Ilações sobre a política (a)pandêmica
/Não sou lá um grande analista político. Mas tenho observado um movimento intrigante. Com a saída de Moro do governo, destravou-se um processo de isolamento e desgaste de Bolsonaro que estava bloqueado pela presença do justiceiro no governo. Enquanto Moro estava lá, ele era "garantidor" de alguma "aparência de decência" do governo, que permitia aceitar o capitão apesar de todos seus deslizes, bravatas e bandidagens. Com Moro lá, inclusive no comando da PF, aceitava-se que ele blindasse o capitão dos processos que poderiam afundá-lo (inclusive, hoje se percebe, fingindo que não se sabia onde estava o Queiroz). Era uma boa troca, para o establishment brasileiro: a esquerda longe do poder, um aventureiro imprevisível na presidência, porém com um ministro ultra-liberal dando a garantia da (des)política econômica e dos desmontes sociais que eles querem, e um ministro da justiça como potencial candidato à sucessão do capitão, aí sim recolocando as coisas na ordem.
Só que parece que o despreparo,a tosquice, o provincianismo, o "baixoclerismo" de Bolsonaro, que até poderia ser levado adiante até 2022 nesse equilíbrio instável (apesar das tensões que já surgiam de ele ter o seu cangote um superministro permanentemente candidato), não suportaram um incidente inesperado: o surgimento de uma pandemia nunca antes vista na era moderna, que iria exigir do país um estadista de verdade na sua liderança. Bolsonaro, da baixeza de seus argumentos dignos de birras infantis, como desprezar as mortes, duvidar da pandemia, desacreditar a OMS, inventar remédios milagrosos, achou que a coisa acabaria por aí, que algumas bravatas bem lançadas iriam bastar para polarizar o cenário político e fazer fumaça para disfarçar sua absoluta incapacidade de lidar com uma situação realmente séria.
Passados alguns meses, ficou claro que não. Moro caiu fora do barco, porque anteviu que, nesse cenário, o equilíbrio anterior seria desfeito, antes mesmo que chegássemos ao ponto atual, com mais de um milhão de infectados (oficiais, quem sabe uns 10 milhões na realidade) e as mortes beirando as 50 mil. Sem sequer um ministro da saúde para fazer frente à tal tragédia e sem NENHUMA política efetiva no âmbito sanitário mas tampouco no âmbito político, nunca o Brasil esteve tão perto, nas últimas décadas, de um colapso total.
Pois então, com Moro fora, o capitão tosco e bravateiro ficou só, apoiado por uns militares de pijama e outros aventureiros, que não dão demonstração de serem assim tão legítimos porta-vozes das forças armadas da ativa. Tensionou o discurso anti-democrático e o confronto com o STF, jogou carga pesada para cima de Witzel, tudo para tentar desviar as atenções de um colapso que se aproxima inexoravelmente. A cada dia que passa, Bolsonaro fica mais refém de apenas uma vacina milagrosa. Mais nada, parece, o salvará da derrocada política total, que virá. Pode ser agora, pode ser nas eleições, mas está claro que ele só conta com sua base de alucinados racistas, misóginos, homofóbicos e crentes xiitas, que não é mais capaz de sustentá-lo a não ser apelando para a violência e a ameaça de desordem social. Aquela classe média semi-envergonhada que o preferiu por "medo do PT" está acordando para o fato de que, muito mais do que "PT x outra alternativa", aquele voto com um sujeito do (alto) nível de um Haddad era na verdade uma escolha entre civilização (mesmo que qualquer um pudesse ser oposição) e barbárie.
Demorou um pouco, mas o establishment resolveu abandonar o capitão à própria sorte. Uma decisão perigosa, pois a essas alturas aqueles figurões que decidem os destinos da nação (ou tentam) perceberam que Bolsonaro e seus filhos são como pólvora e não são nada ruins de manobra política. Dominam tão bem e melhor os meios modernos de comunicação política que escantearam-nos nas eleições e os fizeram engoli-los goela abaixo. Alckmin, Meirelles e, em menor grau Marina Silva e Amoedo levaram uma surra do capitão. Essa direita aristocrática teve que engolir, além do drible da extrema-direita, o PT que tanto haviam se empenhado em destruir ir para o segundo turno com um caminhão nada desprezível de mais de 40 milhões de votos. Tudo errado, mas tiveram, graças a Moro, que construir esse acerto mal equilibrado que agora está a ruir.
Quem é o establishment? Para mim,há salões aveludados em grandes clubes, residências milionárias, sedes empresarias, restaurantes em NY ou alhures, que volta e meia recebem um grupo variável mas sempre muito endinheirado de pessoas que tomam decisões sobre o Brasil. Veja bem, o salão é uma figura de linguagem, mas se até mesmo seu condomínio tem grupo de whatsapp, você acha que un Lemann, uns figurões do Itaú, do Bradesco, uns Marinhos, Saads, uns Gerdau ou Vororantins, alguns membros de altas cortes ou ainda príncipes da sociologia que já governaram o país não têm o seu grupo também? Não estou falando do velho da Havan ou do chapeiro da Madero. Tô falando dos grandes, os que mandam.
Pois bem, eu acho que há momentos em que decisões como encampar um impeachment conveniente ou aceitar o questionamento de uma eleição são tomadas por consenso por essa turma. O fantasma de 64 faz com que muitos achem que essas decisões passem pelos militares. Pode até ser que tenha um ou outro, mas as decisões que avalizam parte das aberrações vividas neste país, com certeza, saem mais desse aristocrático grupo de mandatários do dinheiro. A essência do patrimonialismo brasileiro.
Pois bem, eles agora se movimentam, e isso é visível. Alguma mudança houve, que liberou as forças conservadoras "civilizadas" a atuarem. Até mesmo porque o tensionamento promovido por Bolsonaro estava começando a dar força às esquerdas, o que para eles não é bom. Trata-se de recuperar o espaço político, porém sem deixar que ele seja tomado pelas esquerdas mais legítimas. No máximo, engolem um Ciro, ou melhor, o Ciro tenta desesperadamente ser aceito nesse círculo.
Desde que Moro saiu, a escalada foi rápida: O STF começou a engrossar sem medo com o capitão, lançou ações da PF contra políticos bolsonaristas, prendeu a Sara Winter, forçou a saída de Weintraub,até culminar com a ação do MP do Rio para prender o Queiroz, que de sumido não tinha nada. Agora, as delações que podem aparecer não só dele, como da sua mulher e filha, são bombásticas. Lembrem-se que ligado a eles e suas informações estava o Adriano Nóbrega, "apagado" sem mais nem menos. Não é coisa pequena, isso já deu para ver.
Ao mesmo tempo, é interessante a movimentação que se criou a partir de uma mobilização legítima partida das classes médias e altas de esquerda, de construir um discurso de "maioria" contra bolsonaro, uma frente única contra a barbárie. Como é habitual no Brasil, essa movimentação foi "aproveitada" por forças mais poderosas (lembrem-se das manifestações de maio de 2013 e do MPL). A promoção pela Globo de um debate juntando uma "esquerda" que aceitou Ciro mas deixou de fora PSOL e PT é sintomática. A aristocracia está tentando se movimentar e ganhar força na sociedade com uma manobra que tenta, ao mesmo tempo, colocar para fora a esquerda mais legítima e/ou que teve - e ainda tem - mais votos (apesar de todas as brigas internas e dificuldades dentro do PSOL e do PT). Lula não é bobo, sabemos disso, e isso explica seu movimento.
O mais assustador nisso tudo é que toda essa movimentação no tabuleiro da política parece se dar sem que a questão do Covid incomode sobre medida. Se bobearmos, podemos até esquecer dela. O Coronavírus parece estar matando mais os pobres, e a aristocracia sente tudo normalizado. Nesse ritmo, em mais um mês teremos no Brasil mais mortos do que a Guerra do Vietnã matou de soldados americanos em dez anos. Vejam o estrago social que aquela guerra causou por lá, as feridas até hoje não cicatrizadas. Parece que aqui podemos encarar isso sem mais problemas, não é? Talvez seja o hábito de vermos morrer rotineiramente tanta gente nos desabamentos, brumadinhos e marianas da vida. Talvez. O Brasil parece viver uma (a)pandemia. Nem mesmo a ausência de um ministro da saúde nesse cenário parece mais chocar, sequer essa casta aristocrática.
A salvação provisória de Bolsonaro está no Centrão, mais uma vez.Mas este se esfarela com a mesma velocidade que se agrupa. A maldição de Bolsonaro será, sem dúvida, a pandemia que ele não soube enfrentar. O que vai sair disso só Deus sabe. Ou nem ele. Há fortes chances de ser o caos.