A ciclovia da Paulista: simbolo da reconquista da cidade para as pessoas

Fotografia do site da Prefeitura: a grande festa da paulista

Fotografia do site da Prefeitura: a grande festa da paulista

Na segunda metade da década de 1990, Antanas Mockus destacou-se nacional e internacionalmente como prefeito de Bogotá, na Colômbia. Para além de acertos e desacertos, normais ao se governar cidades tão grandes e complexas, o que ficou da sua gestão foi o enorme trabalho para recuperar a cidade para seus moradores, o sentimento de cidadania e de pertencimento à metrópole. Em meio a um cenário de guerra civil entre governo e guerrilha, de violência descontrolada por causa dos carteis de drogas, a cidade vivia uma profunda depressão. O então prefeito lançou um conjunto de ações que visavam o desarmamento, a recuperação da cidadania, o reencontro da cidade perdida pelos seus próprios moradores. Quando fui lá, já em pleno século XXI, sua gestão ainda era uma referência que marcara uma espécie de renascimento de Bogotá.

A inauguração da ciclovia da Av. Paulista, neste domingo, me fez lembrar de Mockus. A cidade de São Paulo esteve, por oito anos, à deriva. Cheguei a escrever (leia aqui) que ela ia morrer. A desregulação absoluta - o que quer dizer a subserviência total aos interesses privados - havia transformado São Paulo no palco da ação descontrolada do mercado imobiliário. Como se provou, à custa de muita propina, pululavam shoppings-centers e megaempreendimentos em cada esquina. No altar da mobilidade individual, exaltava-se o carro e as obras de pontes, como a do cartão-postal da cidade, que sequer deixavam passar pedestres ou o transporte coletivo (e ainda não deixam). A rua tornara-se o espaço do medo e o sucesso de cada um consistia em entrincheirar-se cada vez mais em fortalezas urbanas. A cidade não tinha coleta seletiva. Não discutia nada, seus conselhos participativos haviam sido abandonados. São Paulo, assim como Bogotá nos anos 90, estava em depressão.

Pois bem, remando contra o maremoto midiático que se formou contra ele e seu partido, Fernando Haddad veio enfrentando aos poucos o desafio de fazer a cidade respirar. Com muitas críticas, muitos erros, como cabe a qualquer um que queira governar uma metrópole tão grande, tão complexa, e tão mergulhada numa trágica profecia autodestruidora da qual mal se imaginava como sair. Mas entre erros e acertos, algumas coisas foram tomando corpo: a recomposição de todos os conselhos participativos e mais alguns, as instalações de equipamentos de lazer e alimentação em praças do centro, que junto com parklets e a liberação de foods trucks vão aos poucos recuperando o uso democrático e cívico do espaço público e das ruas, a recuperação dos parques, sobretudo os mais periféricos, a adoção da agricultura familiar e cooperativa para as merendas escolares, a demarcação das terras indígenas municipais, a construção de duas usinas de triagem e reciclagem de lixo....a lista é, acreditem, muito mais longa.

Mas o que mais marcou uma atitude de mudança foi encarar, pela primeira vez, que a cidade não sobreviveria sem uma alteração radical na sua lógica de mobilidade. O nefasto automóvel individual precisava mais do que nunca ser posto em escanteio, em favor do transporte coletivo de massa e, complementarmente, de formas alternativas de transporte não poluente, das quais a bicicleta é a expressão mais acabada. Não interessa que seja uma tendência nas cidades mais democráticas no mundo, por aqui tal ideia era imediatamente fulminada pelo conservadorismo elitista de plantão. Pior, nenhum político ousara enfrentar o desafio, já que, em geral, trata-se de mudanças estruturais cujo prazo de implementação e sucesso vai muito além do tempo de um mandato. A curto prazo, fazer corredor de ônibus, metrô ou ciclovias causa transtorno e é impopular. E nenhum político quer fazer algo que será inaugurado lá pra frente, muito depois dele ter saído, quem sabe até em razão das mudanças que começou a implementar.

A virtude maior de Haddad é de pensar na cidade acima de seu projeto político pessoal (o que nos faz lembrar a saudosa gestão de Luiza Erundina). Por isso, enfrentou sem muita hesitação o desafio e começou a implantar, com todas as dificuldades, os erros e a má-vontade dos setores conservadores que isso implica, a priorização absoluta do transporte público e a implementação de um sistema cicloviário à altura do que a cidade merece. Contou com isso com a inestimável ajuda dos militantes da bicicleta. E com o apoio, mesmo que escondido pela mídia, da maior parte dos paulistanos.

A maneira como a paulista foi literalmente tomada, neste domingo, por paulistanos em festa, foi antes de tudo um acontecimento simbólico. Respirava-se no ar a satisfação daqueles que, enfim, começam a perceber que este monstro urbano chamado São Paulo pode, sim, ser bom de se viver. A tomada da Paulista pelas bicicletas foi uma catarse coletiva daqueles que, enfim, sentem que se começa a respirar em São Paulo, ares de algo mais solidário, mais humano, mais democrático. Cruzei a certa altura uma manifestação por mais bikes na periferia. Como tudo, ainda há muito a se fazer. Mas o que estava no ar era uma sensação de festa....e de alívio.

foto de marília bello

foto de marília bello

(veja aqui 33 imagens da festa, por Manuela Barem)

Ainda teremos que ouvir "especialistas" a dizer que está tudo errado. Que a Paulista não comporta uma ciclovia, pois "já tem" metrô e deve manter a velocidade do fluxo dos carros (ou dos ônibus, quando o especialista quer parecer mais democrático). Dizem que a ciclovia tira espaço dos pedestres, quando ela usa o canteiro central até então inutilizado e que a Paulista tem as mais generosas calçadas da cidade. Que me perdoem, mas é EVIDENTE que a bicicleta chegou para ficar. Como opção alternativa e completamente diferente dos meios motorizados, ela nunca se sobrepõe a outros sistema, apenas os complementa. Mas isso só os anos dirão. Alguns, mais conhecedores da questão, dizem que a ciclovia nesse eixo não precisava estar na Av. Paulista propriamente dita, mas nas ruas paralelas menores, como a Alameda Santos, retirando-se os carros da mesma e deixando a Paulista para ônibus expressos e carros. Tecnicamente, uma alternativa que faz sentido.

A questão é que não estamos falando aqui somente de aspectos técnicos. A ciclovia da Paulista é, na verdade, um SÍMBOLO desta nova cidade. E é por isso que é nessa avenida, e em nenhum outro lugar, que ela deveria passar. Pois irá se tornar um cartão postal de uma nova cidade. Como diziam os manifestantes ao saudarem o prefeito montado em sua bike: "mais amor, menor motor". Parabéns à São Paulo que revive, e seus novos símbolos. 

 



Em tempo: na ponta da avenida, quase na Consolação, um grupo do movimento ultradireitista "Brasil Livre" estava lá bradando suas imbecilidades. Contei: eram 12. Tenho a foto para provar. Quantas pessoas devem ter passado pela Paulista nesse dia? 10 mil, 20 mil? 30 mil? Pois bem, eram 12 contra dezenas de milhares. Chegando em casa a noite, zapeei a TV em busca de telejornais. Invariavelmente, os 3 que eu vi mostravam "Haddad enfrentando protestos na Av. Paulista", com os 12 fascistinhas ao fundo. Nenhuma palavra sobre a festa de cidadania que a cidade promovia. Essa é a nossa imprensa.

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Anunciaram e garantiram que ninguém anda de bicicleta em São Paulo :) #cicloviapaulista

Posted by Prefeitura de São Paulo on Domingo, 28 de junho de 2015
Desenho de Ivo Minkovicius

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