Cirque du Soleil para quem pode comprar o sol

Sou um privilegiado: tive a oportunidade de assistir ao Cirque du Soleil por duas vezes. Uma delas nos anos 90 em Montreal, Canada, berço desse espetáculo fenomenal que certamente revolucionou o circo moderno, por ocasião de um congresso do qual participava. O ingresso foi uma cortesia, e não soube seu preço. Na segunda vez, no final dos anos 90, estava em Nova Iorque, de férias. Dessa vez, paguei o meu ingresso: foram 25 dólares para um lugar intermediário, o que hoje seria no Brasil algo em torno dos 50 Reais. Por conta do tempo que passou, fui olhar no site de lá os preços atuais, para o show Totem, que ocorrerá em março. Talvez por conta da inflação, mas certamente pela fama que o espetáculo alcançou, eles agora vão de 57 a 140 dólares (de 120 a 280 reais), o intermediário a 70 dólares, ou 140 reais, para adultos. Uma família novaiorquina com dois filhos pagará cerca de 250 dólares, ou 500 Reais para esse excepcional programa cultural, pelo preço intermediário. Se for rica e quiser o mais luxuoso, gastará por volta de 500 dólares, ou R$ 1000. 

O Cirque du Soleil anuncia mais uma vez um espetáculo no Brasil, dentro de alguns meses. ​Em São Paulo, a companhia circense se instala no Parque VIlla Lobos, um espaço público, diga-se. Os ingressos já estão à venda (veja preços aqui): o mais barato está anunciado a R$ 190 por cabeça. Um intermediário, custa R$ 410. O mais caro, R$ 640. Uma família paulistana com duas crianças pagará por aqui, no mínimo, R$ 580 para os quatro, um pouco acima do lugar intermediário de lá. Se quiser ir nesses lugares intermediários (no Setor 1), seu gasto chegará a R$ 1200, já 20% acima do ingresso mais caro de lá. E se quiser dar-se ao luxo do lugar mais caro de todos, a abastada família terá de desembolsar....em torno de 2000 reais!

O salário-mínimo nos EUA é de cerca de 1150 dólares, ou 2300 Reais. Dá para comprar 8,2 ingressos do espetáculo, pelo preço mais caro, e 20 do mais barato. No Brasil, o salário-mínimo é de R$ 678. Permite comprar UM ingresso pelo preço mais caro, e 3,5 pelo preço mais baixo.​

​Os empresários gostam de falar na alta taxa tributária brasileira, nos preços de importação, quando justificam o alto preço por aqui. Para os carros, essa desculpa começa a não colar: mesmo sendo fabricado no Brasil, e portanto sem a incidência total da taxa de importação (exceto, talvez, em algumas peças), um Toyota Corolla nos EUA custa entre 15 e 18 mil dólares, ou entre 30 e 35 mil Reais. No Brasil, chega a 80 mil Reais!

Os produtores do Cirque du Soleil estão lucrando como nunca ​sonharam com seus espetáculos no Brasil. De duas uma: ou acham que os brasileiros são tão ricos quanto os suíços, ou acham que eles são mesmo trouxas. Ou dos dois.

​Acho que eles têm razão: quando um país é a sétima economia do mundo, mas ao mesmo tempo está nos últimos lugares da concentração da renda, isso significa que seus ricos são muito ricos. Dividem entre si a gorda parte de uma economia exuberante. E podem permitir-se gastos exuberantes, enquanto outros, diga-se, arriscam perder seu barraco na primeira grande chuva. Em Paris, em 2011, a segunda clientela no mercado de altíssimo luxo era a brasileira, depois dos sauditas.

Mas além disso, cabe perguntar. Por que os brasileiros mais ricos submetem-se a pagar essas quantias sem reclamar? Por uma cultura de status pelo consumismo que no nosso país chega à beira do inaceitável.​

Ainda sonho com o dia em que, tomados por um lampejo de racionalidade quanto à forma com que gastam seu dinheiro, os paulistanos de classe média alta, em massa, boicotassem o circo. ​ Mostrariam que podem até ser ricos, por ter a sorte de estar no lado privilegiado da balança social brasileira, mas, ao menos, que não são trouxas.