprovada a lei que as autorizaria a fazê-lo.

A PM tem o hábito de retirar, quando vai à rua enfrentar a sociedade civil (pois é isso que a PM vem se especializando em fazer cada vez mais) as etiquetas de identificação dos uniformes, isentando-se de possíveis punições a atos que extrapolem a lei. E assim vai. Não vou nem entrar na discussão sobre a política de terror que é aplicada, há anos, em todas as periferias pobres das nossas grandes cidades.

Nesta quarta, tivemos mais um lamentável episódio. Que teve ao menos o mérito de destacar uma extraordinária figura e liderança da militância pelos direitos à moradia no país.

Benedito Barbosa, o Dito, liderança histórica e respeitada do movimento, foi à uma ocupação na Rua Aurora, centro de São Paulo, que estava sofrendo uma ação de reintegração de posse. Sempre vale lembrar que, no nosso país, o direito à propriedade, mesmo que ilegal (pois prédios vazios e abandonados há anos não cumprem sua função social e desrespeitam o Estatuto das Cidades) é colocado invariavelmente pela justiça acima do direito constitucional fundamental à moradia.

Era esse o caso, mais uma vez. Uma polícia truculenta obedecendo às ordens de uma justiça injusta, pronta para retirar na base da violência cerca de 60 famílias com crianças que não têm onde morar, para fazer valer o "sagrado" direito a manter (mais um) prédio vazio no centro da cidade.

Pior, nosso governador, não satisfeito de ter criado uma brigada ninja para atuar nos protestos contra a Copa na base do muque, parece ter decidido deslocar esses armários para a importante função de enfrentar famílias com crianças. Muito proporcional.

Além de atuar há anos no movimento de moradia, o Dito é advogado. Atua como advogado do Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos, em defesa dos movimentos. Chegou lá como advogado, cumprindo constitucionalmente seu papel. Apresentou a carteirinha da OAB, e disse ao soldado que ia entrar conversar com seus clientes, que estavam, ao que se soube, assustados, com crianças chorando, uma tensão enorme no ar. Ia ajudar a negociar a reintegração e a saída pacífica de todos.

Mas o soldado provavelmente não acreditou naquele jovem senhor de 53 anos, negro. Não tem o perfil de advogado. Não é branco, não anda de gravata. Não está dentro dos "parâmetros" que devem ser passados a esses soldados, todos pobres e muitos deles negros, em seus treinamentos. Se tem cara de quem é dos movimentos, não merece respeito.

Não importa a carteirinha da OAB, não importa a lei, não importa o direito sagrado do advogado de cumprir suas obrigações dentro de suas prerrogativas legais.

Deu-lhe uma chave de pescoço, sufocando-o, que ele achou que ia morrer. Jogaram-no no porta-malas do camburão, outro ato ilegal. Não lhe permitiram ligar para ninguém. Levaram-no à delegacia, onde respondeu por desacato e resistência à prisão (ninguém lhe dera voz de prisão, aliás). Tudo na mais perfeita ilegalidade. Mas não faz mal. Quem se importa?

(Veja aqui o vídeo com as lastimáveis cenas da agressão)

A noite, algumas horas depois, tínhamos um debate juntos no SESC Santana, o Dito, o Guilherme Boulos do MTST e eu, sobre "Copa e Moradia", aliás uma interessante iniciativa do SESC.

Jurava que o Dito não iria. Faria todo o sentido. Acho que ninguém iria depois de passar por uma dessas. Menos o Dito. Tranquilo, dentro do possível, apareceu por lá. Disse que tinha aquele compromisso, e que falar da questão da moradia para um público amplo era essencial. Que não poderia deixar-nos na mão. Fez uma fala linda, sobre a situação dos moradores das favelas da Av. Roberto Marinho expulsas pelo monotrilho da Copa, que ele acompanha e apoia. 

Nós nos importamos. Precisamos de milhões de Ditos. Não há Ninja que segure a sua vontade de justiça e dedicação à causa da moradia. Dito, estamos com você.

 

 

Leia aqui a notícia do acontecido