BRASIL EM JOGO: trecho do livro

Compre o livro pela internet por R$ 10,00 (preço de custo) nas livrarias (clique na que desejar)

Cultura, Saraiva ou Travessa

Visite o site da Boitempo clicando aqui

Baixe a apresentação abaixo em pdf clicando aqui

Leia abaixo a nota da Editora e a apresentação

Sumário
Nota da editora ......6
Apresentação: Um teatro milionário – João Sette Whitaker Ferreira ......7
A Copa do Mundo no Brasil: tsunami de capitais aprofunda a
desigualdade urbana – Ermínia Maricato .........17
Jogo espetáculo, jogo negócio – Nelma Gusmão de Oliveira .......25
Lei Geral da Copa: explicitação do estado de exceção permanente –
Jorge Luiz Souto Maior ............33
Transformações na identidade nacional construída através do futebol:
lições de duas derrotas históricas – José Sergio Leite Lopes .........41
A máfia dos esportes e o capitalismo global – Andrew Jennings .........51
Para além dos Jogos: os grandes eventos esportivos e a agenda do
desenvolvimento nacional – Luis Fernandes...........57
Megaeventos: direito à moradia em cidades à venda – Raquel Rolnik ...65
Como serão nossas cidades após a Copa e as Olimpíadas? – Carlos Vainer ....71
A Copa, a imagem do Brasil e a batalha da comunicação – Antonio Lassance ...79
O que quer o MTST? – Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto .....85
Cronologia dos megaeventos esportivos ......89
Sobre os autores ..........93

 

Nota da editora
Idealizada e organizada coletivamente, esta obra lança olhares multifacetados sobre os megaeventos esportivos sediados pelo Brasil, a Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos e Paraolímpicos de 2016, e, em especial, sobre sua relação com a cidade.

A partir de uma pauta elaborada pelas equipes da Boitempo e da Carta Maior, encomendou-se a maioria dos textos diretamente aos autores, que, para tornar o livro mais acessível, abriram mão de receber remuneração pela publicação de seus artigos. A parceria com a Carta Maior é essencial para que esta obra possa alcançar o maior número de pessoas, estimulando, quem sabe, seu olhar crítico e o desejo de lutar efetivamente pelos direitos do cidadão. Agradecemos ao MídiaNINJA (que também colaborou nos volumes anteriores desta coleção), ao Ministério do Esporte e ao fotógrafo Apu Gomes pela cessão das imagens que ilustram este livro.

Antecedido por Occupy: movimentos de protesto que tomaram as ruas (2012) e Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil (2013), este Brasil em jogo: o que fi ca da Copa e das Olimpíadas? é o terceiro volume da coleção Tinta Vermelha, que reúne obras de intervenção e teorização sobre acontecimentos atuais. O título da coleção é uma referência ao discurso de Slavoj Žižek aos manifestantes do Occupy Wall Street, na Liberty Plaza (Nova York), em 9 de outubro de 2011. O filósofo esloveno usou a metáfora da “tinta vermelha” para expressar a encruzilhada ideológica do século XXI: “Temos toda a liberdade que desejamos – a única coisa que falta é a ‘tinta vermelha’: nos ‘sentimos livres’ porque somos desprovidos da linguagem para articular nossa falta de liberdade”.

A íntegra do discurso está disponível aqui.

Com a colaboração dos autores deste livro e de outros que fazem parte do catálogo da editora, seguiremos, até o final das Olimpíadas, alimentando a reflexão no Blog da Boitempo.


APRESENTAÇÃO: Um teatro milionário

João Sette Whitaker Ferreira


Primeiro ato: uma boa ideia de “marketing urbano”

Meados dos anos 1980. Os países desenvolvidos vivem a crise da chamada reestruturação produtiva. Reduz-se a disposição dos Estados de bem-estar para manter políticas sociais universais e gratuitas, ainda mais face ao aumento significativo de imigrantes. Hegemoniza-se a mudança para um modelo neoliberal, liderada por Thatcher na Grã-Bretanha e Reagan nos Estados Unidos: os investimentos públicos tornam-se cada vez mais pontuais e exclusivistas, politicamente mais bem-recebidos pelos segmentos de alta renda, em detrimento dos programas sociais estruturais. 

A economia mundial se financeiriza e se endivida, consolidando um modelo que iria estourar décadas depois, na crise de 2008. A disputa por investimentos torna-se acirrada. No âmbito urbanístico, parques industriais e equipamentos (como estações de trem) tornam-se obsoletos. Os centros urbanos popularizam--se e absorvem milhares de imigrantes; o desemprego bate forte e a crise nas cidades se instaura. A palavra “renovação” urbana soa como música para enfrentar uma situação social que não agrada nem às elites nem aos governantes. O modelo de bem-estar social começa a se esfacelar, dando lugar ao “combate” à chamada “degradação urbana”.

Paradoxalmente, foi um governo socialista, do francês Mitterand, que inaugurou o que se tornaria uma “solução” para essas áreas: transformá-las por meio da construção de grandes equipamentos culturais (museus, óperas e afins), símbolos arquitetônicos que aquecem o mercado imobiliário e da construção civil, dão um lustre “moderno” à figura do governante, dinamizam o turismo e revigoram o chamado “marketing da cidade”, ao preço de uma forte valorização e elitização (1). A ideia difundida era a de que os gastos concentrados – muito menores do que políticas sociais em grande escala – gerariam uma “imagem positiva” da cidade, capaz de atrair os fluxos do novo capital financeiro.

 

Segundo ato: uma receita de urbanismo

Nos anos 1990, a receita espalhou-se pelo mundo desenvolvido com tanto sucesso que importantes urbanistas – como Ermínia Maricato e Carlos Vainer, que escrevem neste livro – chegaram a apontar a hegemonização de um “pensamento único nas cidades”(2). Em suas pretensões “globais”, as wannabe world cities (3) passam a disputar os fluxos de capitais financeiros. Multiplicam-se as obras simbólicas, assinadas por grandes arquitetos, emergentes de um novo jet set internacional da profissão.

A renovação das docas de Londres e o museu Guggenheim em Bilbao são alguns dos incontáveis exemplos de renovações urbanas realizadas segundo essa receita de “urbanismo do espetáculo”, como Maricato aponta no artigo publicado neste volume. O aspecto central é que, em todas elas, foi fenomenal o comprometimento de recursos públicos, sempre com a
justificativa de que as obras, minas de ouro para o mercado imobiliário e da construção civil, eram necessárias à “nova competitividade global”. Porém, nem sempre as “requalificações de bairros obsoletos” com dinheiro público tiveram a aceitação esperada, apesar do selo “cultural”. Na crise econômica, a estratégia de comprometer recursos foi negativamente
cotejada com a redução dos investimentos nas políticas sociais.

Era necessário legitimar esse modelo de alguma forma. Percebeu-se então que grandes eventos, sobretudo os esportivos, que movem paixões nacionais, tinham a grande “qualidade” de serem popularmente aceitos. A ideia era associar esses eventos às obras de requalificação urbana desejadas. Assim, ao redor de um grande estádio, de um pavilhão de exposições,
começaram a ser erguidos centros de negócios, bairros de alto padrão etc. Operações casadas em que governantes e investidores saíam ganhando, com a vantagem do apoio popular. A Copa do Mundo da Fifa e os Jogos Olímpicos do COI, os megaeventos mais importantes nesse cardápio, passaram a ser disputados ferozmente pelas cidades do mundo.

Como demonstra Nelma Gusmão de Oliveira, a Fifa e o COI perceberam o poder que tinham nas mãos. Governantes passaram a tratá-los como fontes milagrosas de capitais. Quem obtivesse o direito de sediar seus eventos teria uma justificativa de inquestionável popularidade para dispor de rios de dinheiro público em nome da “modernização” da cidade, alavancando negócios milionários para o setor privado. Porém, necessidades legitimamente urbanísticas e, em geral, mais urgentes eram passadas para trás.

Em 1992, Barcelona, cidade que já dispunha de excepcional plano urbanístico desde o começo do século XX, inaugurou com certo sucesso essa fórmula, que seria então vendida ao planeta. Urbanistas catalães, como Jordi Borja, percorreram o mundo como verdadeiros gurus. Políticos
da cidade alçaram voos mais altos. Joan Clos, responsável financeiro nos Jogos Olímpicos e por duas vezes prefeito da cidade, é hoje diretor executivo da UN-Habitat, da ONU.

Tanto a Fifa quanto o COI souberam transformar espetáculos esportivos em grandes negócios, como observa Nelma Gusmão de Oliveira, seguindo uma escola bem brasileira de trato com o poder – vide João Havelange dirigente da Fifa e do COI por décadas. Favores, “comissões”
e outras formas de negociação pouco transparentes passaram a ditar a escolha das cidades-sede, mas sobretudo os processos subsequentes de organização dos eventos. A Fifa, o COI e mesmo a FIA, da Fórmula 1, viram-se frequentemente envolvidas em escândalos de corrupção. E uma voz quase solitária passou a denunciar corajosamente tais descalabros: a do jornalista escocês Andrew Jennings, presente neste volume com o belo depoimento “A máfia dos esportes e o capitalismo global”.


Entreatos: quem ganha com os eventos?

O lucro dos megaeventos redunda em ganhos fabulosos para as instituições organizadoras. O evento por si só já é uma máquina de dinheiro, com a venda de ingressos, direitos televisivos, de publicidade e imagem. Porém, se para a Fifa o negócio é lucrativo, com zero por cento de riscos, não é tão seguro assim para os patrocinadores. Por isso, aliás, eles ficaram apavorados com as manifestações de junho de 2013 no Brasil e exigiram medidas draconianas para proteger sua exclusividade. A regra é clara: todo lucro deve ser garantido às empresas que pagaram por isso.

Para os governos, porém, a conta não é tão certa, pelo menos em termos monetários. O suposto grande “lucro” é político-eleitoral. Governantes veem sua imagem abrilhantada pela “competência” em ter conseguido atrair um evento globalmente popular, que coloca a cidade ou o país-sede na vitrine do mundo. No entanto, do ponto de vista financeiro, até hoje não se mostrou, na ponta do lápis, o resultado final da equação entre os montantes de dinheiro público investidos, os custos da manutenção dos equipamentos após os eventos e os resultados comerciais efetivos no turismo e no comércio. Há casos de Jogos Olímpicos cujos lucros foram ínfimos, como em Atlanta (1996), ou que geraram significativo déficit, como em Montreal (1976) e Atenas (2004). Muitas vezes trata-se tão somente de transferências indiretas de recursos públicos para setores específicos (como o de hotelaria), e os custos sociais e ambientais são de difícil medição.

Mas o que ajuda a transformar megaeventos em minas de ouro são as obras que alavancam. Exigidas pelos órgãos organizadores em comum acordo com os governos hospedeiros, alimentam os mercados da construção civil, fundiário e imobiliário. A valorização fundiária é espetacular, gerando disputas locais ferozes. Como mostra Ermínia Maricato neste livro, nos países em desenvolvimento, o tsunami de capitais envolvidos aprofunda a dinâmica estrutural de desigualdade urbana e segregação socioeconômica. Junto a estádios, ginásios ou pavilhões, estruturam-se empreendimentos comerciais e bairros de negócios e são construídas importantes vias de acesso que interessam especialmente aos organizadores e raramente são prioritárias para a cidade.

O caso de São Paulo na Copa de 2014 é exemplar: mobilizaram-se recursos federais específicos para a construção de um monotrilho suspenso que serviria o estádio da abertura da Copa, na Zona Sudoeste da cidade. Porém, por disputas locais e pressão da Fifa, optou-se pela construção de um estádio novo, na Zona Leste, a custos e comissões muito mais altos.
Mas o “monotrilho da Copa” continuou a ser construído para levar torcedores ao estádio anterior. O novo estádio, por sua vez, foi implantado sem nenhum projeto de integração com a malha urbana local.

Além disso, as entidades esportivas indicam empresas “amigas” para os projetos de engenharia, interferem nas escolhas das empreiteiras e pressionam os governos a abrirem pesadas linhas de financiamento. Sua força é tanta, e a submissão dos políticos locais tão gritante, que conseguem forçar a aprovação de leis específicas e excepcionais para garantir seus privilégios – como mostram neste livro Carlos Vainer e Jorge Luiz Souto Maior.

Nos países desenvolvidos, entretanto, tais procedimentos não passam despercebidos. A dificuldade em equacionar os investimentos públicos e os lucros eventuais, o déficit estrondoso de alguns eventos e as acusações de corrupção começam a mobilizar a sociedade civil, que protesta cada vez mais veementemente – vide a desistência de Estocolmo em concorrer
para os Jogos Olímpicos de Inverno de 2022.


Terceiro ato: a caminhada para o Sul

Ao longo dos anos 1980 e 1990, com exceção do México em 1986, todas as Copas da Fifa foram realizadas em países desenvolvidos, alavancando grandes obras de “reabilitação” urbana, como no caso do Stade de France, localizado na periferia norte da capital francesa.
A Copa de 2002 marcou uma transição ao ser coorganizada por um país desenvolvido, o Japão, com um “tigre asiático” em ascensão, a Coreia do Sul. Era o começo de uma movimentação em direção aos países em desenvolvimento. África do Sul, Brasil, Rússia e Catar, com democracias ainda jovens (com exceção do totalitário Catar), foram escolhidos para
sediar as Copas de 2010 a 2022. Muitos analistas, dentre os quais me incluo, avaliam que esse deslocamento foi claramente estratégico, devido aos protestos cada vez mais frequentes contra os megaeventos nos países do Norte. Mais do que isso, as estruturas governamentais dos novos anfitriões, geralmente contaminadas por uma corrupção estrutural, são especialmente vulneráveis às pressões exercidas pelos grandes players dos megaeventos, sendo mais fácil dobrar os políticos locais para aprovar leis de exceção, mesmo que representem retrocessos gritantes em suas conquistas sociais, como mostra parte dos textos desta coletânea.

Externamente, os países em desenvolvimento mas em ascensão no cenário econômico mundial, usam os megaeventos esportivos como vitrines de seu “sucesso” econômico. O caso da China é sintomático: com investimentos de mais de US$ 40 bilhões para promover os Jogos Olímpicos, firmou sua imagem de grande potência internacional. No Brasil, o empenho
do presidente Lula na candidatura para a Copa e as Olimpíadas diz muito sobre o papel estratégico desses eventos para a imagem de um país. Trata--se de posicionar-se no capitalismo financeiro global como um “bom lugar para investimentos”. Internamente, em países com severas insuficiências de logística e infraestrutura e sedentos por investimentos que lhes permitam construí-las, esse discurso é facilmente apoiado pela opinião pública. 

O discurso do “legado” dos megaeventos é então amplamente difundido. Estabelece-se uma coalizão político-econômica que envolve diversos atores: os organismos esportivos internacionais e seus pares nacionais, os governos locais e os órgãos públicos de financiamento, as grandes empreiteiras, as elites fundiárias e imobiliárias. Todos se mobilizam para fazer funcionar uma “máquina de crescimento”.

Porém, como é habitual, confunde-se crescimento econômico com desenvolvimento. E a ilusão tem pernas curtas. As experiências de outros países, como China, Grécia, Canadá, África do Sul ou até mesmo França, mostram que os equipamentos construídos para os megaeventos têm
uma capacidade muito baixa de integração após a conclusão dos eventos (4).

Linhas de transporte mostram-se superdimensionadas após o evento, e elefantes brancos surgem no meio do nada, exigindo enormes custos de manutenção. O estádio Olímpico de Montreal é um exemplo simbólico, que se repetiu na China e na África do Sul. No Brasil, a paixão futebolística e o tamanho de certas torcidas ameniza um pouco esse problema, porém,
em Brasília, Manaus ou Natal, cidades que nem sequer têm equipes na primeira divisão nacional, isso certamente se evidenciará.

Essa discrepância entre a construção de equipamentos e sua integração posterior à vida econômica e urbana local é evidentemente mais dramática nos países subdesenvolvidos. A Alemanha alega que a Copa do Mundo de 2006 lhe permitiu reestruturar seu sistema de vias férreas, o que é muito provável. Mas países como a África do Sul ou o Brasil ainda apresentam carências enormes de serviços básicos, como saneamento, equipamentos públicos ou mesmo habitação digna. E é justamente a população mais pobre a mais atingida pelos megaeventos, como mostram Raquel Rolnik e o MTST neste livro.

A proliferação de empreendimentos imobiliários de alto padrão nas proximidades dos estádios e outras obras emergenciais provocam um duplo processo de expulsão da população mais pobre, seja pela remoção sumária e violenta dos assentamentos, seja pela expulsão “natural” decorrente da forte e nada regulada valorização imobiliária consequente. A Copa e os Jogos, nesse sentido, acirram nosso apartheid urbano.

Por fi m, há uma externalidade que se exacerba nos países em desenvolvimento,
acrescentando um toque trágico à barbárie: a intensificação da exploração sexual (incluindo infantil) decorrente do “turismo sexual” que se escamoteia por trás das viagens “oficiais” de muitos torcedores.

Último ato: uma Copa eleitoral

A Copa do Mundo do Brasil tem, para completar, uma peculiaridade: ocorre a poucos meses de uma eleição presidencial. Pouca gente bem informada no país acreditaria que o então presidente Lula tenha sido ingênuo e não percebera essa coincidência quando da candidatura
brasileira. Trata-se, é evidente, de uma aposta política. Arriscada, mas, em caso de sucesso, extremamente lucrativa: se o Brasil organizar bem a Copa (e, ainda por cima, vencê-la), nada mais impedirá a ampla aceitação dos Jogos Olímpicos do Rio e os louros políticos para o governo.

Resta saber se Lula havia previsto os eventos de junho de 2013, que abalaram o país justamente na ocasião da Copa das Confederações. As manifestações que então mobilizaram a juventude brasileira foram a expressão de uma revolução geracional (clique aqui). Jovens que cresceram em um ambiente democrático, com enorme disponibilidade de informação, conscientizaram-se de que o país carece de um legítimo sentido “público”, e a razão que os levou às ruas, originalmente, foi a reivindicação de políticas públicas universais.

Nesse ambiente crítico, era natural que se questionasse a insensatez dos gastos com os megaeventos. Em um país ainda pobre apesar de muito rico (o que caracteriza a modernização conservadora e a condição de subdesenvolvimento), com indecente concentração da renda, em que as políticas públicas mostram-se constrangedoramente ineficazes, a concentração
de recursos públicos nos equipamentos da Copa revelou-se incoerente e antagônica com o próprio discurso governista oficial de acabar com a pobreza no país. 

Essa incoerência foi cobrada, nas manifestações de 2013, do governo federal, que se defendeu dizendo que os recursos públicos vinham sobretudo dos Estados que aceitaram receber a Copa. De maneira geral, a justificativa governista ampara-se na sinergia econômica gerada pelos investimentos, permitindo obras de infraestrutura e modernização e, consequentemente,
aquecendo a economia. É esse o argumento central sustentado neste livro por Luis Fernandes, secretário executivo do Ministério do Esporte.

Se esse discurso tem aspectos verdadeiros (alguma modernização nos aeroportos, por exemplo), ele se fragiliza quando cotejado, pelos jovens, com uma realidade em que o dinheiro público é frequentemente desviado pela corrupção e, principalmente, o setor privado mostra estar mais interessado em sua lucratividade do que em contribuir com a modernização
do país. Além do mais, é rápida a proliferação de notícias mostrando o fi asco financeiro de vários desses tão festejados megaeventos, ainda mais em ano eleitoral, em que os aspectos negativos seriam, obviamente, capitalizados pela oposição.

Com isso, a Pátria do Futebol, ironicamente, deu uma lição ao resto do mundo na Copa das Confederações: nunca havia se visto tamanha mobilização de protesto contra um evento cuja popularidade ainda é tão dominante. Repercutia no mundo que o povo brasileiro, cuja identidade, como esmiuça José Sergio Leite Lopes neste livro, se confunde com o futebol,
era contra a Copa. E tanto a Fifa quanto o governo sentiram o golpe. Mas se as manifestações haviam começado com protestos legítimos por maior moralidade política, foram rapidamente manipuladas pela grande mídia corporativa e transformadas em um movimento oposicionista antidemocrático. Slogans como “O gigante acordou” e “Vem pra rua você também” e a indução às vestes brancas ou verde-amarelas “contra tudo que está aí” tornaram-se as palavras de ordem de uma mobilização vaga em objetivos, claramente insuflada pelo poder econômico e midiático para atingir e desestabilizar a presidenta e o regime democrático.

Muito antes da Copa vir para o Brasil, a mobilização contrária aos megaeventos era expressada isoladamente por setores de esquerda da intelectualidade acadêmica, vozes isoladas perante a força ideológica do discurso pró-Copa e perdedoras no jogo político nacional. Nada parecia impedir a coalizão de interesses que se formara em favor da Copa e dos Jogos, envolvendo amplos setores do empresariado e da grande mídia.

A disputa eleitoral e a polarização política no Brasil iriam, entretanto, desfazer esse consenso. A pauta foi repentinamente encampada, com os mesmos argumentos, pelos setores mais conservadores da sociedade, em clara manobra eleitoral de oposição ao governo. Para seu desconforto, os que vinham construindo uma forte e bem embasada argumentação contra
os megaeventos esportivos durante anos, de forma isolada e batendo de frente contra a opinião da maioria, viram alinhar-se a seu lado fi guras do extremo oposto do espectro político. Nada pior para os oposicionistas “originais”, por assim dizer. Da noite para o dia, nas redes sociais, na grande mídia corporativa, gente mais habituada aos shoppings-centers e carros
blindados passou a indignar-se com a pobreza e a proferir um discurso que não lhe cabia. Setores empresariais e midiáticos que de início festejaram os prováveis negócios engendrados pelos megaeventos tornaram-se preocupados com a má qualidade da educação, da saúde ou dos transportes, repetindo um apropriado slogan de rápida aceitação por parte da
opinião pública menos politizada: “Imagina na Copa”.

É claro que há por trás disso uma supervalorização especulativa. Primeiro porque, apesar do exagero da Fifa em suas exigências, a Copa do Mundo não é mais do que uma série de jogos de futebol espalhados pelo território, em um país habituado a ver semanalmente seus estádios lotados. Se os jogos da Copa têm um grau de exigência organizativa maior, ainda assim isso não os difere tanto daquilo com que já estamos bastante habituados. Além disso, nenhum dos grandes problemas previstos é realmente inédito: notícias de desorganização e confusões de todo tipo na logística de Copas do Primeiro Mundo, seja na França ou na Itália, existem à profusão. Nem mesmo a repressão a manifestações, tão temidas por aqui, tem sido especialmente pior do que se vê nas manifestações europeias. Houve, deve-se dizer, um exagero politicamente certeiro nas previsões alarmistas da Copa, que se revertem em um pessimismo com relação ao país. Nada mais oportuno para contrabalancear o discurso
eufórico de “próxima grande potência mundial” que Lula havia cuidadosamente construído, associando-o à sua imagem. 

Os movimentos sociais, por sua vez, têm também ótimo sentido de oportunidade, e de repente, valendo-se do interesse da mídia em polemizar sobre o evento, passam a associar inteligentemente todas as suas ações à Copa. Mas o que deve ser ressaltado é que suas reivindicações vão muito além das preocupações conjunturais com os gargalos logísticos e
de infraestrutura turística, e não se encerraram com a final da Copa do Mundo, pois a educação pública no país continuará precária e a falta de moradia, crônica, assim como a prostituição infantil e a ação predadora do grande capital imobiliário continuarão sendo problemas relevantes.

 

Notas

1 Ver Carlos Vainer, “Os liberais também fazem planejamento urbano”, em Otília Arantes,
Ermínia Maricato e Carlos Vainer (orgs.), A cidade do pensamento único: desmanchando
consensos (Petrópolis, Vozes, 2000), p. 117-9, col. Zero à Esquerda.
2 Ver Otília Arantes, Ermínia Maricato e Carlos Vainer (orgs.), A cidade do pensamento
único, cit.
3 Como as chamou John Short, “Urban Imagineers”, em Andrew E. Jonas e David Wilson,
The Urban Growth Machine: Critical Perspectives Two Decades Later (Nova York,
State University of New York Press, 1999).

4 Sylvain Lefebvre e Romain Roux, “L’après-JO. Reconversion et réutilisation des équipements olympiques”, Espaces, Loisirs et Tourisme, n. 263, 2008, p. 30-42.

 


Sobre os autores

Andrew Jennings, premiado jornalista investigativo escocês, é autor de Jogo sujo, o mundo secreto da Fifa (Panda Books, 2011), entre outros. Até hoje é o único repórter no mundo banido das coletivas de imprensa da Fifa.

Antonio Lassance é doutor em ciência política pela Universidade de Brasília, técnico de planejamento de pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e torcedor da seleção brasileira de futebol. É coorganizador de Federalismo à brasileira (Ipea, 2013) e coautor de Tecnologias sociais e políticas públicas (Fundação Banco do Brasil, 2005), entre outros.

Carlos Vainer é professor titular do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Ippur-UFRJ) e coordenador da Rede de Observatórios de Confl itos Urbanos e do Núcleo Experimental de Planejamento Confl itual. É coorganizador de Grandes projetos urbanos metropolitanos (Letra Capital, 2012) e de A cidade do
pensamento único (Vozes, 2000), entre outros.

Ermínia Maricato, professora do curso de pós-graduação da Faculdade de Arquitetura
e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAUUSP) e professora visitante do Instituto de Economia da Unicamp, formulou a proposta do Ministério das Cidades, onde foi ministra adjunta (2003-2005). É autora de O impasse da política urbana no Brasil (Vozes, 2011) e coorganizadora de A cidade do pensamento único (Vozes, 2000), entre outros.

Gilberto Maringoni é doutor em história social pela FFLCH-USP e professor de relações internacionais na Universidade Federal do ABC. É autor, entre outros, de Angelo Agostini: a imprensa ilustrada da Corte à Capital Federal (Devir, 2011).

João Sette Whitaker Ferreira é professor livre-docente da Faculdade de Arquitetura
e Urbanismo da Universidade de São Paulo e coordenador do Laboratório de Habitação e Assentamentos Humanos (LabHab) da mesma instituição.

Jorge Luiz Souto Maior é jurista e professor livre-docente da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Autor de Relação de emprego e direito do trabalho (LTr, 2007) e O direito do trabalho como instrumento de justiça social (LTr, 2000), é também colunista do Blog da Boitempo.

José Sergio Leite Lopes é antropólogo, professor titular do Departamento de Antropologia do Museu Nacional da UFRJ e diretor do Colégio Brasileiro de Altos Estudos da UFRJ. Concluiu o pós-doutorado na École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris e atua nas áreas de antropologia urbana e antropologia do esporte.

Juca Kfouri é formado em ciências sociais pela USP, colunista da Folha de S.Paulo e apresentador na rede CBN de rádio e no canal televisivo ESPN- -Brasil. Com extensa carreira no jornalismo esportivo, foi diretor das revistas Placar e comentarista esportivo do SBT, da Rede Globo e da TV Cultura.

Luis Fernandes é secretário executivo do Ministério do Esporte e coordenador dos Grupos Executivos do Governo Brasileiro para a Copa do Mundo de 2014 e para os Jogos Olímpicos e Paraolímpicos de 2016.

Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto é uma organização autônoma fundada em 1997 pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST). Atua nos centros urbanos pelo direito à moradia digna e contra a especulação imobiliária.

Nelma Gusmão de Oliveira é doutora em Planejamento Urbano e Regional pelo Ippur/UFRJ, professora adjunta da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia e pesquisadora associada ao Laboratório Estado Trabalho Território e Natureza do Ippur/UFRJ.

Raquel Rolnik, arquiteta e urbanista, é professora da FAUUSP. Foi relatora especial do Conselho de Direitos Humanos da ONU para o direito à moradia adequada (2008-2014). Autora de A cidade e a lei (Fapesp/Studio Nobel, 1997) e O que é cidade (Brasiliense, 1988), entre outros.