A difícil questão da habitação - Parte 2

No post anterior, ficou claro que o problema habitacional é antes de tudo uma questão política, que a sociedade brasileira deve enfrentar: permitir aos mais pobres o direito de morar perto de seu trabalho, ou seja, na cidade, e não a quilômetros dela, nos distantes bairros da periferia para onde, historicamente, foram jogados. Parece simples dizer que todos, inclusive os mais pobres, merecem a facilidade de morar e trabalhar em um mesmo bairro. Mas, no Brasil, isso tem uma consequência:  significa dizer que a cidade deve ser mais democrática, e que os mais ricos terão que conviver com a diversidade social. E isso, parece que eles não querem. É comum vermos manifestações dos setores dominantes reclamando de projetos de conjuntos habitacionais no seu bairro, pois isso "desvaloriza" suas propriedades.

A afirmação de que "não há terras bem localizadas para conjuntos habitacionais" é relativa, pois o boom imobiliário que as cidades brasileiras vivem mostra bem que terra há, para prédios de luxo, shopping centers e outros. A desculpa normalmente usada é a de que essa terra especificamente é muito cara para se fazer conjuntos habitacionais. Estranhamente, o mesmo Estado que diz não ter como comprar terra para conjuntos habitacionais tem dinheiro de sobra para rodoaneis  pontes, túneis, salas de dança e de concerto sofisticadas(1). Sobram então, glebas mal localizadas e distantes, mais baratas para o poder público construir seus conjuntos. Na verdade, nunca se colocou na ponta do lápis o custo real de ter que levar até elas a infraestrutura mínima que um conjunto exige. Se a conta fosse feita, veríamos que, no fim, comprar a terra mais cara em áreas já infraestruturadas sairia até mais barato. Mas o "problema" não é bem esse. O problema é que se isso ocorresse, teríamos que aceitar a presença de pobres no meio dos bairros mais ricos.

A forma com que a elite brasileira vê o lugar dos pobres na cidade está muito bem expressa em uma capa, já antiga, de 2001, de seu melhor porta-voz, a Revista Veja. Os bairros da cidade "que vale", coloridos, com espaços verdes e prédios bonitos de grandes arquitetos, estão sendo cercados e ameaçados por um cinturão cinzento de "pobreza e criminalidade", como se pobres e criminosos fossem, na visão da Veja, a mesma coisa. Não há nada mais didático do que essa capa, para entender o que é o enraizamento cultural da segregação urbana e o impasse da habitação nas nossas cidades, um impasse criado pela nossa própria sociedade que reproduz invariavelmente a intolerância aos pobres: a eles só se dá o direito à periferia cinza, e sua aproximação é, por si, uma ameaça. Na lógica da revista, a solução parece ser a mais radical: fazer sumir quem tanto ameaça a cidade "de verdade". Esquece a Veja que quem faz essa cidade colorida funcionar são, justamente, os pobres das periferias.

Por tudo isso, o enfrentamento da "questão habitacional" ​é tão difícil. Começa pelo fato de que, ao longo do tempo, sutilmente separou-se a "habitação social" do resto do urbanismo. Urbanismo trata do "que vale": avenidas, pontes, melhorias urbanas, e a regulação pífia (porque geralmente impera a lei do vale-tudo) do mercado imobiliário de escritórios e habitações de alto padrão. Porém, dar moradia, e portanto fazer cidades, para os cerca de 40% da população das grandes cidades que vive em favelas, cortiços e loteamentos periféricos, isso não é urbanismo, é "política de habitação social". 

Assim, não é de se estranhar que não haja terra "barata" na cidade colorida da capa da Veja. Se não há, é porque, em nenhum momento nos últimos cem anos, as prefeituras fizeram investimentos ou esforços maiores para simplesmente comprar, desapropriar, e reservar parcelas de terra para a construção de moradias subsidiadas para os mais pobres (como o fizeram, vale registrar, todos os países ditos desenvolvidos nas décadas do Pós-Guerra). A política de habitação social, ou o urbanismo das periferias, limitou-se a fazer conjuntos insuficientes, impessoais e distantes, construindo verdadeiras cidades-dormitórios que de urbano não tinham nada. Mas, para a grande maioria, a solução foi a autoconstrução, baseada nos mutirões de domingo para "bater laje" e numa incrível engenhosidade, que deu a verdadeira cara das nossas grandes cidades e suas infinitas periferias avermelhadas.  

O Estatuto da Cidade, aprovado em 2001, teria como função a de dar aos municípios poderes para reter terras na cidade "que funciona" e destiná-las à habitação social. Por meio de uma série de instrumentos de nomes complicados como o Direito de Preempção, as Zonas Especiais de Interesse Social, o IPTU Progressivo, o Usucapião urbano, as prefeituras deveriam poder combater a retenção especulativa de terras nas áreas mais centrais e ampliar a sua disponibilidade para a produção de habitações mais baratas.  Porém, passados 12 anos, duro é constatar que são pouquíssimos, para não dizer nenhum, os municípios que efetivamente aplicaram o Estatuto da Cidade de forma integral e sistêmica, sobrepondo os instrumentos e utilizando-os de forma incisiva para combater a segregação urbana. A verdade é que a lógica da capa da Veja parece ainda ser a que impera, e não há notícias de uma prefeitura que tenha de fato assumido politicamente o peso da democratização da cidade. Pois é disso que se trata: enfrentar a cultura segregacionista da sociedade, brigar pela inclusão dos pobres no espaço urbano, impor a diversidade social nos processo de urbanização,  forçar o mercado a construir prédios simples ao lado dos de luxo, com o risco real de perder as eleições seguintes. 

Pior, nas raras vezes em que se conquista algum direito para os mais pobres, ele é solenemente ignorado. Como diz a urbanista Ermínia Maricato, a Lei no Brasil só se aplica quando interessa, e este não é o caso: quando prédios vazios em áreas centrais, que são ilegais perante o Estatuto da Cidade (por imobilizarem os recursos públicos em infraestrutura e não cumprirem sua função social), são ocupados por movimentos de moradia, a justiça  pende invariavelmente para o lado da defesa incondicional da propriedade (mesmo que inutilizada), e não do direito de moradia (um direito fundamental da Constituição) e manda desocupar, muitas vezes de forma violenta como ocorreu no trágico episódio do Pinheirinho e em tantos outros. Em outro exemplo, o das operações urbanas, a lei estabelece que fazer habitação social para a população removida de favelas na área da operação deve ser ação prioritária, e feita antes da construção dos túneis e avenidas. Até hoje, espera-se que isso aconteça nas grandes operações de São Paulo. As pontes, elas já estão feitas há tempos (ver postagem aqui).

Enquanto isso, ao longo de décadas, em decorrência de um modelo econômico que concentrou indecentemente a renda, a população mais pobre só fez aumentar, como aumentaram ao mesmo tempo os bairros precários das periferias. Hoje, são parcelas equivalentes a metrópoles inteiras que vivem mal, longe do trabalho, provocando movimentos pendulares de deslocamento trabalho-casa-trabalho, sem infraestrutura, na insegurança, pois nessas áreas o Estado pouco se faz presente, exceto em seu papel opressor de manutenção de uma ordem que não se consegue mais manter.

Ao mesmo tempo, os bairros coloridos e verdes da capa da Veja acharam por bem isolar-se, individualizar-se, recusar a rua e a cidade como espaços de vida públicos, entocando-se em falsos paraísos fortificados, endeusando o carro e seus fetiches  como o único meio de transporte que vale. Não são eles que estão cercados, são eles que se entrincheiraram.

Diante de tal cenário, fica cada vez mais difícil entender que a cidade verdadeiramente colorida e agradável, é a cidade aberta, democrática, diversa, com praças públicas, mercados populares e calçadões cotejando os shoppings de luxo. Com habitações de todas as rendas dividindo  os mesmos bairros. Essa é a cidade segura, solidária, sustentável (como tanto gostam de dizer).​

​Então, a política habitacional é difícil, porque ela demanda, antes de tudo, um gigantesco enfrentamento político e cultural: o de convencer a sociedade de que  a boa cidade é a cidade para todos. E que, ao promover  justamente o contrário, estamos avançando cada vez mais na tragédia urbana. A boa política habitacional ocorrerá quando cessarem os projetos urbanos que ignoram (ou consideram timidamente apenas para se fingirem de democráticos) a oferta significativa e em proporções nunca antes vistas de habitações sociais no meio dos bairros nobres da cidade "que funciona". 

(continua...)

Nota:

(1) Em são Paulo, toda a região de Pinheiros está recebendo cabeação enterrada, dizem até com tecnologia de fibra ótica. A ponte estaiada, no mesmo bairro, custou mais de 150 milhões, a Escola de Dança que o Governo do Estado quer implantar na Cracolândia, por sua vez, tem orçamento de....R$ 600 milhões!​ Os túneis sob o Ibirapuera e o Rio Pinheiros, e a gora o novo túnel de acesso à Imigrantes pela Av. Roberto Marinho, são obras de custos faraônicos. Mas dinheiro para terra para habitação social, isso nunca há.