Conselhos participativos.....com os pobres de fora?

Uma das questões que melhor indica o compromisso de uma gestão com a democracia e o direito à voz dos grupos minoritários são os mecanismos que ela estabelece para promover a participação da população nos diferentes processos de decisão. 

Nesse sentido, a gestão de Fernando Haddad até que vem se saindo bem: reavivou os conselhos temáticos (como por exemplo o da saúde ou, na minha área, o de Política Urbana) que foram sendo esvaziados e quase abandonados nas últimas gestões, e criou uma série de novos conselhos, com diversos propósitos. Desde o "Conselho da Cidade", para o qual convidou diretamente cem pessoas de sua escolha, de um amplo leque ideológico e representando interesses bastante diversos, e que lhe serve como uma espécie de termômetro para as decisões mais polêmicas. Teve, por exemplo, atuação importante no episódio da anulação do aumento da tarifa dos ônibus, indicando apoio unânime à reivindicação do Passe Livre. Até conselhos criados pela urgência da conjuntura, como aquele para discutir os transportes, as planilhas de custos e as licitações das linhas de ônibus. Outros processos estão sendo estruturados, como o ciclo de planejamento e orçamento participativos, organizado pela Secretaria de Planejamento.

Isso tudo, evidentemente, é muito bom. Mas há de se ter cuidado com o ímpeto "participativista", pois uma vez que esse caminho é trilhado, o que é fundamental e imprescindível à um governo que se quer à esquerda no espectro político, ele deve ser verdadeiro, e não apenas uma retórica política pouco efetiva.

Promover a participação em uma cidade de mais de dez milhões de habitantes é de fato muito complicado, quando não quase impossível. A Secretaria de Desenvolvimento Urbano teve dificuldades em promover as discussões para a elaboração do Plano Diretor, e se por um lado a pressa do prefeito em aprovar (e ressuscitar) o plano é louvável, o custo disso é uma crítica à falta de tempo hábil para se fazer efetivamente uma discussão participativa sobre o mesmo. Por outro lado, o timing político, o risco de se cair em disputas infindáveis, etc., fazem com que essa discussão não seja simples.

Uma das boas iniciativas do governo no âmbito da participação foi a criação dos Conselhos Participativos Municipais, que irão eleger 1125 representantes para os conselhos nas 32 subprefeituras da cidade. Uma ação que vem tentar suprir a dramática falta dos Conselhos de Representantes, previstos na Lei Orgânica de 1992 mas implementados só na gestão Marta, e logo depois paralisados pelo Serra, que enviou a questão ao STF.

Pois bem, o aspecto mais inovador e democrático desses conselhos era o de que a prefeitura não pretendia exigir  dos eleitores título de eleitor nem comprovação de residência, promovendo o voto universal, e permitindo assim que imigrantes (que raramente transferem seus endereços eleitorais da cidade de origem, já que em favelas muitas vezes não se tem nem endereço oficial) e moradores de rua, grupos geralmente excluídos desses pleitos, tivessem também direito a voz.

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Luiz Kohara, do Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos, afirmava sobre essa iniciativa: "Numa região com grande concentração de população de rua, como a Subprefeitura da Sé, é importante que tenhamos conselheiros que sejam pessoas em situação ou que representem essa problemática, para levar para dentro da subprefeitura todas as preocupações e problemas dessa população”. 

Essa era portanto uma grande novidade, que elevava o patamar da participação em São Paulo, como mostrado neste artigo da Rede Brasil Atual (clique aqui), embora fosse exigir evidentemente alguns acertos e muita atenção da prefeitura, já que o voto assim aberto é mais propenso a instrumentalização (trazer eleitores de outros municípios, por exemplo) Mas nada que não possa ser contornado, com alguma criatividade na organização do pleito e no controle dos votantes.

O Decreto da Prefeitura instituindo a votação, de 2 de agosto passado, deixa claro que nem os candidatos precisam apresentar o título de eleitor, e tampouco os votantes. Em seu artigo sexto, estabelece que: "Os conselheiros serão eleitos por voto direto, secreto, facultativo e universal de todas as pessoas com mais de 16 (dezesseis) anos e que sejam portadoras de título de eleitor, cédula de identidade ou outro documento de identificação oficial com foto". Atentem para o "OU" que estabelece claramente que o eleitor pode votar apenas com um documento com foto, se não tiver título de eleitor (que estabelece a necessidade de domicílio na cidade).

No Artigo 7, que fala de quem pode se candidatar, o texto diz: "Será considerado apto a concorrer no pleito a pessoa: I - maior de 18 (dezoito) anos que comprove o apoio de, no mínimo, 100 (cem) residentes na área da respectiva Subprefeitura; II – que não seja ocupante de cargo em comissão no Poder Público ou detentor de mandato eletivo. § 1º O critério para o endereço de referência de inscrição de candidatos é o endereço do local onde foi instalada a respectiva seção eleitoral no primeiro turno da eleição municipal anterior".

Ou seja, embora indique o local adequado para a inscrição do candidato, não se fala, também neste caso, na necessidade de ser portador de título eleitoral na cidade. Pelo Decreto do Prefeito, a perspectiva emanada por Luiz Kohara, que citei acima, estava garantida. Um conselho realmente participativo iria aceitar a possibilidade de ter representantes de imigrantes e de moradores de rua.

Porém, o edital de convocação dessas eleições, publicado no Diário Oficial de 7 de setembro, NÃO SEGUE exatamente o decreto municipal (o que, aliás, abre espaço para um questionamento do Ministério Público a respeito). 

Lá, pode-se ler o seguinte, quanto aos candidatos, no parágrafo 4: "O candidato deverá apresentar os seguintes documentos: 4.1- Documento de identidade oficial, válido, com foto (Cédula de Identidade – RG, Carteira Nacional de Habilitação - CNH, Carteira de Trabalho, Passaporte ou Carteira Funcional expedida por órgão público) – original e cópia; 4.2- TÍTULO DE ELEITOR – original e cópia".

Pois bem, a não ser que eu não entenda mais nada da leitura de decretos e editais, houve aí uma sutil alteração. Essa é a complexidade da política: nas entrelinhas, nos detalhes, muda-se o sentido de tudo, sem que ninguém perceba.

No caso, jogou-se por água abaixo a perspectiva participativa inovadora que justificou o artigo citado e a euforia dos setores que lutam pelos direitos da população mais pobre e excluída. 

Terá sido um erro? Uma desatenção? Espero que sim. Acredito que a razão tenha sido tecnocrática. Foi anunciado na mídia que a prefeitura se associou ao TRE para promover o pleito, já que isso não é tarefa simples, e a experiência e estrutura da justiça eleitoral seriam de fato bem-vindas. Acredito que por isso, tenha sido "mais simples" solicitar aos candidatos o título de eleitor, para adequar a eleição à máquina da justiça eleitora. Mias simples.

Porém, em política, é das práticas mais questionáveis jogar para a platéia, com discursos democráticos e intenções das mais justas, para depois jogar outro jogo nas entrelinhas das tecnicidades das leis. Participação só é participação se ela for efetiva, e não se ficar restrita aos discursos. Mesmo que isso dê certo trabalho.

Acho que ainda há tempo de São Paulo garantir essa conquista de cidadania e participação,, refazendo o edital de forma a respeitar o decreto do próprio prefeito. Vamos aguardar.