LARGO DA BATATA: DO POPULAR AO ELITIZADO: Entrevista a Amália dos Santos - Gazeta de Pinheiros

Publicado em 17/01/2014

Entrevista a Amália dos Santos - Gazeta de Pinheiros (clique aqui para ir ao original)

O debate sobre a “reconversão” do Largo da Batata, em entrevista com o professor João Sette Whitaker Ferreira.


Antes ocupado pelo comércio popular, Largo da Batata muda a cada dia com a chegada do metrô e do mercado imobiliário / Grupo 1 de Jornais

Antes ocupado pelo comércio popular, Largo da Batata muda a cada dia com a chegada do metrô e do mercado imobiliário / Grupo 1 de Jornais

Quem passa hoje pelo Largo da Batata vê uma grande área cortada pelas muitas pistas da Avenida Brigadeiro Faria Lima. Com a aproximação do fim das obras, fica a dúvida sobre o destino da região, que tem uma importante história como espaço de comércio e convívio.

 

Segundo o professor João Sette Whitaker Ferreira da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP, esse uso intenso é alvo do mercado imobiliário, que vê no Largo um grande potencial de mudança. A seguir, ele conta mais sobre suas memórias, a relevância e o potencial desse espaço emblemático da cidade.

 

Antigo mercado dos caipiras, anos 1910 / Família Goldschmidt

Antigo mercado dos caipiras, anos 1910 / Família Goldschmidt


Gazeta de Pinheiros – Como era a sua relação com o Largo da Batata antes das obras?


João Whitaker - O Largo da Batata era historicamente um ponto de comércio, conhecido como Mercado Caipira. Dele, surgiu o Mercado de Pinheiros, que recebeu em 1968 um lindo projeto dos arquitetos Eurico Prado Lopes e Luiz Telles, os mesmos que depois fariam o projeto do Centro Cultural São Paulo. O mercado manteve a vocação do lugar, tornando-o um subcentro importante na cidade. Por isso, ele manteve sempre esse caráter popular. Nas redondezas do mercado, uma feira ao ar livre vendia de tudo um pouco.

Era um local cheio de gente, democrático, com confluência de linhas de ônibus e de ruas comerciais, que eu conheci na minha adolescência, quando cheguei ao Brasil, onde nunca havia morado. Era lá que pegava o ônibus para o colégio, e adorava sempre que possível perambular pelas barracas da feira, pelo mercado, pelas lojas. Aquela riqueza cultural e social era, para mim, o retrato do Brasil.

GP - Um dos argumentos centrais para a remodelação do Largo é a “deterioração” do espaço. Como você vê essa avaliação?

JW - A “deterioração” de um espaço urbano é, antes de tudo, um termo ideológico. Ele “força” uma interpretação negativa daquele espaço, que é considerado “deteriorado” para quem tem outros interesses na área. O Brasil é um país que produz cidades segregadas. Essa forma de vida urbana renega a cidade, a rua e toda a riqueza da interação cultural e social que a cidade permite.

Quando a Faria Lima passou a ter suas extremidades sob a mira do mercado imobiliário, com Operações Urbanas, a natureza popular do Largo da Batata, da sua feira e de seu comércio, passou a incomodar os objetivos de valorização. A ideia de “requalificar”, “revitalizar” essa área começou a ser cada vez mais ouvida, apesar da incrível e rica vitalidade que a área já tinha.

GP - Como você julga o concurso, as obras e as projeções para a conclusão da remodelação?

JW - O concurso não podia dar certo do ponto de vista de quem valoriza a cidade democrática e, portanto, o Largo tal qual ele existia. Pois seu edital era drástico em direcionar o projeto urbanístico para uma espécie de “limpeza social”, tirando de lá os resquícios populares. A intenção era “reconverter”, ou seja, deixar o passado popular “condenável” e dar a chance de tornar o Largo digno e de alta classe. O que se queria ali era retirar os ônibus e elitizar a região.


Imóveis vazios na região do Largo da Batata / G1J

Imóveis vazios na região do Largo da Batata / G1J

Embora o projeto tenha elementos interessantes, o concurso não tinha como dar um resultado diferente do que o que se vê agora: um espaço vazio, sem vida, estéril, que aniquilou o dinamismo da área e a transformou em mais uma passagem de carros. As obras intermináveis nem sequer permitem vislumbrar os poucos aspectos positivos, como a grande praça que foi prometida.

GP - Qual é a importância do Largo da Batata, na urbanização e no potencial de convívio?

JW - O Largo da Batata tem uma enorme importância urbanística como espaço de conexão. Mas essa confluência não pode ser pensada apenas para os carros, mas sim para as pessoas, que vão para seus trabalhos ou suas casas. Ele continua sendo um lugar de encontro, de parada. Como uma área de respiro na cidade, tem a função maior do espaço público, que é a confluência, a aglomeração, a manifestação.

GP - No seu blog, você trata, entre outras coisas, das desigualdades da metrópole de São Paulo. Podemos considerar que a má distribuição dos espaços públicos de qualidade é uma das manifestações disso? A remodelação do Largo pode ser considerada um reforço dessa condição?

JW - Sim, na medida em que se eliminou um espaço popular de encontro e de comércio para colocar no lugar outro, em que impera o fluxo de carros, em que há poucas áreas com qualidade de vida, arborização farta, espaços de repouso. Ironicamente, a ciclovia que acompanha toda a Avenida Faria Lima tem justamente ali seu pior trecho: cinza, pouco cuidado, sem árvores, com grades. Quem passa por lá nem percebe o pobre mercado, que continua ali, isolado e pouco valorizado. Não há mais traço da feira e sobrevivem a duras custas alguns renques de sobrados literalmente cortados ao meio pela avenida, uma ou outra loja popular e alguns espaços de samba.

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GP - Nas manifestações do ano passado, ficou evidente que o espaço público amplia as possibilidades de debate e reivindicação. Nesse sentido, como você vê a “tomada” do Largo da Batata, num dos momentos mais importantes daqueles acontecimentos?

JW - Eu vejo que vivemos uma revolução geracional. Quem faz as manifestações de hoje nasceu e cresceu após a ditadura – e até mesmo após a constituinte de 1988. Para esses jovens – sejam eles de classe média ou da periferia, que hoje começa a ter acesso aos estudos universitários –, os parâmetros de compreensão da vida em sociedade mudaram.

Eles indignam-se com a gritante desigualdade dos investimentos públicos, com as políticas “públicas” que só servem aos interesses das elites, com o abandono das periferias, com o favorecimento aos automóveis e o descaso com o transporte público. Começam a ver e usar o espaço público como tal e a transformá-lo no que ele deve ser: o palco verdadeiro das transformações sociais e urbanas. São eles que, de fato, “reconverteram” novamente o Largo da Batata, mesmo que por algumas horas, no que ele sempre foi: um espaço popular.


DESTAQUE:

 “De fato, os bairros não tombados, ocupados por sobradinhos pequenos (…) foram sendo reiteradamente e implacavelmente ‘devorados’ e transfigurados pelo mercado que, (…) sem proteção dos espaços públicos, sem redimensionamento das ruas, sem regulação do Estado (…), vai alinhando prédios cada vez mais altos (e shoppings, dezenas e dezenas de shoppings).”

Trecho extraído do post Cidade do apartheid: reflexões sobre o Plano Diretor de São Paulo, do blogcidades para que(m)?, escrito por João Sette. Confira em: cidadesparaquem.org.


Entrevista: Amália dos Santos,

arquiteta e colaboradora