A ação do TSE e a Lei da Ficha Limpa: não joguemos o bebê com a água do banho
/Uma grande confusão vem se instaurando com o julgamento pelo TSE da legalidade ou não da candidatura do Lula. E essa confusão só é boa para os golpistas, e péssima para a democracia, pois ela alimenta as engrenagens perniciosas da perseguição ao Lula e tenta ao mesmo tempo, com a ajuda dos petistas, desqualificar a Lei da Ficha Limpa.
Os juízes do TSE focaram suas argumentações em torno da "aplicabilidade" ou não da Lei da Ficha Limpa para o caso de Lula. Até mesmo o Zé Dirceu que, agora fora da prisão, voltou ao cenário político, ajuda na confusão ao afirmar em entrevista que "é contra a Lei da Ficha Limpa", porque os eleitores é que deveriam decidir se alguém pode ou não ser candidato.
Em termos. Sim, na democracia, em última instância, são os eleitores que decidem. Porém, em um país em que sabemos a manipulação eleitoral corre à solta, e que não faltam picaretas e bandidos tentando se eleger, a Lei da Ficha Limpa veio dar uma ajuda nesse processo. Estabeleceu, corretamente, que um candidato condenado por certos crimes (como por exemplo corrupção, improbidade, etc.), não deveria poder se re-candidatar a algum cargo. Para não virar uma guilhotina que decapite toda e qualquer pessoa que, tendo passado pela administração pública, tenha algum processo a responder (muitas vezes processos vazios, frutos de brigas políticas), a lei determina que só vale se a condenação for proferida em segunda instância, por um órgão colegiado de desembargadores.
Uma observação importante: o que a Ficha Limpa avalia não é o mérito dos processos e das condenações, que se dão sob a tutela da justiça criminal e administrativa, e não eleitoral. Ou seja, a Lei da Ficha Limpa não tem nenhuma incidência no fato de Lula estar preso. E o escândalo maior que atualmente acontece é esse: Lula não deveria estar preso, isso é um fato, denunciado por centenas de juristas e personalidades internacionais. Ele foi encarcerado ao arrepio da Constituição, com um STF que se nega a definir se prender em segunda instância é ou não é constitucional (porque sabe que não é, e não quer liberar Lula). Ele está preso por um processo criminal cheio de furos, de provas falsas, de delações não comprovadas, montado contra ele pelo Moro para claramente perseguí-lo.
A Ficha Limpa nada tem a ver tampouco com o fato de Lula ter sido julgado, também de forma insidiosa, perversa e persecutória, pela segunda instância do TRF 4. Acontece que tendo sido julgado em segunda instância, isso dá abertura para que ele seja julgado pela Lei da Ficha Limpa. O que vem ao caso então não é a existência da Lei da Ficha Limpa em si, mas o fato dos juízes do RS terem propositalmente e meticulosamente levado Lula "em regime de urgência" (passando na frente de centenas de outros processos) ao julgamento em segunda instância, para assim poder enquadrá-lo pela Ficha Limpa. Vamos dar um outro exemplo, para clarear: se existe uma lei que pune um assassino, e que uma pessoa inocente que não matou ninguém é acusada e condenada por essa lei, o problema não está na lei em si, mas no fato de que a pessoa foi acusada injustamente por algo que ela não fez.
A lei eleitoral da Ficha Lima é clara, e muito boa para a democracia. Tanto que foi o próprio Lula que a sancionou. Na época, ninguém duvidava que estávamos avançando rumo a um país mais civilizado e democrático. Não se pode agora, por causa da manipulação da direita golpista, jogar o bebê com a água do banho, culpabilizando a lei pelo que ela não é responsável.
Portanto, o que deveria ser o foco da discussão no caso do julgamento no TSE do Lula não é a Lei da Ficha Limpa, mas sim o porquê Lula foi levado à segunda instância por um processo duvidoso, atropelando o cronograma da justiça, e condenado de forma visivelmente manipulada. Essa é a questão que os juízes do TSE deveriam considerar. E não se a Ficha Limpa está correta ou não.
Ainda mais porque existe, na própria Lei da Ficha Limpa, um alínea que foi pensado justamente, supõe-se, para desfazer eventuais injustiças desse tipo. Diz o texto que a corte "poderá, em caráter cautelar, suspender a inelegibilidade sempre que existir plausibilidade da pretensão recursal e desde que a providência tenha sido expressamente requerida".
Foi o que os advogados eleitorais do PT fizeram. Requereram que a corte avalie se as acusações que levaram Lula à segunda instância são plausíveis para enquadrá-lo na Ficha Limpa, e se é "plausível" troná-lo inelegível por causa de um processo obscuro de julgamento duvidoso (nem preciso entrar aqui no mérito de todo o processo do triplex, basta ler artigos deste e tantos outros blogs), quando o clamor popular coloca o réu em primeiro lugar das pesquisas para a presidência, podendo até vencer em primeiro turno.
Em suma, é "plausível" dar mais valor à uma condenação cheia de dúvidas e questionamentos, que teve manipulado seu cronograma para prejudicar o candidato, que teve sua dosimetria milimetricamente calculada para evitar que o crime não prescrevesse, e que ainda não teve seu mérito julgado em todas as instâncias por causa de manobras claras do STF, do que à clara vontade popular para que o réu possa se candidatar?
Acredito que não. E foi isso também, aliás, que o Comitê de Direitos Humanos da ONU apontou, determinado que o Brasil cumpra o tratado do qual é signatário, deixando Lula se candidatar.
Há, portanto, muita "plausibilidade" nos argumentos da defesa para que o TSE considerasse a "pretensão recursal" suspendendo assim a inelegibilidade de Lula.
Com isso, o TSE não estaria enterrando a Ficha Limpa, mas apenas cumprindo-a. Assim como fez em centenas de casos em que, por razões diversas (algumas bem duvidosas), anulou a inelegibilidade de candidatos em função de recursos considerados "plausíveis".
Na teoria, esse é um alínea da lei que deveria torná-la mais justa. Mas se há uma coisa que aprendemos no Brasil nos últimos anos é que as leis são tremendamente subjetivas. Propensas à interpretação que se quiser fazer delas. Por isso, no caso de Lula, o TSE nem sequer chegou perto, de forma capciosa e obviamente muito bem pensada, de discutir o que interessava: esse alínea específico da Lei, e não o sentido da Lei por inteira.
Mas seria tremendamente ingênuo que após dois anos de trabalho árduo, que passou pelas manobras ilegais de Moro (ao tornar pública uma escuta ilegal) para impedir Lula de ser Ministro de Dilma, que passou pelo afastamento de Dilma com acusações ineptas (a tal "pedalada fiscal" que o Congresso autorizou Temer a fazer poucos meses depois) e a utilização oportuna das manobras chantagistas de Eduardo Cunha, que passou pelo processo kafkiano contra Lula para levá-lo à prisão e julgá-lo em segunda instância, acreditar que, de uma hora para outra, o TSE iria de forma tão "legalista" preocupar-se com um alínea de excepcionalidade da Lei. Não, manipulou a tal Lei da Ficha Limpa, com o mesmo métodos que os golpistas vêm usando recorrentemente, para construir o falso discurso de que Lula é inelegível por causa dessa Lei. Não precisaria ser, mas isso ninguém fala.
O chamado LawFare, denunciado pelos advogados de Lula, é isso. É a manipulação ampla das leis para permitir manipulações políticas. É determinar que uma operação fiscal pode ser chamada de "crime de responsabilidade" para validar um impeachment "com cara" de juridicamente correto; é manipular o cronograma do STF para atrasar o julgamento da constitucionalidade da prisão em segunda instância para que Lula seja diretamente afetado e levado à prisão, mesmo que isso seja uma aberração (pois enterra a presunção de inocência); é mudar a dosimetria da pena para impedir a prescrição do crime; é estabelecer uma multa processual astronômica para impedir qualquer chace de Lula ter progressão de pena; é levar o réu à segunda instância para fazer com que ele caia nas regras da Ficha Lima e, enfim, é fingir que a Ficha Limpa é uma Lei draconiana, ignorando seus próprio artigo que permitiria relativizar o caso e permitir, como pediu a ONU, que se respeitasse a vontade popular e se deixasse Lula concorrer. Em suma, é uma manipulação sem pudores das leis e dos sistema jurídico para fazer política com ares de justiça.
A indignação geral que a negativa do STF causou nas hotes do Lulismo é compreensível, mas nunca poderia desviar as águas seguras do golpe de seu rumo certo: impedir a candidatura vitoriosa de Lula. Mas, do ponto de vista da estratégia do PT, essa indignação é boa. Porque ajuda a mostrar aos eleitores que Lula é mesmo um perseguido político, e que todo esse teatro só tem como fim impedir o livre curso da vontade democrática. usando-se para isso o que for preciso, como por exemplo manipular as leis sem aplicar todas suas interpretações, como foi o caso da Ficha Limpa.
O problema para eles é que tudo isso só reforça a força de Lula e do candidato que ele indicou caso, como se espera, ele não possa se candidatar. Fernando Haddad, que a cada dia que passa é mais claramente identificado como o candidato de Lula face aos impasses que a direita e as elites retrógradas impõem ao ex-presidente. Daí o medo que se instala nas hostes da direita, incapaz de fazer decolar algum de seus candidatos face á ameaça da extrema-direita, monstro que eles mesmos ajudaram a criar.
Nesse sentido, e se a direita e os militares deixarem, um horizonte eleitoral bastante promissor pode aparecer, no qual, apesar do Golpe e de todas as manipulações antidemocrática que "democratas" como FHC e Cia sustentaram, o PT de Lula pode vencer e voltar ao poder. Se, junto com isso, a população perceber que na origem de tudo está um congresso deplorável, formado por deputados e senadores da pior espécie (com raras exceções), e que isso só será resolvido por nosso voto, se atentarmos em quem votamos para o parlamento, então podemos imaginar que esta longa e trágica noite que se iniciou com a não-aceitação do resultado das últimas eleições de 2014, pro Aécio e seus asseclas, está chegando ao fim.