O gestor da destruição

A "desfuncionalidade" do aparato estatal-administrativo, um dos traços mais comuns do atraso político brasileiro, não é nem um pouco culpa do acaso, mas demonstração da eficácia de um histórico sistema de dominação, muito útil para permitir outras dinâmicas de governança, marcadas pelas relações clientelistas, de favor, de mandonismo, de promiscuidade com os interesses privados dos mais poderosos.

É assim no Brasil desde sempre: destrói-se sistematicamente tudo que tiver sido feito em gestões anteriores, que possa de alguma maneira trazer prestígio político ao governante anterior. A lógica é tão perversa que quanto melhor a política implementada - e, portanto, maior a popularidade do político que a criou -, mais radical será sua destruição. Basta lembrar como a gestão Serra-Kassab não fez em oito anos nem um único km de corredor de ônibus, iniciados por Marta Suplicy e fator de grande prestígio para sua gestão. 

As exceções existem quando sobem ao poder políticos que não transformaram a carreira em um atalho para fortuna e poder pessoais, e que ainda são políticos por uma causa e não por puro carreirismo. Ou seja, que não colocam os benefícios eleitorais de uma ação à frente do interesse dos cidadãos que representam. Eles são cada vez mais raros. Isso porque políticas públicas de verdade são políticas de Estado, ou seja, transcendem a uma única gestão, precisam de anos, as vezes décadas para darem resultados. Por isso, ninguém as faz. Para que fazer metrô se leva tempo, faz buracos, racha casas, gera trânsito e atrapalha a classe média, se além do mais será inaugurado lá na frente, talvez por um opositor político? Talvez seja por isso que, por décadas, o metrô de São Paulo andou a passo de tartaruga, na média de 1,5 km construído por ano.

Me acho insuspeito para falar da gestão passada, e de Fernando Haddad, já que tive a honra de trabalhar na condução da política habitacional, e acredito muito na qualidade do que fizemos. Uma das características que mais me impressionou e que mais admiro em Haddad foi sua capacidade de, nestes tempos em que o habitual é o oposto, fazer políticas motivado pelo seu caráter estrutural de transformação em longo prazo, e não movido pelo imediatismo eleitoreiro. Mesmo que o preço eleitoral a pagar seja alto, o que vale, acima de tudo, é fazer política pública de verdade, para o bem da cidade e de seus moradores. Não importava se fazer corredor de ônibus e tirar o privilégio dos carros fosse gerar protestos da classe-média alta e demorar para vingar. Era isso que a cidade precisava. Não importava se fazer um sistema cicloviário iria gerar ataques até mesmo do Ministério Público, começando a ser efetivamente usado no fimzinho da gestão. Era importante para a cidade. Não importava se dois dos três hospitais construídos (na gestão anterior nenhuma havia sido feito) não iam ser inaugurados, por pouco, em sua gestão. O importante era a cidade - e sobretudo, a população das periferias - ter novos hospitais. O Plano Diretor Estratégico, que foi premiado pela ONU, prevê uma política de Estado para a cidade para as próximas três décadas. Na habitação, fizemos um Plano Municipal em que não aparece nem meu nome nem o do então prefeito, mas sim o da Prefeitura, para ser implementado nos próximos 16 anos (está lá na Câmara, parado).

Se esse desprendimento com o preço eleitoral a ser pago é uma qualidade enorme de Haddad, tão rara hoje em dia, a verdade é que Dória tem exatamente o perfil contrário. Faz políticas com factoides políticos, somente pelo potencial eleitoral, pelo impacto midiático, sem sequer saber do que se trata do ponto de vista da política pública, como já escrevi aqui antes (leia aqui). E como até FHC percebeu (leia aqui).

A questão é que Dória está levando isso a um extremo que beira a insanidade. Para introjetar a imagem eleitoreira do "bom gestor", ele está simplesmente promovendo a destruição mais sistemática que se tenha tido notícia nesta cidade. Nem o pior de seus antecessores havia ousado promover tal desmonte, prejudicando, obviamente, a cidade e seus moradores e moradoras. Seis meses depois de assumir, há áreas, como a da habitação, em que nem um Real foi sequer empenhado. O hospital de Parelheiros está ali, com mais de 95% da obra pronta, mas nada foi feito, assim como no da Brasilândia, na Zona Norte (leia aqui). É o caso dos nove CEUs com obras paradas, que fazem parte das 54 obras públicas, entre creches, escolas, etc., paralizadas na cidade (leia aqui). A desculpa da falta de dinheiro só é aceitável no que diz respeito ao seu aliado, o governo Temer, que não manda mais dinheiro algum. Pois no âmbito Municipal, a gestão anterior deixou R$ 6 bi em caixa e reduziu a dívida pública em R$ 50 bi.

Mas vejamos um pouco mais em detalhes como é a política da destruição sistemática. Todos os dias, ficamos sabendo de algum novo desmonte, de políticas que estavam sendo construídas de forma participativa, a duras penas, e com muita coisa ainda por fazer.

No primeiro dia de governo, o obscurantismo cultural se anunciou ao vermos a prefeitura acinzentando os coloridos muros do que queria ser a a capital mundial de arte de rua. Desenhos fomentados e financiados por programas municipais foram devidamente apagados, substituídos pelo cinza. O prefeito esquivou-se com um discurso de que iria fazer no lugar muros verdes (o que já vinha sendo feito, por exemplo no Minhocão), ação que aliás não avançou, exceto uns tapumes recobertos de parcas plantas que apareceram na 23 de maio.

O mais cruel e violento talvez tenha sido o desmonte da política de atendimento à população pobre em situação de dependência química com redução de danos, a De Braços Abertos, internacionalmente premiada, e que vinha obtendo resultados significativos (leia aqui). Para promover uma mal disfarçada higienização social, com vistas a alavancar uma pseudo-política de habitação social na região, e abrir caminho para os investimentos imobiliários. A violência para com os mais pobres, como na abordagem abusiva da Guarda Civil aos moradores em situação de rua, já havia chocado a todos (leia aqui).

Mas essa é a ponta do iceberg, pois as mudanças são muitas vezes mais sutis. Como o corte da merenda escolar orgânica e agroecológica (leia aqui). Ou o sucateamento - pela interrupção da manutenção - das ciclofaixas, quando não o seu desfazimento puro e simples. A tentativa de deixar aos domingos a Paulista fechada aos carros só pela metade não vingou, tal o sucesso da iniciativa junto aos paulistanos, mas as ruas que aos domingos, nos bairros, também eram abertas aos pedestres, no âmbito do Programa Ruas Abertas, como grandes áreas de lazer urbano, não o estão sendo mais (leia aqui).

O retrocesso no controle de velocidade nas marginais, na contramão de todas as grandes cidades do mundo (em Londres, o limite é de 30 km/h em boa parte da cidade), rendeu um aumento de 30% no número de mortes por atropelamentos no trânsito no primeiro trimestre do ano em relação ao mesmo período no ano passado (leia aqui). Os acidentes nas Marginais aumentaram nada menso do que 67% ! (leia aqui). Se um dos motes mais desonestos da campanha contra Haddad foi o de "Raddard" em alusão a uma suposta "indústria da multa" (por exigir que se respeite as leis de trânsito), isso não impediu que Dória aumentasse o valor das mesmas e com isso arrecadasse 18% a mais em multas no primeiro trimestre, em relação ao ano passado (leia aqui).

O desmonte sutil passou também pelo esvaziamento do Carnaval, que teve ações policiais na madrugada, restrições de percurso aos blocos de rua, confinamento dos foliões em (perigosos) espaços cercados, esvaziando a Vila Madalena, refutando a rua em vez de transformá-la no palco das festas. A Virada Cultural foi também um fiasco bem planejado, com uma descentralização atabalhoada, shows no Anhembi sem público nenhum (leia aqui e aqui). No campo da cultura, aliás, o que ficou marcado foi a tentativa de agressão do secretário a lideranças da rede de coletivos de cultura (leia aqui), que reclama estar sendo desmontada, quando era uma das mobilizações mais florescentes e ricas que a cidade vinha vivendo.

Junto com tudo isso, o novo Prefeito abriu a porteira para relações mal explicadas e mais do que promíscuas com o setor privado, aquele que o apoiou com "doações" no início do governo, para construir a imagem de que seria um gestor competente tratando a cidade como se fosse uma empresa. Recebeu doações de remédios em vias de vencimento, em troca de dar mais de 60 milhões de Reais em isenções (leia aqui). Recebeu proposta de reforma "de graça" das quadras do Ibirapuera pela Ambev, mas depois descobriu-se que esta fora beneficiada com informações privilegiadas para ganhar a concorrência de exclusividade no Carnaval (leia aqui). Flertou com o mercado imobiliário logo ao iniciar a gestão, recebendo "de presente" a consultoria do urbanista Jaime Lerner para renovar o centro da cidade (leia aqui). Por "coincidência", a Prefeitura promove agora uma revisão do Plano Diretor e da Lei de Zoneamento, nos moldes, ora vejam só, dos interesses do setor (leia aqui).

Para coroar esse movimento, o prefeito tenta passar a toque de caixa os pacotes de privatizações, que incluem o Pacaembu, mas também aberrações como o direito de vender terrenos públicos de menos de 10 mil m² (adeus, praças). Por sorte,  Dória já vê sua base na Câmara esfacelar-se em disputas internas, e a mobilização cidadã está fazendo com que esses projetos tenham mais resistência do que previsto. Conseguiu-se até, por esforço de movimentos ativistas, os votos necessários para protocolar a obrigatoriedade de plebiscito para essas privatizações. Um alento.

Todo esse esforço foi obra de uma nova secretaria (enquanto reduziram-se as secretarias sociais), que recebeu para sua missão privatista cerca de R$ 30 milhões, retirados de verbas para enchentes e transporte (leia aqui). Por fim, Dória nomeou o presidente da sua empresa para dirigir o setor de parcerias com o setor privado da Prefeitura. Sem constrangimento algum (leia aqui). É o patrimonialismo em sua essência, quando público e privado parecem ser, de fato, uma coisa só.

A lista, parece, não acaba mais: é a intenção de cobrar os mortos (leia aqui) pelos jazigos nos cemitérios municipais (quando na gestão anterior viu-se uma inédita e incrível política de recuperação dos cemitérios como espaços abertos de cultura e memória da cidade), é a retirada das cooperativas de catadores no centro, e assim por diante.

O maior ganho da gestão anterior havia sido a reapropriação, gradual mas muito sólida, da cidade pelos seus cidadãos. A re-valorização dos espaços públicos, das ruas, das praças, das atividades ao ar livre, das manifestações culturais, da diversidade, da tolerância, aspectos que fazem uma cidade de verdade. É isso, no fundo, que estamos vendo ser asfixiado sob camadas e camadas do mais triste dos cinzas. Com direito a assistir a esse trágico marketing às avessas pelas mídias sociais.