Em que pé ficamos?

Passada a histórica semana de mobilizações, e enquanto manifestações ainda perduram país afora, agora com feições das mais diversas, podemos certamente tirar algumas conclusões, e sobretudo pautar elementos de reflexão neste difícil e delicado momento político. Trata-se, mais uma vez, de uma postagem longa, e peço desculpas por isso. 

De início, vale dizer que o Movimento Passe Livre (MPL) foi sem dúvida o grande vencedor do processo, e emergiu - agora com o status de quem foi recebido até pela presidência - como um força política alternativa, baseada em algumas características novas no cenário brasileiro:

- é composto por jovens e consegue mobilizar muita gente, o que contrasta com a enorme dificuldade dos partidos tradicionais em compor suas "juventudes partidárias", carcomidas desde cedo pelos vícios dos mais velhos;

- defende uma questão de fundo que toca problemas estruturais que o país enfrenta: a defesa da política intransigentemente pública, transparente e livre de corrupção, e a inversão dos investimentos públicos em setores verdadeiramente prioritários. Faz isso usando a questão da mobilidade (poderia usar outros temas, como a saúde, a educação, etc.), e com isso, traz à tona a centralidade da questão urbana. Afinal, é na cidade que se efetivam territorialmente e fisicamente as graves consequências de um país que há séculos só faz política para as elites - incluindo ai a opção preferencial histórica pelo automóvel em detrimento do transporte de massa;

- organiza-se de forma horizontal, sem hierarquias ou lideranças por representação (o que lembra muito a prática lançada no início dos anos 2000 pelo Fórum Social Mundial), ao contrário da maneira tradicional dos partidos políticos. Apoia-se nos meios de comunicação em rede desta geração, conseguindo extrema agilidade de mobilização. Diminui os impactos negativos de uma ou outra declaração menos precisa ou madura (o que é frequente nos partidos que depositam toda sua representatividade em uma única pessoa) contrapondo-as com um conjunto de declarações de inúmeros membros, sem que nenhum deles assuma alguma liderança especial: todos falam em nome de todos e, entre erros e acertos, constroem um discurso consistente, bem embasado e muito preciso. Deram um baile na Globo, com suas contra-declarações desfazendo as tentativas de manipulação da gigante midiática, e ganharam de dez a zero no Roda Viva, ao desfazer-se com agilidade das capciosas perguntas dos entrevistadores, que tentavam a qualquer custo rotulá-los e fazê-los dizer o que não queriam.

O MPL soube conduzir as manifestações e chamar para o enfrentamento pacífico, em resposta à inaceitável violência da polícia (cuja ordem para agir ainda deveria ser melhor investigada). Aliás, essa prática repressiva das manifestações não vem de hoje, como me lembrou uma colega querida aqui da USP, é interessante observar que quando a polícia desceu a lenha com a mesma truculência contra os estudantes da USP, ano passado, a mesma mídia que hoje "indignou-se" (mudando de lado repentinamente) contra a violência policial não só não dava a menor bola como até incentivava a ação contra os "vagabundos" da USP. Mas, acima disso, ficou marcado o método de ação da polícia de São Paulo (que se repete pelo país), que começou combatendo as manifestações com o mesmo método que atua, no dia a dia, nas periferias. Nesse sentido, o enfrentamento teve o mérito - que as autoridades do Estado não devem ter previsto - de tornar bem mais compreensível para as classes médias o que a população da periferia vem denunciando há alguns anos (vide o grupo Mães de maio), do terror que virou regra nas áreas periféricas da cidade, em uma política de segurança que é a das que mais mata, porque, nesse caso, as balas não são de borracha. 

O MPL soube também retirar-se do processo quando percebeu que este estava sendo manipulado pela grande mídia, e tomando feições antidemocráticas e ultra-conservadoras. Mesmo sem ser partidário, mostrou-se solidário aos partidos quando estes foram perseguidos por grupos fascistoides, mostrando sua compreensão da importância dos atores políticos. Escrevi aqui que talvez tenha demorado um dia demais para retirar-se, mas não há culpa a lhe imputar, por querer ter mantido uma manifestação que era, a princípio, para festejar sua retumbante vitória.

Enfim, cabe também ao movimento que o MPL lançou o mérito de promover um processo de politização de inédita rapidez e enorme importância: nunca tão rapidamente o país dedicou-se a discutir políticas públicas, e o Facebook, como apontou o Gilberto Maringoni, passou a ser bem mais interessante, servindo agora a discussões mais profundas e engajadas do que as futilidades habituais (uma espécie de Orkut 2).

Os acontecimentos da semana também serviram para escancarar para a juventude  a real dimensão do que se chama de "golpismo da mídia" no Brasil. Acho que as vezes as argumentações dos mais velhos deviam soar exageradas nos ouvidos de uma geração bem mais habituada à liberdade de expressão. A fraude da Proconsult, envolvendo a Globo (o caso é retratado no documentário Beyond Citizen Kane, sobre a rede de TV brasileira), desmascarada por Brizola nas eleições do Rio em 1982,  a manipulação do famoso último debate da Globo do Lula contra o Collor, em 1989, as boatarias contra o "sapo barbudo e o financiamento de Cuba" nas eleições do Lula, e assim por diante, deviam lhes parecer histórias anecdóticas de um passado recente, mas que não existia mais.

Surpreenderam-se tanto os jovens mais politizados, do MPL e simpatizantes, bem conscientes de suas reivindicações, como a juventude da "nova classe média", recém incorporada à uma mobilização cívica de massa e com ainda pouca vivência política. Os primeiros viram com muita raiva o seu movimento ser cooptado por um discurso conservador e anti-democrático, os segundos tinham ido às ruas insuflados pela mídia, mas de coração aberto, de branco e com bandeiras do Brasil, e de fato indignados com "tudo que está por ai", sem especificar muito. Como testemunhei pelas perguntas assustadas e indignadas que recebi, surpreenderam-se e nada entenderam ao se ver confundidos com novos-ricos "patriotas" que de repente deram ao movimento ares de golpismo à la Venezuela.

A manobra consistiu mais ou menos no seguinte: aproveita-se o vácuo deixado pela "vitória" obtida pelo MPL com a anulação do aumento, e na manifestação de festejo, a falta de foco e a generalidade das manifestações é usada em intensa propaganda midiática para deslocar o alvo das críticas para o Governo Federal. Exceto a questão dos gastos da Copa, que mesmo assim deve ser dividida com os Estados (que são os grandes investidores de fato), protestos vistos nas ruas contra temas que não têm absolutamente nada a ver com a presidente Dilma lhe são subitamente direcionados: a PEC 37 (outra "reivindicação" bem mais complexa do que parece, e em muito construída pela Globo e a mídia), a "cura gay", a renúncia do Renan Calheiros, insatisfações referentes exclusivamente ao Congresso Nacional, ou ainda as tarifas de ônibus que, embora tenham influência federal, dependem sobretudo de questões municipais. De repente, com total desfaçatez, se ouvia comentaristas das rádios e telejornais, com ênfase aos dos sistema Globo de TV e Rádio, falando incansavelmente das "manifestações contra o governo Dilma Roussef".

Nas ruas, o passo seguinte era previsível, e muito rápido: a entrada em cena de provocadores profissionais, jovens de perfil misterioso, que passaram a promover atos "violentos" típicos para causar instabilidade, pois chocam especificamente a opinião pública de classe média, espectadora atenta da Globo e afins. Atacam por um lado o que é mais sagrado para uma população recém-encantada pelo hiperconsumismo, a saber a propriedade privada e o mundo do comércio, depredando lojas de carros e bancos, e por outro lado aquilo que representa mais facilmente o "bem tomado pelo mal" (e que de lá deve ser extirpado mesmo que à força, entenda-se a simbologia da coisa), ou seja, prefeituras e outras repartições públicas, indiscriminadamente. Na esteira, com a inação da polícia, que se torna então suspeitosamente "incapaz" de discriminar manifestantes do bem de agitadores mal-intencionados (não parece muito complicado discernir grupinhos de 6 a 10 pessoas entretidos em destruir coisas), o caminho fica livre para, aí sim, a ação de grupos que querem mesmo briga, skinheads, neonazistas e afins, e por bandidos mesmo, que se aproveitam do momento para saquear o comércio e levar televisões. Na prática, tudo contribui para a instalação de um clima de insegurança. Interessante observar como, para a polícia, pichar ônibus e latas de lixo é vandalismo dos mais graves e mereceu a mais rígida repressão, enquanto quebrar a prefeitura ou carros em lojas foi observado como total benevolência.

Daí para o fomento da instabilidade política e do golpismo de fato, é um pequeno passo: incentiva-se em todos os canais o ressurgimento de um "movimento pela pátria", clamando-se para ir às ruas de verde e amarelo, "contra os partidos", o que na prática significa dizer "contra os partidos de esquerda que vão às ruas, e mais especificamente contra o PT de Dilma e Lula". De uma postura veemente contra a "baderna", gente como o Datena passam a lembrar com voz trêmula de emoção e patriotismo (eu vi) as diretas já, os carapintadas anti-Collor, clamando a beleza da mobilização cívica "por um Brasil livre de corrupção". A Folha que em editorial antes da repressão policial falava em "grupelhos" de "jovens predispostos à violência por uma ideologia pseudorrevolucionária", com a "intenção oculta de vandalizar equipamentos públicos", e clamava pela ação da polícia,  de repente torna-se a mais ativa defensora da "mobilização pacífica" por um outro Brasil (outro, entenda-se, do que o da Dilma). As duas falas do (infeliz) Arnaldo Jabor são uma aula de como se deu essa mudança de postura repentina, insensata e descaradamente mal intencionada da grande mídia (ouça aqui, e aqui).

A "inflação" que vem sendo cuidadosamente trazida para a agenda política nos últimos meses (embora ela não tenha se alterado mais do que o normal) aparece nos comentários da TV como um dos "temas centrais" das manifestações, embora poucos cartazes tenham sido vistos falando disso, o outro tema sendo, evidentemente, a tão genérica e odiada "corrupção". Esta sim um problema endêmico da nossa sociedade, sobre o qual falarei adiante, mas nem de longe um tema ao qual a Dilma possa ser individualmente identificada mais do que os parlamentares em geral, já que ela vem invariavelmente afastando qualquer colaborador sobre o qual pairem suspeitas (algumas delas comprovadamente falsas, o que a mídia não fala). Aliás, essa corrupção apontada pela mídia é uma corrupção estranha, pois se centra nos "petralhas" do mensalão, como se esse fosse o único problema (e como se a compra de votos não fosse prática generalizada há décadas - e condenável - em todas as esferas parlamentares do país) e como se só houvesse políticos corruptos, mas nunca uma elite altamente corruptora. Esta é cuidadosamente protegida pela mídia, evidentemente.

Nesse quesito, o PT paga (merecidamente) o preço do mensalão, de ter feito política "como todos" para conseguir alçar-se ao poder (mesmo que depois, ao meu ver, tenha promovido políticas bem melhores do que os outros), comprando votos, fazendo caixa 2 em campanhas, promovendo alianças políticas com setores sabidamente corruptos, e assim pode ser legitimamente cobrado pela mídia, mesmo que mais intensamente do que os outros. Dilma e os "petralhas" viraram alvo dos protestos contra a "corrupção", muito embora o PT, segundo o próprio TSE, tenha até hoje tido 2,9% de seus políticos cassados por corrupção (o que é assim mesmo inaceitável), bem pouco ao lado dos 17,1 % do PSDB, dos 19,5% do PMDB ou dos 20,4% do DEM. Se o foco era a corrupção, o Governo Federal podia até ser usado como alvo, mas não na figura de Dilma e seu partido, mas sim do do vice-presidente.

Outro preço pago pelo PT e que foi cobrado nestes acontecimentos, foi a opção por trazer a Copa e as Olimpíadas para o país. A lição do Pan do Rio, afundado em acusações de corrupção e desvios de verbas, não serviu de alerta. O Governo federal e todos seus aliados em Estados e Municípios cederam aos encantos do modelo do "urbanismo de mercado". Promovem a eterna confusão entre crescimento e desenvolvimento, achando que as montanhas de dinheiro - extremamente concentrado nas mãos de poucos - movidas por esses eventos "alavancam" a economia mas, sobretudo, douram sua imagem de políticos competentes. Na verdade, é evidente que servem ao enriquecimento de alguns grupos muito específicos: empreiteiras, grupos de comunicação, setor da construção civil, mercado imobiliário e instituições altamente perniciosas, como a CBF. Mas pouco ou nada disso é de fato redistribuído. Até mesmo os "ganhos" no aquecimento comercial são questionáveis, pois duram pouco e vêm sendo disputados pelos próprios organizadores dos eventos, que definem o que se vende e o que não se vende. Estes (em quem ninguém votou) promovem então um regime de exceção, em que vale tudo, desde alterar as leis (a tal Lei da Copa) até determinar onde e como devem ser feitos os investimentos em infraestrutura (sobretudo de transporte). Pode-se dizer que o urbanista mais influente hoje no país chama-se Joseph Blatter, presidente da FIFA. Mas o mais grave é que as obras da copa promovem a concentração de investimentos em coisas inúteis, como por exemplo estádios que custam mais de bilhão em cidades que nem sequer têm equipe na primeira divisão, e que geralmente ainda têm grande parte de seu território sem, por exemplo, saneamento. A copa foi capaz, em São Paulo, de alavancar (e financiar com empréstimos públicos destinados ao evento) a construção de um monotrilho aéreo estapafúrdio, que nem sequer leva mais ao estádio dos jogos, uma vez que este mudou-se do Morumbi para o Itaquerão. Mas o monotrilho continua lá, indo para o Morumbi. 

Portanto, faz todo sentido se a reivindicação dos gatos incoerentes e pouco prioritários com a copa surgiu com força nas manifestações, pois era coerente com a reivindicação central do MPL. Colocou a Globo e a mídia em um impasse, pois não podiam furtar-se a apoiar também essa entre as outras reivindicações, muito embora, neste caso, façam claramente parte dos que ganham com os eventos e se associaram sem problemas com o PT para promovê-los. O irônico da história é que os mesmos setores da oposição, que agora perversamente se regojizam em ver o governo emparedado nessa questão, certamente fariam o mesmo ou muito mais se estivessem no poder. Por isso, seria um bom momento para se demarcar dessa aparente unanimidade política: São Paulo poderia anunciar, por exemplo, sua desistência da Expo 2020,  um outro evento dessa mesma linhagem, que irá comprometer fundos públicos consideráveis em nome do "crescimento" de Pirituba. Melhor seria alocá-los, por exemplo, na Tarifa Zero.

Então, voltando aos eventos de rua, tais fragilidades do governo alimentaram a munição da grande mídia, que se embrenhou em um contraditório mas implacável processo ideológico de manipulação da opinião. No ambiente internético, surgem imediatamente grupos "indignados" com o governo, apoiando seu discurso justamente nessas argumentações (dos gastos com a Copa e da corrupção), pois são de fato as que podem ser mais solidamente criticadas. Um certo grupo "anônimo", inspirado numa "estética" política de HQ, inicia massiva proliferação de idéias pouco fundamentadas, quando não claramente manipuladas, sempre com tom dramático. Defendendo esses argumentos aparentemente do "bem" em vídeos nunca assinados (clique aqui) mas cheios de manipulações de meia-verdades, contribui para a difusão do medo e da instabilidade. Tenho profunda irritação por essa maneira de difundir opiniões sem se mostrar, o que é de extrema covardia e típico das conspirações de direita. Reparem em todas as análises sérias feitas até agora dos acontecimentos, como as que eu passei no meu último post (clique aqui). São todas assinadas, uma premissa básica para a implementação da verdadeira discussão de ideias, não conspirativa, mas construtiva. 

Menos sutilmente do que esse grupo (que acaba agregando gente ingênua e bem intencionada), aparecem também as histórias mais escabrosas de complôs fomentados em Cuba, de invasões subversivas por meio de médicos importados que na verdade são agentes do esquerdismo, acusações de todo tipo que misturam sem pudor questões do legislativo com problemas do judiciário, gargalos dos municípios com políticas estatais específicas, tudo na conta da presidenta. 

Embora não sejamos todos, ainda bem, obrigatoriamente apoiadores da presidente (eu sou, com muitas ressalvas), daí a validar uma manobra que leva então a falar de "impeachment" em um momento em que, ao contrário, se consolida o processo democrático no Brasil, é um passo um tanto forçado.

Mas essa tão cristalina manobra da direita e a participação escancarada dos jornais e TVs talvez tenha sido uma grande oportunidade de aprendizado político, sobretudo para os jovens. É capaz que isso no fim tenha sido um tiro no pé, da Globo e afins, que saem do processo mais desacreditados do que já eram. Que logo mais tenhamos uma verdadeira campanha de boicote à Veja, Folha e demais, ou ainda de questionamento (nas ruas?) ao sistema de concessão de TVs e Rádios no Brasil, não será de surpreender, e é por ai que esses gigantes da comunicação são realmente frágeis. Aliás, segundo o Paulo Henrique Amorim (clique aqui), já há uma manifestação marcada pelos movimentos de comunicação, na frente da Globo, na quarta-feira dia 3 de julho.

O fato é que o governo sentiu o golpe: apesar de sua inabalável autoconfiança por causa dos aumentos substanciais do emprego, da população assalariada, do salário mínimo, do relativo aquecimento econômico, da ampliação das universidades federais e dos esforços em educação, dos programas corretos de reinserção social dos mais pobres (em especial no NE), surpreendeu-se em aparecer de forma tão drástica - e injusta, diga-se - como o grande vilão da história, por causa da Copa, da inflação, da corrupção, da PEC37, do Feliciano, do Renan Calheiros. Era necessário reagir à mobilização da mídia e dos setores conservadora, o que a presidenta fez.

A fala da Dilma foi importante. O que poderia ela fazer, para sair de tamanha saia justa, de ter que defender-se de tudo e de nada, de argumentos reais porém manipulados? A melhor saída era a de aproveitar o momento para, agora na sua vez, emparedar os políticos brasileiros: estão cobrando moralidade, ética, investimentos públicos? Então cobrou Estados e Municípios por suas responsabilidades, ao chamá-los para um compromisso contundente com o transporte público e a saúde. Cobrou dos parlamentares um compromisso contra a corrupção, e sua adesão a projetos já apresentados pelo seu governo, como a destinação dos royalties do pré-sal para educação, tão contestada no Congresso. Mais do que isso, aproveitou o momento político para forçar o Congresso a discutir a tão necessária reforma política, que nem Lula nem ela conseguiram até hoje alavancar. Obviamente não cabe a ela lançar uma constituinte, nem cabe a ela garantir que municípios faça, a opção pelo transporte público. Na prática isso não depende tanto dela. Sua manobra sutil foi de jogar no colo de quem tem tais responsabilidades a cobrança por assumi-las. Foi um gesto politicamente inteligente. 

Evidentemente, Dilma deixou de lado, sutilmente, a explicação da questão da Copa. Deu uma explicação pouco consistente sobre os gastos, deslocando para os Estados parte das responsabilidades e assegurando que os investimentos públicos da Copa vão para gastos em infraestrutura, o que pode ser verdade, mas não resolve as questões apontadas logo acima, sobre a prioridade e pertinência dessas infraestruturas. Dilma também minimiza a escala que as manifestações tomaram e a violência da reação estatal, ainda mais em praças onde ocorrem jogos da Copa das Confederações. Assim, também joga, neste caso a responsabilidade aos governos estaduais, o que é em parte aceitável, já que a Copa e a defesa de seus interesses foram alavancados e patrocinados pelo Governo Federal. Mas, não seria de se esperar que a presidente abrisse a guarda nesses pontos frágeis. No tabuleiro político, reagiu inteligentemente. 

A resposta dos partidos de oposição, que a acusam de ter "atropelado o congresso" são o termômetro do sucesso da sua fala. Na prática, é exatamente isso: já que essa reforma, sem dúvida o maior entrave para um real avanço democrático no país, não sai e nunca sairá por iniciativa do Congresso (os principais perdedores de uma reforma que pode mudar as lógicas de poder e de seus privilégios), nada melhor do que aproveitar a mobilização nacional e convocar uma decisão direta dos eleitores que a alavanque. Resta saber se como e quando isso se dará. Especialistas em Política como o Prof. Janine Ribeiro já disseram que não é verdade que uma constituinte exclusiva não seja possível (clique aqui), mas essa é outra história.

O que soa pouco sério e ver a reação de gente como o FHC, com a moral de quem alterou a constituição para garantir sua reeleição, com acusações de compra de votos (como o mensalão) saírem dizendo que a proposta de Dilma era típica de governos autoritários. Ainda bem que a própria Folha, com a Mônica Bérgamo, lembrtou que ele mesmo " já defendeu uma constituinte restrita para a reforma política, como a presidente Dilma Rousseff", quando apoiou em 1998, proposta nesse sentido do deputado Miro Teixeira (PDT-RJ). Bérgamo indica que, embora juristas da oposição tenham imediatamente cerrado fileiras contra a fala da Dilma apontando a inconstitucionalidade da sua sugestão, uma constituinte para a Reforma Política "já foi aprovada na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara em 1997" e não avança, por assim dizer, por corpo-mole dos próprios deputados, pouco interessados na questão.

A reação da oposição mostra o acerto da movimentação da presidenta. Agora a boal não está mais (tanto) com ela. Mas, enquanto isso, como ficam as reivindicações das ruas, o movimento lançado pelo MPL? Podemos dizer que se ele for responsável por lançar a reforma política no Brasil, essa será sem dúvida sua mais impressionante vitória.

Mas a mobilização do MPL ainda se concentra em discutir, com razão, a gratuidade do transporte público no país. E junto a ele, outras reivindicações de outros grupos organizados ganharam corpo, mostrando uma faceta louvável das manifestações: elas deram visibilidade a movimentos sempre reprimidos que, na esteira das manifestações de massa, promoveram manifestações dispersas por motivos justos e há muito tempo reivindicados: o direito á moradia, à terra urbanizada, aos serviços básicos, e assim por diante. Enquanto, sentindo a reação governamental, a grande mídia arrefeceu os ânimos e parou de incentivar abertamente as manifestações "cívicas e pacíficas" da classe média nos bairros nobres, houve um claro deslocamento geográfico das mobilizações, que migraram para a periferia, comandadas por movimentos populares organizados. Sindicatos, movimentos de moradia e outros continuaram as mobilizações, mas agora na Zona Sul da cidade, nas cidades da região metropolitana, em bairros pouco habituados a serem citados nos telejornais. Sutilmente e perversamente, quando enfim as mobilizações deixam de ser genéricas e começam a apontar coisas concretas, mas que não interessam a quem quer manter o status quo, a mídia diminui o ritmo da cobertura, deixa de dar-lhes um tratamento cívico e nacionalista e os remete, novamente, para a gaveta dos fatos comuns, onde eles sempre estiveram. Tive o "prazer" de ouvir o imortal comentarista da CBN Nerval Pereira (que entrou para a ABL com um livrinho tosco de artigos anti-Lula) falar que agora as manifestações  estavam focando assuntos utópicos, esquerdistas e "incompreensíveis", como a "questão do latifúndio urbano", ou uma "tal de reforma urbana", mostrando que ele nunca sequer ouvir falar na questão da terra e da moradia. Mais algumas semanas e essas mobilizações serão acusadas de atrapalhar o trânsito.

E o Haddad, como fica nisso tudo? Quem me conhece sabe do meu apoio ao Prefeito. Os militantes mais engajados do MPL e das manifestações iniciais mais legítimas, lhe cobram uma ação mais rápida, mais transparente e engajada. Criticam que tenha aparecido com o Governador para anunciar as tarifas, e que tenha tratado o assunto de forma demasiadamente técnica. Criticam sobretudo o vácuo político no comando da cidade quando da violenta repressão policial. Concordo com tais críticos, e escrevi aqui que este último aspecto tinha sido o principal erro do prefeito: em Paris com o Governador para defender a duvidosa candidatura de SP à Expo 2020, não percebeu a gravidade da coisa e de início a força da ordem repressiva que havia sido dada por seu colega. reagiu contra a ação da tropa de choque, mas tarde demais.

Porém, para quem está pela primeira vez no comando executivo, ainda mais em uma cidade com a de SP, acho que ele saiu-se razoavelmente bem: respondeu à reivindicação técnica do MPL com argumentações técnicas, evitando cair na seara confusa de reivindicações genéricas que nem lhe diziam respeito. Foi dos poucos governantes a imediatamente convidar o movimento a participar de um fórum importante da cidade. Como sou do Conselho da Cidade, não diria aqui que esse é um espaço "para inglês ver", pois não é essa a sensação que temos. Fui do Conselho de Política Urbana nas gestões passadas, e abandonei o mesmo quando vi que ele era pura fachada. Não é o caso, até agora, do Conselho da Cidade. Muitos argumentam que nada se soube do que ali foi dito, mas a verdade é que o conselho tem suas sessões abertas e a mídia estava presente em massa. Evidentemente, não deu ao encontro destaque que merecia, pois não era de interesse da movimentação em curso, mas o discurso do prefeito foi depois divulgado nas redes sociais. Eu acredito que a reunião do Conselho, se não foi evidentemente o único fator, foi um dos que mais pesou para a decisão, logo no dia seguinte, da redução da tarifa. Afinal, o Conselho da Cidade não é composto só por apoiadores do prefeito, e tem representantes de todos os setores da sociedade civil. Naquela ocasião, posicionou-se em massa a favor do MPL. Agora, instado a posicionar-se, por pressão do mesmo MPL e da população, sobre a licitação dos transportes públicos, suspendeu-a, respondendo à reivindicação. Propõe criar um conselho um conselho municipal dos transportes com a participação dos usuários, movimentos sociais, empresários, Ministério Público e governo, e onde irá abrir as planilhas e mostrar os custos do sistema. Uma atitude corajosa frente ao lobby poderoso das empresas de transporte. Não rebato aqui as críticas naturais que um governante deve receber (assim como as que apontei contra o Governo Federal), e não discuto a rapidez (ou falta de) das reações do prefeito ás reivindicações, pois isso é parte da função. Mas acredito que, nesta questão dos transportes, o prefeito vem mostrando que sabe ouvir.

Mas, já que falamos da licitação dos transportes em São Paulo, vale então fazer uma reflexão final, a mais importante. Ocorre que a questão central, aquela que realmente mobilizou os jovens a ir para as ruas, por debaixo da reclamação da tarifa de ônibus é de fato extremamente pertinente, e desta vez, sim toca a questão da corrupção em sua verdadeira dimensão (e muito além do mensalão): é a relação, generalizadamente perversa e contaminada pela desonestidade, entre governos e empresas privadas no Brasil, em torno das chamadas concessões e licitações. Licitações para obras e serviços públicos são minas de dinheiro fácil. Acontece que tais licitações se dão em torno de obras que, fisicamente, se realizam no espaço, e mais especificamente no espaço urbano. Coleta de lixo, manutenção urbana, pedágios, transporte, controle ambiental, construção de pontes, túneis, estádios para a copa, tudo ou quase tudo que faz a cidade funcionar depende dessa relação perversa entre o público e o privado. Assim, mesmo se há boa intenção em promover determinado serviço (fazer funcionar uma linha de ônibus, por exemplo), licitações de má fé, concessões dúbias, contratos duvidosos, desvios de fundos fazem com que tais serviços acabem sendo muito mal realizados. Com o tempo, tamanha ineficiência cobra seu preço: as cidades, simplesmente implodem, entram em uma crise funcional irreversível. Isso quando não são inventados serviços inúteis, que só atrapalham, mas dão muito lucro aos concessionários. Enquanto as cidades se perdem nessa lógica perversa, as periferias e os bairros pobres continuam no abandono, exacerbando ainda mais o contraste entre obras inúteis - modernos estádios de futebol, por exemplo -, e a falta de serviços básicos essenciais para os mais pobres. As famosas Parcerias Público-Privadas, as PPPs, foram uma forma de "modernizar" a relação Estado x setor privado, sem que necessariamente tenha-se resolvido as suas perversidades. Soam mais modernas, mas geralmente escondem, da mesma forma, indecente favorecimento ao lucro privado, a partir do dinheiro público. O Estado continua sendo assim o maior sustentador da "livre iniciativa".

Aí está certamente o maior problema dos transportes e de tantos outros serviços urbanos no Brasil. O nó é que moralizá-lo não depende apenas da presidente da república. A relação perversa e desonesta entre órgãos públicos e setor privado se reproduz como uma doença em todas as esferas de governo, da cidadezinha de 3 mil habitantes a Estados inteiros. São minas de ouro à disposição, cuja exploração satisfaz a todos que levam o seu quinhão: políticos desonestos, empresários igualmente desonestos, etc.

Uma das características de Fernando Haddad é a de acreditar que é possível sanear e moralizar essa relação, inclusive nas PPPs. É uma aposta. Eu particularmente tenho muitas dúvidas que isso seja possível. Mas está aí de fato um foco que parece difuso, pois se aplica a uma enormidade de situações, mas é bastante específico, e que pode nortear de maneira homogênea as manifestações futuras, inclusive para o MPL: exigir uma "operação mãos limpas" para todas as concessões, licitações e parcerias que ocorrem hoje no país. Aí sim estaremos diante de uma reforma com profundo poder de transformação. Resta saber se isso pode ser feito sem dramas, pois trata-se de jogo de bandido grande.

Por isso mesmo, aumenta a importância do que aconteceu e a força e necessidade das mobilizações. Seria de fato uma tremenda perda se a partir de agora todos voltassem aos seus mundos, deixando que a vida política volte às mãos de quem sempre a fez. Se as manifestações de junho forem de fato um momento de inflexão na participação política dos brasileiros na condução dos rumos do país, estamos às vésperas de tempos de verdadeiras transformações. A suspensão da licitação dos ônibus de São Paulo, que passou bem desapercebida na mídia, pode ser o começo de um processo muito maior. E o MPL está de parabéns.