Donald Dória e a política dos factoides

Deu muito o que falar nas mídias sociais o recente vídeo difundido pela prefeitura de São Paulo, “Road Show”, colocando literalmente a cidade à venda para eventuais investidores interessados na privatização dos mais diversos equipamentos e serviços. Demorei para decidir escrever sobre isso, por uma simples razão: o objetivo maior desse vídeo não é a seriedade ou veracidade de seu conteúdo, mas sim simplesmente fazer falar da nova gestão do prefeito Dória. Ao discutir sobre ele, comentar, escrever, estamos fazendo exatamente aquilo para o que essa peça de propaganda foi criada.

Mas vamos lá, acho que ainda assim vale um pequeno comentário crítico. João Dória e Donald Trump têm muitas coisas em comum. Uma delas é a de fazer política por meio de factoides, lançamentos de programas ou decisões polêmicas e estapafúrdias, muitas delas sem a menor fundamentação ou possibilidade de efetiva realização, o que não é problema algum, já que seu objetivo é puramente de imagem, fazer falar deles a qualquer custo. Não importa se a notícia for impopular para grande parte dos setores progressistas (aliás, é até bom que seja, na visão deles), o que importa é a imagem que passam para o eleitorado médio, aquele que acredita piamente e sem nenhuma reflexão crítica na grande mídia. Uma enorme parte das ações anunciadas por Trump sequer estão no âmbito de suas prerrogativas, devem passar pelo Congresso, pela Suprema Corte, por outras instâncias onde têm grandes chances de cair. Mas não faz mal, o barulho está feito, e a imagem do líder de araque forjada.

A cruel decisão de sair pintando de cinza os grafites que faziam da cidade a capital mundial da arte de rua é um exemplo disso. Não importa que seja um gesto de um obscurantismo cultural sem precedentes que apagou inclusive obras de artistas vencedores de programas de incentivo à arte fomentados e financiados pela própria Prefeitura em tempos anteriores, pois isso é crítica de gente que, de qualquer forma, não votou e nem gosta do prefeito. O que importa é que para a massa que lê e crê no Jornal Nacional, Dória está passando um recado de líder disciplinador, higienizador da cidade, que não tem medo de pichadores nem de intelectuaizinhos de esquerda que defendem a arte, e que não tem medo de tomar atitudes drásticas e radicais mesmo que falem mal dele. Na sequência, planta uma ação paliativa com cara de sofisticada, no caso a de que no lugar dos grafites irá fazer paredes verdes, levando nesse discurso grande contingente de gente um pouco mais esclarecida que vai dizer “tá vendo, ele não fez isso à toa, era para um projeto ótimo e sustentável”. É claro que falta esclarecer que paredes verdes já estavam sendo implantadas na gestão Haddad em todo o Minhocão, com grande sucesso, e com NENHUMA incompatibilidade com a arte de rua, já que ambas não são excludentes mas, ao contrário, funcionam muito bem juntas. Mas nada disso interessa. O que interessa é que, coincidentemente, o SPTV dedicou esta semana grande parte do seu tempo para longa reportagem sobre o gravíssimo crime ambiental da pichação, mostrando gráficos sobre ocorrências e tempo de condenação para quem for pego. É a Globo dando sua contribuição para a imagem que vem sendo construída: Dória, o gestor super herói que livrará a cidade desse grave mal (embora nem na amada NY se consiga impedir a pichação, quem andou de metrô por lá sabe disso muito bem).

Assim como esse, os factoides vão se acumulando, desde os primeiros dias de governo, sempre com muito barulho, mesmo que com pouco ou nenhum resultado efetivo. Os carros oficiais, por exemplo: já no primeiro dia de mandato Dória anunciou – e a imprensa replicou, e o povo fã da Veja e o JN adorou – que iria cancelar todos os carros oficiais, que os secretários usariam Uber, que iria ser feita uma “limpa” nessa pouca vergonha. Não se discutia o lado técnico: que secretários são obrigados – ao menos se fizerem bem o seu trabalho – a rodar quase diariamente a cidade com suas dimensões fenomenais, gastando recorrentemente várias horas em seus deslocamentos, e que fazer isso de Uber simplesmente seria inviável e fora de preço. Que na gestão passada algumas secretarias fizeram um programa-teste de utilização de táxis contratados, sem entretanto ter resultados efetivos para tomar a decisão de substituição, embora essa possa ser uma ideia, se bem pensada e colocada em prática aos poucos. Que os técnicos de secretarias como as de saúde, habitação, educação, serviços, etc., etc., são obrigados a deslocar-se permanentemente para acompanhar as políticas implementadas e atender as mais diversas solicitações, e que para isso são necessárias frotas de veículos oficiais, cujo aluguel vem sendo a alternativa mais racional. E assim vai. Obviamente não tenho nada contra reduzir custos com carros oficiais, e eu mesmo, no deslocamento casa-trabalho, utilizava, em 80% das vezes, o metrô ou a bicicleta para ir ao serviço. Porém, para chegar em Ermelino Matarazzo saindo do centro, e passar no mesmo dia em uma reunião na Brasilândia, não há como fazer senão de carro. Nada disso foi dito. E até onde vão minhas informações, os secretários continuam, hoje, usando os mesmos carros oficiais, com as mesmas empresas, os mesmos contratos, os mesmos motoristas. O “élan” disciplinador inicial era na verdade puro factoide para criar imagem.

A lista é infinita. Dória anunciou antes mesmo de assumir, e sem ter feito qualquer estudo financeiro de viabilidade para tal, que iria congelar as tarifas (de olho nas eleições para o governo?). Não tenho nada contra a medida, mas seu anúncio despreparado levou a prefeitura a gastar, no primeiro mês de governo, o dobro do previsto com subsídios às empresas de ônibus e a assumir uma nova dívida de R$ 237 milhões com as mesmas (ver aqui). Nesse ritmo, em junho o orçamento para o transporte de ônibus se esgotará. Deve ter gente na secretaria de finanças se descabelando.

A grande mídia, é claro, adora essa prática e manda repórteres que aumentam o frisson e o impacto da notícia. O prefeito se veste de gari e estão todos lá, fotógrafos, câmeras, jornalistas. O prefeito vai para Abu Dhabi e a Jovem Pan (e outros) manda repórter acompanhá-lo (com Haddad, ela botava o Villa para esculachá-lo diariamente com mentiras e ofensas). É um círculo vicioso, o prefeito faz a notícia, a imprensa a vende para um exército de incautos ávidos por receber qualquer bobagem em seus jornais e suas telinhas, e todos ganham e lucram com isso. E a roda continua.

O vídeo agora lançado nas redes é mais da mesma coisa. Para inglês ver. Ou, nem isso, para fazer a festa do eleitorado crédulo. Nele, uma São Paulo limpa, organizada, branca e rica é mostrada com narração em inglês (na ótica de muitos não há melhor imagem de gestão moderna e eficiente do que um texto em inglês), e equipamentos e serviços são listados e apresentados como grandes oportunidades de negócio e investimentos para quem queira assumir sua privatização: o Estádio do Pacaembu, o Anhembi, Interlagos, o Parque do Ibirapuera, o Mercado Municipal, “ativos municipais” para o mercado imobiliário, o transporte de ônibus, e até mesmo o serviço funerário municipal, com a promessa de facilitação e suporte da prefeitura para quem desejar entrar nessa grande aventura de negócios.

Tudo balela. Primeiramente é de grande ingenuidade acreditar que grandes investidores internacionais com cacife para comprar um autódromo ou um sistema municipal de transporte não estão permanentemente de olho em oportunidades no mundo inteiro e certamente conhecem São Paulo e seu eventual potencial de investimentos, graças equipes de especialistas no assunto, muito mais do que um videozinho de internet possa oferecer. Soa estranho que alguém mundo afora se interesse, digamos, por comprar a gestão do Pacaembu após ver um vídeo de propaganda raso e com poucas informações, só porque está falado em inglês.

Em segundo lugar, porque cada um desses equipamentos e serviços apresenta uma infinidade de características específicas que os tornam objetos bastante complexos de se colocar à venda assim do nada como em um anúncio de margarina. Tomemos, de novo, o exemplo do Pacaembu: o vídeo não está explicando ao eventual investidor que se trata de uma obra arquitetônica – aliás belíssima – tombada, que não pode ser modificada para tornar o lugar uma “Arena qualquer coisa”, como se vê por aí. Não diz que lá não é possível fazer grandes shows por causa da Lei do Psiu e de uma aguerrida e sobretudo abastada vizinhança com muito poder para vetar tais eventos. Não diz que os principais clubes de futebol da cidade têm pouco interesse no lugar porque todos hoje possuem seu próprio estádio. Não fala que muitos governos já tentaram soluções de privatização da gestão do estádio, sem sucesso. E assim vai.

O transporte de ônibus da cidade já é, de certa forma, privatizado, está nas mãos de um forte conglomerado de empresas, como se sabe com bastante poder, “donas” de concessões que duram décadas e com muita força para fazer valer sua participação em novas licitações. Alguém avisou disso os russos? Em alguns casos, como o Parque do Ibirapuera, é difícil entrever como uma empresa poderia lucrar mantendo o acesso público e gratuito do mesmo, apenas na organização de shows que hoje já vêm sendo produzidos por empresas terceirizadas. Ou o investidor sabe que terá que fazer passar pela Câmara Municipal e pela pressão pública uma alteração que vise privatizar o uso daquele espaço? E quanto às oportunidades imobiliárias prometidas com “!ativos municipais”, a prefeitura realmente pretende da noite para o dia transferir bens imóveis municipais para o setor privado - cuja alienação não pode ser feita, legalmente, por simples decisão do executivo - sem qualquer tipo de discussão e imaginando que a cidade assistirá passivamente a tudo isso? A piada maior está, certamente, na oferta do serviço funerário municipal, que aliás já foi objeto de tentativa de privatização, sem sucesso, em 2005, na gestão Serra (e que na última gestão, mantendo-se na esfera pública, foi objeto de ampla ação de melhoria, contratando 200 motorista, comprando 30 novos carros e reduzindo a espera média pelo serviço de 4 a 12 horas para apenas 1:30, menos do que os padrões internacionais).

Para que tudo isso? Primeiro, para alimentar a construção permanente da imagem do prefeito, de bom gestor, eficiente empresário, que sabe das coisas, sabe falar inglês e sabe dialogar com o “mercado internacional”, mesmo que este, desconfio, sequer tenha visto a dita peça publicitária. Em segundo lugar, porque assim, pouco a pouco, vai-se consolidando no ideário popular, no eleitorado que assiste a Globo e crê na grande mídia, a ideologia da privatização como “a” melhor solução para a cidade, mesmo que não seja. É que ela interessa, evidentemente, não nas coisas impossíveis, mas em alguns nichos que podem ser muito lucrativos, ao grande capital. Mas estes, podem ter certeza, não serão anunciados em inglês pelas redes sociais. Não duvido que qualquer hora Donald Dória e João Trump estejam juntos em algum vídeo promocional por aí.