Nota da Equipe de Pesquisa do IAU (USP-São Carlos) / PEABIRU sobre as matérias a respeito da modalidade “Entidades” do Programa Minha Casa Minha Vida publicadas no jornal O Estado de SP
/A equipe de pesquisa coordenada pela professora Cibele Rizek e formada por pesquisadores (doutores, estudantes de pós-graduação e de graduação) do Instituto de Arquitetura e Urbanismo da USP (campus de São Carlos) e da assessoria técnica Peabiru – trabalhos comunitários e ambientais, instituições que têm projeto aprovado por chamada pública do Ministério das Cidades e CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) e pesquisa em andamento sobre a modalidade “Entidades” do Programa Minha Casa Minha Vida no Estado de São Paulo, vêm a público se manifestar a respeito das matérias sobre o programa, veiculadas no jornal O Estado de SP dos dias 29 e 30 de setembro, bem como no editorial de 03 de outubro de 2013, com o intuito de esclarecer dados e fatos distorcidos nas matérias e, assim, contribuir para que se produzam debates mais qualificados na opinião pública.
A matéria do domingo (29/09), intitulada “Militância vira critério para receber moradia do programa Minha Casa Minha Vida”, bem como as que se seguiram na semana, apresentam dados e fatos distorcidos, sem citar convenientemente as fontes e, assim, não contribuem para a informação. Ao contrário, os fatos parecem intencionalmente organizados para denegrir a imagem de lideranças populares e do único programa público de produção habitacional em escala nacional que não é operado diretamente por empresas da construção civil.
A modalidade “Entidades” do programa Minha Casa Minha Vida foi uma conquista dos movimentos de luta por moradia que se fazem presentes nos Conselhos Gestores das políticas públicas de habitação em diversos níveis federativos e particularmente no Conselho Nacional das Cidades. Nelaprevê-se que “entidades” (associações civis sem fins lucrativos) legalmente constituídas e devidamente habilitadas por critérios públicos definidos nacionalmente pelo Ministério das Cidades operem recursos vinculados ao Fundo de Desenvolvimento Social (FDS) para organizar e atender famílias que se enquadrem na Faixa 1 do programa, ou seja, que tenham renda de até R$ 1.600,00 mensais.
Em linhas gerais, essas Entidades devem encontrar um terreno absolutamente regular onde o empreendimento seja viável, técnica e economicamente, devem desenvolver os projetos e aprová-los nos respectivos órgãos públicos e só a partir de então firma-se o contrato com a Caixa Econômica Federal, que passa a liberar os recursos do FDS (Fundo de Desenvolvimento Social) segundo cronograma previamente aprovado para que se realizem (diretamente ou contratando construtoras) as obras civis. Um processo até aqui idêntico ao do mercado — com quem disputam em condições bem pouco favoráveis, como se pode imaginar. Paralelamente, as Entidades selecionam e organizam as famílias, visando à participação no processo de escolha do terreno, elaboração dos projetos e construção propriamente dita, de modo que possam conviver e fazer a gestão dos empreendimentos, depois de entregues as unidades habitacionais. Todas as famílias selecionadas devem passar pelos critérios públicos de renda e de restrição cadastral definidos pela Caixa para o programa, critérios que são impeditivos à assinatura do contrato e que são exatamente os mesmos adotados para a produção por construtoras, financiada com recursos do FAR (Fundo de Arrendamento Residencial) e que atende às demandas organizadas pelas prefeituras municipais — cruelmente chamadas de “filas”, como se o direito à moradia fosse passível de espera.
A comparação dos dados entre essas duas modalidades (FDS/Entidades e FAR/Construtora) não deixa dúvidas sobre o lugar que as “Entidades” ocupam nesta produção, mesmo tomando-se apenas o universo das Regiões Metropolitanas de São Paulo e Campinas, que concentram mais de 90% de toda a produção das Entidades no estado — 21 de um total de 23 conjuntos, sendo que 20 estão na RMSP. Apenas dois conjuntos produzidos ou em produção estão fora deste universo (um em São João da Boa Vista e outro em Santos).
No estado de São Paulo, há 228 Entidades habilitadas
pelo Ministério das Cidades (fonte: SNH – MinCidades junho/2013) e apenas 25
delas (menos de 10%) tinham conseguido contratar algum empreendimento até
agosto deste ano (fonte: SNH – MinCidades agosto/2013).E ainda assim, como se vê
nos dados, grande parte dos empreendimentos contratados patina na burocracia
das aprovações dos projetos para serem viabilizados e se converterem em casa
pronta. Se parte desta pífia produção está sendo operada por associações
ligadas aos históricos movimentos de luta por moradia, é pela expertise que esses
movimentos construíram ao longo de mais de 3 décadas de luta, ação direta de
ocupações de terra e de edifícios vazios, realização de atos e manifestações,
mas também na participação na gestão pública (em Conselhos Gestores e na
operação de vários programas), na proposição, para além dareivindicação pura e
simples, que foi a forma de luta que os movimentos de moradia e de Reforma
Urbana adotaram no país.
Pode parecer estranho a um jornal que é associado às forças mais conservadoras da nossa sociedade, mas a liberdade de associação e de filiação partidária estão previstas na nossa lei. Por isso, depois de atendidos os critérios públicos do programa, as entidades podem estabelecer critérios adicionais, que, a rigor, não fazem ninguém “furar a fila”, haja vista a quantidade de unidades contratadas e entregues em relação à produção pelo FAR.
Dentre os critérios adicionais, que são da conta de cada Entidade e de seus associados, pode estar a pontuação — muito embora essa não seja uma prática unânime. A pontuação, muito ao contrário do que as matérias fazem crer, não cria “privilégio para quem participa de atos e manifestações”, justamenteo evita! Primeiramente, é discutida e acatada pela maioria dos associados e, depois, estabelece parâmetros para a permanência ou exclusão do grupo (como ocorre em qualquer associação de condomínio) em função de estar em dia com suas obrigações, da presença nas reuniões ordinárias, nas atividades de formação política, de obra e também nos atos e manifestações. Não basta ser indicado por qualquer prefeito, deputado, vereador, assessor, nem mesmo por liderança popular: tem que participar! (como dizia um antigo comercial de TV). Com uma pontuação alta, a família — que já tenha cumprido os critérios públicos do programa, repita-se à exaustão — tem basicamente a vantagem de poder escolher antes a sua unidade habitacional, sem tirar o lugar de nenhuma outra família associada e somente depois de os idosos e deficientes físicos terem escolhido as unidades totalmente acessíveis. Com isso, o tradicional e populista “sorteio das chaves”, que transforma o direito à moradia numa espécie de bingo, perde totalmente o sentido.
Citando aspas de especialistas, o jornal infere que as práticas das Entidades ferem o princípio da “isonomia”, ao criar condições especiais de acesso ao programa. Os números comparativos da produção das Entidades com a produção das empresas construtoras não deixam dúvidas quanto à forma distorcida de tratamento do termo. Que não se esqueça que foram estas, junto com o mercado imobiliário, os protagonistas da formulação do Programa Minha Casa Minha Vida em 2008/2009, com o argumento de geração de empregos desqualificados e ativação da cadeia anticíclica para enfrentamento da crise econômica, que, se cumpriram o seu papel para a macroeconomia, também tem contribuído diretamente para uma inacreditável inflação imobiliária e para uma produção de cidades espalhadas com enormes conjuntos construídos nas periferias ou em áreas inóspitas. Mas para além dessa constatação, é no mínimo curioso pensar em isonomia na produção e consumo da cidade: quem são os cidadãos relegados às piores condições de vida? Submetidos aos maiores deslocamentos cotidianos e às viagens mais longas? Afastados das localidades com maior e melhor oferta de infraestrutura, equipamentos públicos, serviços?
A radicalidade desta modalidade do programa, atacada de uma maneira genérica e irresponsável pelo jornal, está justamente na possibilidade da Entidade atuar de maneira autônoma, de realizar uma produção diferenciada em relação às atuais “habitações públicas de mercado”, desenvolver projetos específicos, idealmente em áreas melhor localizadas, construir com mais qualidade, incorporar as famílias ao processo e ao mesmo tempo compartilhar com elas a ideia de que não se trata apenas de uma “casa”, mas sim de “cidade”!