Sobre 1964: O vergonhoso editorial da Folha de SP
/O editorial de 30/03 da Folha de SP é vergonhoso. De arrepiar. Um apanhado de opiniões veladas e de argumentações falaciosas que, ao defender o "respeito comum às regras e a renúncia à violência como forma de lutar por ideias", acaba transformando a ditadura em um "longo e doloroso aprendizado". Ao tratar os vinte anos de nefasta ditadura como um "aprendizado" - ou seja, em que o lado positivo prepondera - a Folha, em um discurso travestido de democrático, na verdade a legitima.
Antes de ler meu post, aconselho que leiam o editorial, clicando aqui.
Muita gente reclamou também do editorial do Estadão, de hoje, dia 31 (leia aqui). É verdade que o concorrente da Folha também apresenta uma peça de raro conservadorismo. Porém, discordo totalmente da comparação. O texto do Estadão emite uma opinião clara. Não argumenta veladamente a favor da ditadura. Apresenta sua visão sobre a conjuntura que levou ao golpe militar e sustenta que, naquele contexto, era um caminho que o jornal considerava inevitável. Derrapa apenas no final, quando opõe, em um argumento que é o fio condutor do editorial da Folha, o regime da ditadura à luta armada, um argumento caro aos que defendem hoje a tortura. Discordo completamente da visão do jornal, de quem não esperaria mais. Mas o Estadão tem o mérito de expor sua visão bem mais claramente, sem raciocínios enviesados que possam enganar o leitor.
A Folha não. Faz um texto tendencioso, em que as mensagens são subliminares, manipulando o senso comum para dar ao regime militar uma feição das mais positivas, e desculpando, com justificativas vergonhosas, seus abusos. Reitera a cada parágrafo o mesmo argumento final do Estadão, de que o período a ditadura tem que ser visto por "dois lados", ambos violentos. O argumento tosco de quem hoje clama pela volta dos militares, com quem a Folha parece cada vez mais alinhada. Argumento manipulador e desonesto, pois amplifica o peso da resistência armada - ação minoritária de grupos cujo tamanho era inversamente proporcional à enorme coragem de enfrentar o regime - para equipará-la ao onipresente aparato militar-estatal do Governo. Argumento perverso, pois desconsidera que por mais que possam ser questionados, os movimentos armados eram uma resistência violenta à uma violência ainda maior sem a qual eles não existiriam: o próprio Golpe d Estado.
A desinformação perpetrada pelo editorial da Folha começa, logo no primeiro parágrafo, com uma "explicação" sobre o caráter violento da ditadura:
"violência contra os opositores, perseguidos por mero delito de opinião, quando não presos ilegalmente e torturados, sobretudo no período de combate à guerrilha, entre 1969 e 1974".
O "sobretudo no período de combate à guerrilha" deixa a entender que, em outros períodos, a violência do regime foi menor, quiçá nem existiu. Para o leitor, passa-se a impressão de que a violência do regime foi "justificadamente" voltada contra os guerrilheiros, esses esquerdistas do mal que resolveram desestabilizar o país. De novo, o falso argumento de que havia "dois lados" equiparáveis.
Com uma frase dessas, a Folha "esquece", ou ao menos subestima o fato que o regime militar prendeu, torturou e matou não só militantes que aderiram a guerrilha, mas estudantes, sindicalistas, jornalistas, deputados, apenas por serem o que eram e defenderem o mais fundamental e sagrado direito do país: o da liberdade democrática. Fico pensando o que dirão, ao lerem a simplificação tendenciosa da Folha, os filhos e parentes do jornalista Vladimir Herzog, do deputado Rubens Paiva, dos estudantes Edson Luis e Alexandre Vanucchi Leme e tantos outros, que não eram guerrilheiros nem estavam no Araguaia, e exerciam sua cidadania nas mais diversas funções e profissões. Que fique bem claro para as novas gerações: a ditadura não foi uma guerra do bem (o Estado) contra o mal (os "guerrilheiros comunistas"). Foi um regime de exceção e terror, em que o amigo de sala ou o colega de trabalho podiam sumir da noite para o dia, em que falar demais era perigoso, e ter opinião podia custar a vida.
O parágrafo seguinte apresenta mais uma pérola: "Aquela foi uma era de feroz confronto entre dois modelos de sociedade –o socialismo revolucionário e a economia de mercado".
Com proposital imprecisão, a Folha insinua que o confronto colocado em 64 se dava na polarização entre "socialismo revolucionário" e "economia de mercado". É uma deturpação histórica, a recuperação do argumento norte-americano daquela época, para justificar o apoio dos EUA às sangrentas ditaduras latino-americanas contra a "ameaça comunista". Absolutamente falso: por mais que o contexto político pré 1964 fosse conturbado, por mais que Jango quisesse implementar reformas que não agradavam às elites oligarcas do país, nunca nem de longe poderia se falar que havia, no Brasil, uma correlação de forças que pudesse levar a um regime "socialista revolucionário".
Ao dizer que "polarizadas, as forças engajadas em cada lado sabotavam as fórmulas intermediárias" a Folha está pressupondo que "ambos os lados" eram ilegítimos e ambos os lados ensejaram o regime ditatorial. Ora, de um lado, tínhamos uma democracia com suas disputas, um presidente eleito, e tensões políticas normais dentro de uma democracia. Democracias podem entrar em crise, mas nem por isso se justifica o uso das armas e da força militar como saída.
(Parêntesis: o argumento de que Jango era vice e não tinha legitimidade, que não é usado pela Folha mas aparece por exemplo no editorial do Estadão, é falacioso e golpista. Atropela a constituição de então, que assegurava legitimamente a posse do vice - eleito - em caso de renúncia do presidente. Os militares tentaram aliás impedir a posse de Jango, e forçaram em seguida a Câmara a adotar um excepcional regime parlamentarista, para retirar o poder do presidente).
De novo, deixemos as coisas claras: com todas as instabilidades que a caracterizam, ainda mais em tempos de uma conjuntura internacional polarizada e instável, o que tínhamos no Brasil pré-64 era, ainda assim, uma democracia. Os militares a tolheram, usurparam o poder pelas armas e lançaram um totalitarismo violento no lugar dela. A oposição aqui, que a Folha mascara, é outra. É democracia x totalitarismo.
O parágrafo seguinte é ainda mais chocante: diz a Folha que, quatro anos antes do golpe, "parte da esquerda forçou os limites da legalidade na urgência de realizar reformas que tinham muito de demagógico". Pois bem, forçaram, mas não fizeram. Jogaram politicamente dentro da democracia, mas não deram golpe. A Folha compara em uma mesma frase lutas dentro da democracia com golpe contra a democracia, o que é bem diferente. Na sequencia, diz o editorial que, após 1964, "quando a ditadura ainda se continha em certas balizas", grupos militarizados desencadearam uma luta armada visando "instalar uma ditadura comunista no país". Quem lê acredita que a guerrilha, massacrada e vencida pelos militares, estava prestes a transformar o Brasil em Cuba. Mas, sobretudo, a frase indica que, para a Folha, o golpe contra a democracia pode ser justificado, se estiver dentro de certas balizas? A questão então não é a afronta à ordem constitucional mas sim a maneira como se exerce o regime de exceção? A Folha defenderia hoje, então, pelo mesmo raciocínio, um golpe de Estado contra o governo atual, desde que, depois, o regime se contivesse "dentro de certas balizas"? Que balizas são essas? Quem as define, em um regime autoritário e violento? E a democracia, não importa?
Pior, a Folha traz à tona, mais uma vez, o argumento duvidoso de que os movimentos de resistência armada seriam capazes de promover uma "ditadura comunista" e que isso justificaria, então, que o regime tenha saído de suas balizas! Ou seja, no raciocínio do editorialista, é aceitável a violência, a tortura e a morte pelas mãos de um estado não-democrático caso este seja questionado também por meio de violência? Então, é aceitável fazer justiça com as próprias mãos, por cima da lei e da constituição, quando o crime cometido é violento? Será mesmo que a Folha se alinha com a argumentação intolerante e direitista de uma Raquel Sheherazade? Para não cair em tão tosco raciocínio, o editorial tergiversa: a maior parcela de culpa pela violência da ditadura seria a do lado mais forte, ou seja, dos militares. Mais uma vez, aplaina com isso a monstruosidade que é um regime autoritário e violento, dando-lhe a oportunidade de dividir a responsabilidade pelo aparelhamento de uma nação para fazer da violência seu instrumento de política pública com um punhado de jovens idealistas que foram, aliás, dizimados.
Não bastasse isso, segue o jornal defendendo a ditadura de algumas críticas, como se fossem injustas. Aparentemente, para o jornal, a ditadura teve aspectos bons. Usa um argumento mais do que caduco: o de que o 'milagre econômico" e o crescimento da época tiveram seus méritos, e que a longevidade do regime, com todas as variações que isso implica no tempo, fez com que tenha tido compreensíveis momento altos e baixos. Pior, explica o fim do regime por fatores exógenos que teriam lhe tirado a popularidade - a crise de petróleo e a dívida externa - argumentando que o regime tornara-se "estreito demais" para uma sociedade "que não cabia mais em seus limites". É quase que uma apologia à ditadura, que teria sido capaz de promover uma emancipação social que ela mesmo não seria mais capaz de gerir.
O argumento é perverso, por um lado, e equivocado, por outro. Perverso pois reproduz a lógica do "rouba mas faz". Ou seja, uma ditadura seria justificável desde que tenha sucesso na condução da economia. Os fins justificam os meios, segundo a lógica do jornal. Equivale a dizer que o regime nazista seria aceitável se Hitler por ventura tivesse conseguido um "milagre econômico" nos territórios que ocupava. Mas, cabe perguntar, "sucesso econômico" pelo olhar de quem? Dos alemães arianos ou dos judeus massacrados? Para o editorialista da Folha, as "realizações econômicas e estruturais" da ditadura, que como veremos abaixo, não existiram, parecem justificar o fato dela ter sido uma ruptura constitucional, uma afronta à democracia e a instituição da violência e do terror como regime de Estado.
O argumento é também equivocado (supondo a boa fé de quem escreveu) pois a ditadura fracassou pelos seus próprios profundos erros, inclusive na economia, que são hoje responsáveis por grande parte das mazelas que vivemos. A ditadura militar, como já explicou o ministro Mantega em sua época de professor de economia da FGV, promoveu explicitamente um modelo econômico de alta concentração da renda (que Mantega chama de Desenvolvimentismo Autoritário). Tratava-se de incentivar a poupança dos ricos para alavancar os investimentos, ao invés de distribuir a renda, o que levaria a pressões inflacionárias e insuficiência de infraestrutura.
Além disso, nosso modelo, assim como o da China hoje, era o de participar da economia capitalista mundial com um mercado de consumo limitado (aos mais ricos) mas sobretudo como fornecedor de mão-de-obra barata. A nossa rápida industrialização condicionou-se à manutenção da pobreza, e disso resultou a tragédia urbana atual, em que milhões de trabalhadores vindos para as grandes cidades como mão-de-obra da indústria crescente enfrentaram o que Lúcio Kowarick chamou de espoliação urbana, ao invés de encontrar um Estado preocupado em dar-lhes mínimas condições de vida. As favelas, como bem disse Chico de Oliveira, foram parte do expediente de rebaixamento dos custos da mão-de-obra no Brasil. Dai gerou-se o que os grandes sociólogos brasileiros chamaram de "industrialização com baixos salários" ou de "modernização conservadora".
Assim, se o país urbanizou-se na ditadura, o que o editorial parece achar bom, ele o fez sob uma lógica de extrema segregação sócio-espacial, relegando os pobres às periferias distantes e precárias, e consolidando cidades funcionais apenas nos bairros nobres e nos setores de alta renda. Pode-se dizer, sem nenhuma dúvida, que o regime militar foi um dos grandes responsáveis pela tragédia urbana que o país vive hoje.
Que o Brasil cresceu nesse período ele cresceu, é claro, pois nos "trinta anos gloriosos" do capitalismo central cresceram com certa distribuição e igualdade das riquezas os países desenvolvidos, e cresceram sem nenhuma distribuição ou igualdade os países subdesenvolvidos a ele atrelados, que lhes forneciam matéria-prima e mão-de-obra baratos. No computo final, os dados mostram avanços, é claro, porém é sempre bom deixar claro que o Brasil saiu da ditadura como o país que, no mundo, mais concentrava as riquezas nas mãos de poucos. Aliás, mantém-se até hoje nas últimas posições nesse quesito, embora gabe-se de ser umas das dez maiores economias mundiais. A mais importante herança econômica da ditadura não foi seu sucesso aparente nos números de crescimento, como quer o editorial da Folha, mas a nefasta e indecente concentração da renda, ainda hoje o desafio mais difícil que temos de enfrentar. Como mostrou tão claramente Celso Furtado, não se pode confundir "crescimento econômico" com "desenvolvimento", coisa que, aliás, o país ficou longe de ter ao longo dos vinte anos de ditadura.
Não vou nem entrar no mérito dos argumentos finais do editorial, que tentam justificar o apoio do jornal à ditadura (apenas em seu início segundo eles, como se isso mudasse alguma coisa). As acusações contra a Folha, que envolvem bem mais do que um simples alinhamento editorial, estão na mídia e na internet, e podem ser lidas por qualquer um. Acredite quem quiser. Que a Folha trabalhe isso do jeito que achar melhor, justificando-se como achar adequado nos editoriais a enorme culpa que tem quanto a isso.
O que não pode, em tempos em que a democracia se consolida no Brasil, país que soube viver mandatos seguidos de presidentes de matizes políticas diversas, que soube tirar um deles por meios constitucionais, é um jornal da importância da Folha de SP escrever textos cuja mensagem subliminar é claramente a de justificar o que tivemos de mais hediondo na nossa história recente. Uma vergonha.
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