#játemcopa: salve a seleção

"Ter um olhar crítico sobre a Copa no Brasil não é patriótico nem antipatriótico. É apenas o necessário olhar crítico. E que, enfim, se precisar ser definido além disso,m é muito mais a favor do Brasil do que contra"

Em seu texto para a contracapa do livro "Brasil em jogo", Juca Kfouri, em duas frases, disse tudo. A discussão sobre a Copa não pode ser maniqueísta. Tipo "quem é a favor da Copa é contra o Brasil", ou a favor dele, a depender se gosta ou não da Dilma. Eu há muito tempo falo e escrevo contra a copa. Mas não é bem contra A copa, é contra AS Copas do Mundo em geral, contra o capitalismo e seus mecanismos perversos. Contra a FIFA que nas mãos de brasileiros (começou com o velho Havelange) tornou-se uma instituição que não quer saber de futebol, mas apenas de ganhar (muito) dinheiro, metida em corrupção e negócios escusos (como há anos denuncia o jornalista inglês Andrew Jennings). Contra a CBF e a "cartolagem", que há décadas fazem política da forma mais atrasada e perversa possível. Contra a Nike, a Adidas e tantas outras grandes corporações que hoje mandam no mundo (vejam o filme The Corporation), e que transformaram paixões populares em uma máquina de fazer dinheiro, que acham normal que a busca de lucro se sobreponha ao direito do cidadão, à liberdade de ir e vir, à livre iniciativa (estamos falando de um capitalismo monopolista que se sobrepõe a tudo), que ela se valha da corrupção, da prostituição infantil, da exploração de menores, que o poder do dinheiro possa passar por cima de tudo. 

O capitalismo tem na corrupção (a busca do lucro por meios escusos e vantagens obscuras, independentemente da ética) seu motor, ela faz parte da sua natureza. O capitalismo é perverso, e o é mais ainda no mundo subdesenvolvido, onde democracias ainda frágeis são mais vulneráveis aos ditames do capital. Onde o Estado foi e é instrumento de dominação de elites nacionais que, para exercê-la, historicamente se associaram aos interesses internacionais do capitalismo hegemônico. Isso não é propriamente novo, é a essência da nossa "modernização conservadora", já tão esmiuçada pelos grandes interpretes do Brasil. Não é novo, embora os ares de "modernidade" dos dias atuais alimentem o mito de que isso poderia ter mudado. 

De fato um pouco mudou, pois o crescimento econômico se reverteu em alguma distribuição de seus ganhos, levando a concentração da renda no Brasil ao seu nível mais baixo na história (ou desde que é medido, nos anos 60). E isso, diga-se o que quiserem, se deveu à chamada "era Lula", e é uma falácia a interpretação de que ele apenas continuou uma mudança iniciada por FHC (mas esse assunto renderia outro texto). Por ora vale só observar que Lula e Dilma, mesmo sem (infelizmente) mudar a ordem geral das coisas, pelo menos conduziram internamente o crescimento de forma muito, mas muito mais distributiva. Em outras palavras, do meu ponto de vista, o Brasil de Serra ou Alckmin teria sido bem diferente, para pior.

Porém, que ninguém tampouco caia no engodo (embora seja obviamente esse o discurso governista) de que enfim o Brasil tornou-se uma Suíça. Mudamos um pouco, sim, mas ainda somos uma das 12 economias que mais concentram as riquezas no mundo (leia aqui), mesmo sendo uma das dez mais poderosas (o que dá a dimensão perversa da nossa desigualdade, pois teríamos totais condições de sermos economicamente um pouco menores, mas socialmente mais justos). E essa corda está esticada ao extremo, a sociedade já não aguenta mais a tensão da desigualdade. Mas mesmo assim, as forças conservadoras ainda dominam o país e reagem a qualquer sinal de mudança, mesmo que seja um simples decreto para ampliar a participação da sociedade civil, como vimos estes dias. Reagem a políticas includentes de cotas, reagem à ascensão da classe média (que não pode usar avião), clamam pela justiça pelas próprias mãos (como amarrar bandidos negros à postes), defendem a volta da ditadura, como o fizeram dia 31 de março os editoriais dos dois maiores jornais do país (leia aqui).

Esse é o Brasil da Copa do Mundo. Pode-se, como eu, achar que a Copa é mais uma manifestação do capitalismo corporativo hegemônico com todas suas injustiças, mas o fato é que fazer ou não fazê-la não irá mudar esse quadro da noite para o dia. As Copas sempre foram, ainda mais em países subdesenvolvidos, como a África do Sul, o Brasil, ou logo mais a Rússia (em 2018), um fantástico instrumento de enriquecimento para as grandes corporações envolvidas, associadas a governos subservientes. Ser "contra" copaS (no plural) é ser contra  isso. Mas, que fique claro: as mazelas e as perversidades do capitalismo não são responsabilidade da Dilma e nem do Lula, mas de um sistema todo, do qual eles fazem parte. Mas, no Brasil, se alguém nos últimos tempos fez algo (mesmo que pouco) para diminuí-las, foram eles. Em seus doze anos de governo, queira-se ou não, reduziram a pobreza brasileira e ampliaram a oferta de emprego como nunca antes. 

Por isso, quando a elite branca, que pode pagar por volta de mil Reais para ver um jogo, ou mais ainda os da tal "Ala VIP" em que só entram endinheirados convidados que não pagaram um tostão, resolve mandar a Presidente tomar no c... na abertura da Copa, é preciso que fique claro do que estão falando. É para protestar contra as mazelas da sociedade brasileira e seus quinhentos anos de injustiça social? Então seria mais fácil que se xingassem a si próprios, pois como parte da classe dominante, são eles mesmos, os VIPs, que produzem e reproduzem esta nossa sociedade doente. É por pura raiva da Dilma e por querer vê-la longe da presidência? Então estão fazendo da Copa o palco de sua disputa eleitoral, e mostram o quanto são toscos e deselegantes, o que combina com a habitual soberba e desdém da nossa elite no trato com quem não seja da sua casta.

É claro que cada um pode decepcionar-se à vontade, em uma democracia, com seus governantes, prefeitos, governadores ou o Presidente. Não é porque ter ou não a copa não vai mudar de repente a nossa realidade que eu não posso me decepcionar com Lula e Dilma por uma série de coisas: por não terem conseguido tirar um pouco da perversa hegemonia econômica dos poderosos, por não terem feito a reforma política que poderia diminuir a subserviência às lógicas empresarias e corruptas, por não cessarem os privilégios à grande mídia corporativa e à Globo (leia aqui matéria da The Economist a respeito), etc. etc. Tudo isso é legitimamente questionável. Assim é a política, assim é a democracia, com prós e contras, opiniões diversas, julgamentos antagônicos.

Porém, sair malhando a Copa do Mundo como se por causa dela todos os males do Brasil não tivessem sido resolvidos é puro oportunismo eleitoral direitista. Os candidatos à presidência da oposição nem tiveram a decência republicana de condenar com a ênfase que se esperaria os xingamentos ao mandatário do posto que almejam. O que é irônico é que se fossem eles presidentes, certamente teriam também brigado para trazer a copa. Afinal, fazem todos parte do mesmo sistema. O que duvido é que o fizessem com o mesmo sucesso (ou alguém agora, vendo os jogos acontecendo dia após dia, ainda irá falar em fiasco?). Pelo menos se for julgar pela capacidade de gestão que alguns demonstraram, em São Paulo, ao colapsar, em vinte anos de gestão, o Metrô, o sistema de abastecimento de água, a segurança pública.

Falar que a Copa é um retrato de uma suposta tragédia nacional é contribuir para uma descarada campanha midiática eleitoreira. A tática consiste no seguinte: apoiar-se na difícil realidade do país que, ao longo de séculos, mais promoveu desigualdade social para difundir, por meses, a cada dificuldade, a cada escândalo (de quem quer que seja, do vereador ao ministro), a cada colapso (como vimos, só em SP são muitos), um mesmo bordão de pessimismo: "imagina na Copa". Em um segundo movimento, ela consiste em apoiar-se em toda a mídia corporativa para construir a imagem de que estamos vivendo uma profunda crise. Há meses a mídia vem apontando uma crise inflacionária que não chega, vem alardeando uma crise de emprego que não vem (pelo contrário), vem construindo o teatro do STF e do mensalão para associar o PT ao pior mundo de corrupção.

Que o governo petista se meteu sim, no sistema político perverso e generalizado de comprar parlamentares para governar, isso é (infelizmente) fato. Mas daí a botar toda e qualquer falcatrua no país na conta dos "petralhas" é um passo conveniente, que permite escamotear, por exemplo, que só o propinoduto do metrô em SP envolve somas dez vezes maiores, ou que o ranking de políticos "ficha-suja" no país não é liderado nem de longe pelo PT, mas sim pelo....PSDB (seguido, é verdade, do indigesto e sempre governista PMDB - leia aqui).

Mas, do programa de debates ao comentarista do rádio, do jornalista filósofo aos "blogueiros" das grandes revistas,  estão todos a repetir um mesmo mantra, o da crise generalizada, do país vivendo profunda insatisfação. Tomam carona para isso nas manifestações, estas muito mais legítimas, que na verdade são uma mostra de que o país, isto sim, se politizou e ampliou a liberdade de expressão, o que é sinônimo de avanço, e não de crise. Estranhamente, porém, esta não chega. O país passa pelas variações normais de qualquer economia, com momentos melhores e outros piores, mas os piores certamente não chegam, nem de perto, ao cenário trágico que nos é pintado a cada dia. E enquanto isso, a Copa acontece, e com bastante brilho.

Então, temos desvios, comissões, superfaturamentos relacionados à Copa? É claro que sim. Os gastos da copa poderiam ser aplicados em  coisas mais urgentes, se ela não ocorresse? Certamente. Deveriam ter sido feitos de forma mais transparente e sem indícios de malversação? Sim. As obras de infraestrutura urbana foram mal planejadas e expulsaram milhares de famílias pobres? sim. As obras permitiram a alavancagem de negócios para grandes empreiteiras e o mercado imobiliário? sim. Tudo o que sempre estivemos habituados a ver, e de responsabilidade também dos Estados e municípios que se engalfinharam para ter a Copa. É por isso que era correto ser contra a Copa, ANTES dela vir. Mas alguém realmente se opôs, exceto os setores excluídos de sempre (com toda a honra que merecem por isso) à escolha do Brasil para a Copa ou as Olimpíadas? Alguém se opôs aos gastos faraônicos e superfaturados dos jogos Panamericanos do Rio de 2007? 

Certamente não os que há uns dias xingaram a presidente, de seu camarote VIP. Na oposição à Copa há correntes diferentes: há os que, dentro dos quais me incluo, vêm fazendo uma reflexão crítica não só à copa, mas a todos os mega-eventos, pelo que representam hoje no capitalismo mundial, e que eu descrevi anteriormente. Há também aqueles que, legitimamente, fazem do protesto contra a copa uma extensão de seus protestos de vida. Os que, porque não têm casa, não têm trabalho, não têm lugar na nossa sociedade elitista, racista e conservadora, reivindicam seus direitos e aproveitam a oportunidade da Copa para chamar a atenção para suas lutas. Duvido que fosse em solidariedade a eles que os VIPs estavam xingando. Há os que simplesmente são enojados pelo sistema em que vivemos e, simplesmente,  não se importam com futebol, ou se se importam, não acham que ele deva escamotear a sua situação e a injustiça que sofrem. Esses são os grupos que têm, no meu entender, mais legitimidade para opor-se, de verdade, à Copa. E geralmente são os que fazem as manifestações mais íntegras, pacíficas e inteligentes.

Mas há os que se opõem à Copa por motivos ideológicos "de esquerda", e que acham legítima a oposição violenta como forma de protesto. Estão batalhando com a PM para tentar bloquear as vias de acesso, estão quebrando lojas e eventualmente agredindo turistas. Não vou entrar em detalhes, porque não sou adepto desse caminho. Além disso, acho que ele se torna rapidamente confuso quando confunde-se com Anônimos estranhos, com skinheads e punks, e nem mesmo os blackblocs conformam um movimento suficientemente unido e coerente para que se entenda exatamente o que querem. Se não fazem parte dela, acabam fazendo o jogo da direita antigovernista, pois alimentam discursos ufanistas e antidemocráticos como do "gigante que acordou", "vem pra rua você também", em nome de um civismo ufanista fútil e falsamente indignado contra tudo e todos, sem muita discriminação. É o direito deles protestar, e é consequência esperada (e por eles pretendida) o confronto violento com a polícia. Cada um com seus métodos.

E há, enfim, essa direita elitista e a classe média conservadora que embarca em seu discurso. Essa que se veste de branco ao primeiro chamado da Globo para sair bradando que não aguenta mais "essa bandalheira", mas que certamente contribui para os R$ 400 bilhões de impostos sonegados a cada ano, 25 vezes o que se gastou com toda a Copa (clique  aqui). Que se diz preocupada com o "Brasil" quando na verdade está mais preocupada com si mesma. Quem faz da sonegação uma prática corriqueira certamente não fica, o ano todo, questionando a falta de hospitais. Essa, enfim, que achou por bem mandar a Presidente tomar naquele lugar.

Mas o fato é que a Copa começou, e vai indo muito bem, obrigado. Se Lula fez uma aposta política em 2007, ao brigar pela escolha do Brasil, mesmo sabendo que sete anos depois a conjuntura poderia não ser a mesma, o fato é que pelo menos nesta primeira semana de Copa, ele a vem ganhando. A Copa vai trazer coisas boas? Com certeza também vai, apesar de todos seus desastres: para a imagem do Brasil, para a nossa inserção econômica, para a melhoria da infraestrutura aeroportuária, para a autoestima nacional e quem sabe para a certeza da nossa superioridade no futebol mundial. Apesar dos pesares, apesar dos Blatters e Valckers. Isso justifica que se trouxesse o campeonato para cá? Ao meu ver, não. Aos olhos do governo, sim. Essa é a questão questionável. Essa é a polêmica plausível. Porém, dizer que não pode haver copa porque o país é pobre e tem crianças morrendo de fome e hospitais com filas é cair no reducionismo simplista e mal intencionado típico dos constantinos, azevedos e pondés da vida.

Disso decorre que alguém que tenha verdadeiramente refletido sobre isso tudo, de forma honesta, deveria certamente desistir de ver os jogos, e mais ainda de torcer pelo Brasil. É a lógica. Mas ocorre que, em plena ditadura, os presos políticos confessaram que, de dentro das masmorras da tortura, torciam pelo Brasil de Pelé na Copa de 70 mesmo sabendo que aquele título só iria fortalecer o regime.

Pois é, as coisas são são assim tão dicotômicas. Esse capitalismo perverso de que falei é complexo, e mais ainda porque nele vivemos e dele dependemos, infelizmente. E fazemos no dia a dia uma série de coisas em relação às quais somos contra. Eu acho que as companhias de telefonia no Brasil praticam roubo descarado dos consumidores e que o celular é um fetiche do consumismo. Mas, ainda assim, tenho um e pago por isso bem mais do que gostaria. Adoro ouvir o Eduardo Galeano falar mal do sanduíche do Mac Donalds e festejo quando Jamie Oliver denuncia que é feito de porcaria, mas volta e meia estou lá pedindo uma promoção. Defendo que todos nós devamos deixar o carro na garagem e adotar o transporte público, mas ainda uso o meu uma boa parte da semana. Aliás acho o automobilismo na teoria um esporte fútil, insustentável e promotor de uma indústria nociva, mas ainda assim volto e meia torço pelo Massa. Defendo que a política brasileira só se salva com uma Constituinte independente e exclusiva para reformá-la, mas mesmo assim, nas eleições, torço o nariz e vou lá exercer meu direito ao voto. No futebol, acredito que o esporte tenha se tornado uma máquina perversa de criar mercenários que ganham muito além do decente (em um mundo com tanta pobreza), nas mãos de cartolas que mais parecem Al Capones do que dirigentes esportivos. Neste caso, pelo menos consegui me desinteressar ao ponto de não torcer por time algum, e nem ver muitos jogos no cotidiano.

Mas nesta Copa, por alguma razão, que pode ser a raiva com os VIPs que se acham acima de tudo ao ponto de xingar a presidente em cadeia mundial, que pode ser a vontade de ver a oposição engolir suas mesquinhas manipulações eleitoreiras, que pode ser por um orgulho besta de ver o país sendo elogiado no exterior, que pode ser por solidariedade ao Marcelo, pelas mensagens racistas nas redes sociais após seu gol contra (leia aqui), mas que também pode ser, simplesmente, por um patriotismo juvenil, vou torcer, e muito, pela seleção. 

#játemcopa