Pobreza estrutural
/Entrevista | Publicado no Jornal Brasil de Fato
Professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, João Sette Whitaker aponta as causas dos problemas espaciais e segregacionistas da cidade de São Paulo
24/09/2012
Por Amanda Grecco, Gabriela Monteiro e Jaqueline Gutierres, de São Paulo (SP)
Foto: Mariana Oliveira
“A elite brasileira não aceita que não se construam pontes para carros em lugar de metrôs, que atrapalham o trânsito com obras que duram anos. Ela não aceita que se priorizem as demandas para a cidade se tornar mais democrática.” Essa questão, levantada pelo economista e arquiteto-urbanista João Sette Whitaker, é um dos fatores que determinam medidas governamentais e que colaboram para que a situação da metrópole seja desigual.
A segregação e a disparidade espacial de São Paulo, segundo Whitaker, são reflexos do modo como se estruturaram as cidades brasileiras desde que se formaram.
Membro do Conselho Municipal de Política Urbana e professor da Universidade de São Paulo, Whitaker resgata a teoria de subdesenvolvimentismo do professor Celso Furtado, afirmando que a lógica de crescimento econômico do país é baseada no descaso com o bem estar social, principalmente das classes baixas.
Assim, os problemas deixam de estar ligados apenas ao espaço urbano e a interesses econômicos. “A questão se estende para a área da saúde, frente à precariedade desse setor. E também para a área da educação, pela insuficiente oferta educacional aos mais pobres”, ressalta.
Como os fatores históricos levam à atual situação conturbada do urbanismo em São Paulo?
João Sette Whitaker – O processo histórico, político e econômico das cidades brasileiras, principalmente São Paulo, é marcado pelo subdesenvolvimentismo. Ou seja, a lógica de desenvolvimento do país é baseada no antagonismo entre dois extremos: o país cresce ao se alimentar da pobreza. A renda é concentrada, a mão-de-obra barata é explorada e é de interesse do Estado que a pobreza se mantenha para que este processo não se interrompa. Nunca se trabalhou na direção de diminuir estas contradições, porque são elas que giram a economia. Essa lógica garante que o Brasil não tenha um Estado de bem estar social, atento às necessidades da população em sua amplitude. A situação é refletida no espaço da cidade pela enorme desigualdade espacial e pela segregação, onde a riqueza existe em função da própria pobreza.
Existe alguma atitude que realmente mudaria este quadro?
O país vem passando por mudanças que escancaram estas contradições e colocam dificuldades para os governantes. Porém, mesmo que existam mudanças no campo da política, no urbanismo elas são mais demoradas. Mudar essa lógica significa opor-se à classe mais alta. A primeira atitude a ser tomada é por parte dos governos, de ter a coragem de encampar uma mudança radical nas prioridades das políticas urbanas. É preciso uma inversão dos investimentos públicos, favorecendo as classes mais baixas. Em vez de gastar 1,2 bilhões de reais em novas vias para carros na Marginal, gastassem esse dinheiro para fazer 10 quilômetros de metrô. Mas são obras que demorariam para ficar prontas e a construção de novas vias tem um ganho eleitoral muito mais rápido. Há também uma parte de aceitação da população. Ela pode até reclamar do quadro político e econômico, mas nem sempre vai reclamar da questão urbana. Levar as pessoas a terem atitude de mudança é um processo bastante complexo.
Quais os primeiros passos para diminuir o trânsito de São Paulo de modo efetivo?
Não há primeiro nem segundo passo. É preciso fazer uma única coisa: uma inversão radical nos investimentos, levando- os maciçamente para o transporte público. A partir do momento em que o investimento trouxer uma qualidade melhor do serviço público, pode-se começar a taxar a utilização do carro, diminuindo a circulação. Por enquanto é muito complicado. Cria-se um preço alto para a pessoa sentir no bolso o uso de um carro, mas o que se oferece em contrapartida é muito ruim. Não existe condição política de se colocar em prática esse tipo de atitude, mas a partir do momento em que houver investimento pesado em transformação da modalidade do transporte, pode-se fazer com que as pessoas migrem para o serviço público. Essa é a única solução possível depois de um período de seis ou oito anos.
O centro da cidade foi esquecido pelo poder público? E o que dizer sobre os novos projetos para a região?
Lá é o espaço de uma grande tensão, porque foi aos poucos sendo abandonado pelos setores de alta renda. A região ficou popular a partir da década de 1940, à medida que todos os investimentos em infraestrutura no transporte iam para lá, como em qualquer cidade do mundo, atraindo o comércio popular e uma população mais pobre. Esse movimento fez com que aos poucos as elites que moravam lá se deslocassem para outros locais. O centro foi deixado de lado pelo próprio governo e, ao longo desse processo, foi considerado degradado. Na verdade, ele é provavelmente a área da cidade mais vitalizada, com mais empregos, só que de caráter mais popular. Atualmente, com a falta de terrenos para o mercado imobiliário, passou a ser visto com olho gordo. Nesse atual governo, temos um Estado típico patrimonialista, que defende os interesses dos grupos dominantes e trabalha junto com o mercado para transformar o centro em um espaço atrativo para os investimentos. E, para isso, precisa promover a retirada da população mais pobre, sobretudo daquela que está onde eles chamam de Cracolândia. Esse é um processo chamado de gentrificação, com a retirada da população pobre e a valorização do perfil econômico de quem mora ali.
Essa valorização de determinadas áreas da cidade feita pelo mercado imobiliário tende a ser um ciclo? Ou a terminar em uma crise?
É um ciclo e pode terminar em uma crise. Porém, é exatamente essa a lógica do mercado, de abrir novas frentes imobiliárias. Ao mesmo tempo, abre pouco para as classes mais populares, a não ser quando há auxilio do poder público, como aconteceu durante o governo Lula com as mudanças no crédito imobiliário. O mercado acaba sempre reinventando o produto imobiliário para quem já mora, já pagou ou já tem onde morar. Um bom exemplo é a questão da segurança pública. Os índices de criminalidade de São Paulo são altos, mas são iguais aos de qualquer grande cidade do mundo, como Nova Iorque. Então, na verdade, essa ideia de que é preciso viver dentro de uma fortaleza urbana é meio relativa, e muito disso foi o mercado que criou. Com isso, cria-se um efeito bola de neve, porque os assaltantes vão se interessar pelos prédios que parecem fortalezas.
Além dos possíveis novos ‘elefantes brancos’ construídos na cidade, o que a Copa do Mundo pode trazer de melhoria para a cidade?
Esta é uma questão muito polêmica. As pessoas imaginam que as cidades se beneficiam dos eventos esportivos, mas isso é muito relativo. Primeiro porque o equipamento principal, motor da transformação, é o estádio, que nem sempre será aproveitado em futuros jogos. Em segundo lugar, a localização e os equipamentos que eles [os estádios] trazem dos outros municípios não são discutidos pela sociedade para saber se são mais necessários do que outros investimentos. Normalmente, o que vem junto são prédios de negócios e linhas de metrôs que levam às arenas. Mas será que não é preciso fazer linhas que vão para outros lugares mais urgentes da cidade? Será que não é mais necessário fazer saneamento para toda a população? O problema é que esses grandes eventos subordinam os planejamentos aos interesses privados dos organizadores dos eventos. Quem manda nos planejamentos urbanos hoje é a FIFA [Fédération Internationale de Football Association], mas quem deveria mandar é a população através de seus governantes eleitos.
Em 2011, foi aprovado pela prefeitura um projeto de urbanização da favela de Heliópolis. A polêmica sobre esse projeto é o custo e a utilidade, já que o orçamento foi alto. Qual é a sua opinião?
É importante que haja a urbanização da favela, mas o foco dessa ação foi fazer marketing em cima da política. Em vez de realizar um projeto eficaz e racional, com um custo bem pensado, foi convidado para tal tarefa um arquiteto de renome [Ruy Ohtake] que tem pouquíssima experiência com urbanização de favela. A obra tem o intuito de aparecer, e não de resolver o que foi posto em pauta. É desconectada da realidade, um projeto um pouco estranho. Não é só caro, como é muito pouco funcional.
Superficialmente, os maiores problemas de São Paulo parecem ser moradia e transporte. Quais outras questões você apontaria? É isso mesmo: moradia, transporte e saneamento. E depois, educação e saúde para todos. Se fizéssemos essas cinco grandes revoluções, estaríamos em um novo país. Os nossos problemas são simples, a questão é que não existe a mobilização política para enfrentá-los, não há nada além disso.
(Entrevista foi publicada originalmente na revista Esquinas, publicação laboratorial do curso de Jornalismo da Faculdade Cásper Líbero, em São Paulo).