Entrevista ao Portal da Prefeitura de São Paulo - Especial 450 anos
/Juliana Bertolucci
É natural que as grandes cidades tenham problemas com moradia. Quando o crescimento populacional é intenso e acelerado e o desenvolvimento não é planejado, essas questões se agravam ainda mais. "No Brasil, o déficit habitacional está ligado à própria dinâmica histórica de estruturação socialmente desigual da nossa sociedade e das nossas cidades ", acredita João Sette Whitaker, que é economista, professor Doutor em Urbanismo pela FAU-USP e pesquisador do LabHab - Laboratório de Habitação e Assentamentos Humanos da FAU-USP. O professor é coordenador, pelo LabHab do Plano de Hação habitacional e Urbano - Bairro Legal (Saiba mais sobre o programa, desenvolvido pela Secretaria Municipal de Habitação no distrito de Jardim Ângela) e membro do Conselho Municipal de Políticas Urbanas, representando as Universidades. Para ele "São Paulo se diferencia das outras cidades do país essencialmente por seu tamanho e pela dimensão que essa probreza alcançou", disse em entrevista ao portal Prefeitura.SP. Leia abaixo.
.SP - Fale um pouco sobre a questão da habitação inserida no contexto de uma metrópole.
J.S.W - No Brasil, o déficit habitacional está ligado à própria dinâmica histórica de estruturação desigual da nossa sociedade e das nossas cidades. A urbanização brasileira se deu no bojo de uma industrialização baseada em baixos salários, que se beneficiava de uma abundante mão-de-obra barata. Nos países centrais europeus, a estruturação do Estado do Bem-Estar Social, base para a industrialização do pósguerra, pressupunha uma sociedade em que a classe trabalhadora fosse capaz de consumir. Por isso lhe era garantido um patamar mínimo de remuneração, o que incluía o direito à moradia, resultando nos gigantescos programas habitacionais europeus do pós-guerra.
Aqui, ao contrário, não interessava ao Estado - como representante das classes dominantes -oferecer à massa de mão-de-obra, infraestrutura urbana nem habitação, pois isso elevaria o custo de reprodução da classe trabalhadora. A vinda para o Brasil, a partir da década de 50, das empresas multinacionais, representou uma associação entre as "modernas" burguesias nacionais e os interesses de expansão industrial do capitalismo internacional, que buscava estabelecer no nosso país uma base de produção justamente beneficiada pela farta oferta de mão-de-obra barata. Aos interesses das empresas multinacionais se casava o das nossas elites, que puderam assegurar uma rápida industrialização, porém desigual socialmente e tecnologicamente obsoleta (pois se transferiam para cá indústrias já velhas para os padrões do norte) que gerou inclusive as bases para o "milagre brasileiro".
Então, da década de 60 em diante, assistimos a uma rápida expansão industrial, mas que paradoxalmente concentrou cada vez mais a renda e acentuou a exclusão urbana e a proliferação das periferias pobres. Chico e Oliveira, em seu recente texto "O Ornitorrinco", lembra como o incentivo à auto-construção (através da pouca presença do Estado, que deixou a cidade periférica crescer sem controle algum) foi uma fórmula capaz de assegurar uma morada mínima para a classe trabalhadora a custos baixíssimos, sem elevar portanto o custo da mão-de-obra.
Assim, as grandes metrópoles industriais da periferia do capitalismo, hoje se ressentem de anos e anos de uma urbanização pela qual a exclusão sócio-espacial era uma condição do seu crescimento. Seja Mombay ou Dehli (ìndia), Cidade do México ou São Paulo, todas essas (e muitas outras) cidades apresentam cerca de 50% de sua população vivendo em condições indignas na informalidade urbana (em favelas, loteamentos clandestinos, ou cortiços), e cerca de 20% em favelas. Cidades como Recife têm, infelizmente, quase metade da sua população em favelas.
.SP Quais aspectos são exclusivos da cidade de São Paulo?
J.S.W - São Paulo se diferencia das outras cidades do país essencialmente por seu tamanho e pela dimensão que essa probreza alcançou.
Embora o mercado imobiliário goste muito de falar na "cidade-global" de São Paulo, a verdade é que essa cidade moderna e pujante só existe em pequenas "ilhas de Primeiro Mundo", isoladas em um mar de desigualdade. Na cidade de São Paulo, ter 50% da população na informalidade significa dizer que cerca de 5 milhões de pessoas, ou seja, mais do que por exemplo a população do município de Paris, vivem em condições indignas. Temos cerca de 2 milhões de paulistanos vivendo em favelas, o que é inadmissível. Esse é o grande desafio de São Paulo: o gigantismo de sua probreza urbana, que só aumenta o desafio a ser enfrentado pela Prefeitura.
.SP - Quais os principais problemas habitacionais da cidade atualmente?
J.S.W - Os principais problemas são, para começar, a falta de infra-estrutura urbana e equipamentos nas periferias pobres. Há uma ausência crônica e histórica do Estado nessas regiões (o que abriu espaço, inclusive, para a territorialização e a institucionalização do crime organizado), que só foi parcialmente revertida, na medida do possível, nos governos mais comprometidos com a questão social, na gestão 89-92 e na atual.
A ação do poder público nas periferias é tradicionalmente pautada pela agenda eleitoral, e os governantes ofereciam equipamentos em apenas época de eleição. Com isso, temos políticas fragmentadas, praticadas em conta-gotas, que pouco mudam o quadro estrutural de pobreza. Além disso, há uma total inversão de prioridades: enquanto pouco se investe na periferia, a enorme maioria dos gastos públicos se destina às regiões já privilegiadas. Para dar um exemplo, a avenida Juscelino Kubitschek tem 4 vias de cada lado (recebeu investimentos e o nome de "Boulevard JK" na gestão 1993-1996) e uma passarela para pedestres ultra-moderna (construída na gestão passada). Já a Estrada do M´Boi Mirim, a 10 km da JK e única ligação com a "cidade formal" para os cerca de 400.000 moradores da região, continua sendo uma estreita avenida com uma pista para cada mão, com problemas de atropelamento por causa de faixas de pedestre mal sinalizadas ou inexistentes. Felizmente, a atual gestão está melhorando a via, instalando um corredor de ônibus.
Outro problema é a questão da regularização da posse da terra, que tem origem no século retrasado. E evidentemente, há o problema do déficit de moradia. Porém, não há como elencar quais os principais problemas urbanos, pois isso resultaria em uma lista infindável de problemas, todos eles, individualmente, inaceitáveis: falta de saneamento, precariedade habitacional, situação de risco da casa (nas encostas e em áreas alagadiças), falta de transporte adequado, falta de escolas e hospitais, e assim por diante. É importante lembrar que o Ministério das Cidades estruturou-se em torno de quatro grandes problemas urbanos e habitacionais, que não são os únicos, mas certamente os mais urgentes: provisão de habitação, saneamento, transporte e desenvolvimento urbano (que inclui regularização fundiária e melhoria das condições do habitat).
.SP - Quais são suas razões históricas?
J.S.W - Podemos dar um exemplo que irá ilustrar a situação: na década de 30, dois importantes industriais foram aos EUA e compraram uma "moderna" fábrica de fios Rayon, que trouxeram de barco para o Brasil. Nos EUA, os fios Rayon nem eram mais fabricados, porém no Brasil de industrialização incipiente, ela seria talvez a mais moderna indústria química do país. Um ótimo negócio para o industrial norteamericano, que conseguiu dar sobrevida à um ferro-velho graças aos seus novos parceiros brasileiros, que remontaram a indústria em uma área da periferia de São Paulo. A industrial, que recebeu o nome de Nitroquímica, tornou-se um chamariz imediato de mão-de-obra, e São Miguel, onde foi instalada, em dois anos, viu sua população triplicar, sem que houvesse, entretanto, nenhuma política pública para assegurar a infra-estrutura urbana e habitacional para os novos moradores. É o típico exemplo da "industrialização e urbanização desigual".
A fábrica teve problemas sérios de falta de segurança e más condições de trabalho, que até geraram uma explosão vitimando pessoas. A região de São Miguel hoje abriga uma das maiores favelas da cidade. Aliás, a área que hoje foi desativada pela fábrica é as vezes lembrada como uma boa área para produzir-se habitações de interesse social. Entretanto, há de se lembrar que a contaminação do solo gerada pela indústria durante décadas seguramente não permitiria a construção de casas.
.SP- Quais ações são precisas para solucioná-los? Qual o papel da administração pública nessas soluções? E da sociedade civil?
J.S.W. - Evidentemente, a única e verdadeira forma de solução para a desigualdade urbana é uma política macro-econômica nacional que redistribua efetivamente a renda, que gere empregos e salários dignos. Sem isso, nunca o país resolverá sua grave situação social. Porém, enquanto isso, há muito o que se fazer. O grande desafio, inclusive cultural, é reverter a tendência de contínua periferização da cidade.
Enquanto o centro perde sua população (1,3 %/ano), as periferias crescem cerca de 5% no mesmo período. Só que a cidade já atingiu seus limites, e sua periferia invade áreas ambientalmente sensíveis, sendo extremamente oneroso urbanizar favelas e levar infra-estrutura para as regiões distantes. Deve-se portanto promover uma maciça oferta de habitações de interesse social não só na área central mas também nos bairros do anel intermediário, de classe média e alta, pois há glebas vazias, geralmente paradas por motivos especulativos.
O Estatuto da Cidade, aprovado em 2001, criou instrumentos que possibilitam ao Poder Público fazer cumprir a função social da propriedade urbana: dar um uso a terrenos que se beneficiam de infra-estrutura urbana porém estão abandonados. As ZEIS - Zonas Especiais de Interesse Social são um ótimo exemplo, e foram criadas pelo Plano Diretor, assim como as Zonas Especiais de Interesse Urbano, que a Sehab criou nas favelas de Heliópolis e Paraisópolis, e que são as maiores da cidade. Entretanto, a cultura das classes dominantes no Brasil ainda é extremamente excludente. Os ricos não aceitam conviver com pobres e por isso a cidade se segmenta. Isso é inerente ao capitalismo, porém aqui a situação é mais extrema. Na cidade capitalista, mais ricos e mais pobres trabalham juntos, normalmente uns para os outros, e todos têm o direito de morar perto de seus trabalhos. Por isso, bairros de classe média e alta, assim como o centro, devem aceitar a presença de moradias dignas para a população de menor renda.
Infelizmente, por pressão desses setores, assim como do próprio mercado imobiliário, que só consegue entender conjuntos habitacionais como "desvalorização", e não como instrumentos para a construção de uma cidade mais justa, mais humana e mais saudável, foram criadas menos ZEIS e bairros do anel intermediário do que São Paulo necessitaria. Criaram-se ZEIS em favelas, que poderão ser urbanizadas. Mas há grandes terrenos que deveriam virar ZEIS para que se promova a diversidade social urbana.
A cidade precisa, nas revisões futuras do Plano Diretor, se encher de ZEIS nesses bairros, para reverter a periferização. Não se pode falar apenas em soluções paliativas. Para mudar a cidade estruturalmente, a sociedade toda deve aceitar que as mudanças e as políticas para a população mais pobre devem ser maciças.
Na França, por exemplo, há alguns anos isso já foi notado. Uma lei de 2000, chamada "lei da Solidariedade Urbana", obriga todo município a ter 20% de suas casas (todas as moradias do município) destinadas à habitação social, a não obediência implica em pesada multa. E o governo desistiu de construir enormes conjuntos na periferia (como a Cidade de Deus), como era feito no passado. Atualmente constróem pequenos conjuntos habitacionais, "prédinhos" de 50 apartamentos, dispersos e inseridos nos bairros de classe média e alta.
A prefeitura, através do Programa Morar no Centro, da SEHAB, vem promovendo, nesse sentido, uma importantíssima política de reabilitação de edifícios na área central para habitação de interesse social. Renovar o centro não envolve apenas as obras de embelezamento, como o pórtico da Praça Patriarca, mas oferecer à população mais pobre, que vive em cortiços pela falta de oferta de moradias condizentes com sua capacidade de pagamento, oportunidade de moradia digna a um custo aceitável.
Os movimentos populares já conseguiram reabilitar alguns prédios, com o financiamento da CEF (Caixa Econômica Federal), e a Sehab vem intensificando sua ação nesse sentido. Há projetos em de construção integrada de moradias para as pessoas com baixo, médio e alto poder aquisitivo; além de comércio (shoppigs, etc.), e tudo ao mesmo tempo, promovendo a diversidade social que dá vida à cidade.
Quanto à periferia, embora deva ser promovida a reversão do seu constante crescimento, a ação do Poder Público deve ser intensa nessas regiões para melhorá-las. A rigor, deveria ser só lá. A possibilidade mais utópia seria a de que, ao longo do tempo, investimentos maciços na periferia, associados à obras de transporte público de massa, permitiriam que a cidade se tornasse mais fluída, menos concentrada econômicamente nas áreas da região sudoeste. Isso traria mais qualidade de vida. Entretanto, na periferia, não adianta oferecer um equipamento isolado, um posto de saúde por exemplo, em uma região em que tudo falta, pois esse posto sozinho não será capaz de reverter o quadro social de extrema tensão, e em pouco tempo estará - salvo algumas exceções - abandonado e degradado.
Deve-se promover uma ação pública conjunta, integrada e intensa, que possa oferecer, junto com o posto de saúde, escolas, áreas de esporte, praça, parque, saneamento, transporte, etc. Essa integração setorial das políticas públicas deve ser resultado de uma postura de governo, e deve integrar as diferentes secretarias e níveis de governo. Sem uma verdadeira mobilização social e política, um verdadeiro mutirão governamental que envolva obrigatoriamente a participação popular (para que todas as melhorias sejam assumidas coresponsavelmente pela sociedade organizada, que poderá cobrar e manter suas conquistas independentemente das diferentes gestões), e que esteja acima dos interesses político-partidários e eleitorais, não conseguiremos resolver o quadro dramático das periferias.
.SP - Como você vê a questão das áreas de ocupação irregular na cidade?
J.S.W. - A prefeitura vem promovendo, através do RESOLO, um intenso programa de regularização fundiária. Além disso, a Sehab media conflitos em áreas ocupadas, evitando a reintegração de posse violenta. Esse é o caminho. É importante lembrar o que poucos lembram: em casos de terrenos e edifícios ocupados, a ilegalidade da situação não pesa tanto para os que ocupam (que, a rigor, fazem valer seus direitos), mas muito mais nos que deixaram suas proriedades desocupadas e abandonadas.
No caso de São Bernardo, do terreno da Volkswagen, a mídia nunca falou que os proprietários do terreno estavam também em situação de ilegalidade, já que, contradizendo o estatuto da Cidade, não faziam cumprir a função social da propriedade. Eram maus proprietários urbanos. Além disso, a polêmica em torno da propriedade do terreno, trouxe à tona o fato de que a propriedade urbana, no Brasil, é resultante da ação hegemônica das elites. .SP - Como a habitação influencia nas questões sociais, culturais, políticas e econômicas?
J.S.W. - A habitação, ou melhor, o habitat, que é todo o ambiente construído e as dinâmicas sociais que giram em torno da moradia, são a base para a vida digna e o pleno exercício da cidadania. O Brasil só poderá ser uma verdadeira nação quando, em qualquer bairro das nossas cidades, os moradores estiverem vivendo em paz e segurança em uma casa digna, bem construída, segura, com saneamento, coleta de lixo, escola e trabalho próximos, atividades de lazer e cultura, etc. A habitação só pode ser entendida nesse sentido amplo, senão cairemos sempre no erro de achar que um conjunto habitacional-dormitório, que isola seus moradores de tudo, é habitação.
Aliás, vale destacar que a aqruitetura brasileira tem uma forte dívida social a pagar. Se ela se faz presenta e festiva nas áreas mais favorecidas, nos modernos prédios "inteligentes" das "ilhas de primeiro-mundo", ela nunca se apresentou para pensar e resolver efetivamente a metade da cidade que vive em casas auto-construídas, onde os arquitetos, salvo exceções de profissionais que se dedicam à moradia de baixa renda, pouco aparecem. É isso que devemos reverter, em um futuro próximo.