Guedes, o AI5, e as chances de uma crise mais grave

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A estas alturas eu não sei mais se se deve torcer civilizadamente para que o governo não afunde o país - o que seria ruim para todos -, ou torcer para que esses loucos neofascistas que estão destruindo tudo, armando o país, disseminando preconceitos e ódio, se deem mal de uma vez, cessando essa barbárie o quanto antes.

Só sei que a fala do Paulo Guedes sobre o AI5 pode significar mais coisas do que somente um destempero de ministro para alinhar-se com o chefe presidente e seus filhos-recrutas. Até aqui, estávamos nos acostumando a ver um Guedes razoavelmente quieto (por exemplo, se comparado ao alucinado Weintraub).

Isso era - e é - sem dúvida parte de uma estratégia. Há muito tempo que quem manda no mundo são as grandes corporações, os grandes grupos econômicos do capitalismo financeirizado. Para essa gente, o quanto pior melhor não é uma situação conjuntural, é um objetivo. Desde Trump, perceberam que podiam livrar-se da roupagem civilizacional e pseudo-democrática, e partir para a ignorância, que a massa da classe média de cérebro mediano acompanharia extasiada discursos extremistas, rasteiros e de ódio, ideais que elas aprenderam na TV mas até então não podiam expressa às claras. Dane-se os pruridos da centro-direita elegante, por causa desses cuidados "democráticos" os esquerdistas do discurso "mimimi" - occupy, defensores de liberdades pra todo lado, movimentos cívicos, defesas cidadãs, solidariedade com os imigrantes, vegetarianos, veganos, e tudo mais que lembrarem - estavam ganhando espaço demais, incomodando os poderosos de plantão.

O modelo Trumo-Bannon, associado a movimentos de uso da lei para perseguições políticas - o chamado LawFare -, como por exemplo contra o tão incômodo Assange, do Wikileaks , mostrou que era possível forçar a barra, ir além do que era até então "aceitável" nas regras das democracias, tensionando a sociedade em assuntos "secundários" (em relação ao que interessa, a destruição de tudo para facilitar o lucro), para permitir que, enquanto isso, as corporações, os grandes grupos financeiros, pusessem em prática uma avassaladora política de liberalidade econômica, que deixa o neoliberalismo dos anos 90 no chinelo. Esse é o verdadeiro jogo do Trump, que faz o papel de espantalho quase folclórico que diz imbecilidades o tempo todo, enquanto as "coisas sérias" vão acontecendo, e rápido.

Esse modelo, tim-tim por tim-tim, foi o importado aqui para as nossas bandas. O nível de tosqueiras, imbecilidades, afrontas à humanidade, emitidas pelo Presidente e seus buldogues, sem que haja nenhuma consequência, só pode ter uma única explicação: está servindo a quem manda de fato, aos poderosos do sistema econômico. Por isso o sujeito fala e faz coisas que, em outros tempos, teriam feito cair qualquer presidente, daqui ou de países ditos "desenvolvidos". A simples proximidade que chega um dos filhos do presidente com a morte de Marielle - como já foi apontado pelo Kennedy Alencar e o Luis Nassif - já seria escandalosa o suficiente para afundar qualquer presidente. Mas não hoje em dia. Hoje tudo isso parece, ao contrário, servir a um propósito maior. Esses caras estão fazendo o papel do Trump, e nisso se inclui não só o Presidente, mas também ministros de áreas "secundárias", como a educação ou a cultura. propícias a provocações que sensibilizam as esquerdas e as deixam em permanente alerta, sem tempo para atentar ou se contrapor às mudanças estruturais feitas simultaneamente pelos capangas da área econômica.

E qual é esse propósito maior? É só olhar para o Guedes, justamente. Ali quietinho, enquanto nos detemos assombrados a prestar atenção nas falas dos Bolsonaros (pai e filhos), Weintraub e Cia, ele vai, com o apoio de um Congresso dominado pelos interesses corporativos, entregando o país. A educação superior aos grandes grupos privados do setor, que têm na irmã de Guedes uma de suas maiores lobistas, a saúde às grandes cias de seguro saúde, o Pré-Sal às petroleiras internacionais, a vida dos trabalhadores escorchados pelas reformas aos empresários, desonerados de tudo que possa lhes ser desagradável, e assim vai. A característica dessa estratégia é o Presidente fazer o maior barulho possível, e Guedes o menor, para que um encubra com seu ruído as nefastas ações do outro.

Pois bem, o que tem a declaração de Guedes sobre o AI5 a ver com isso? Tem que ela foge da regra. Não é normal. E isso pode ter duas explicações: ou que tudo que falei acima está errado e falar bobagem antidemocrática é uma característica de qualquer um no governo, seja ele Guedes ou Bolsonaro ou, o que acho mais provável, que Guedes está acuado, senão desesperado, com o que pode estar por vir. Teve que sair do seu recanto de conforto, assumindo um protagonismo de radicalidade que aponta para sua propensão a salvar-se a qualquer custo, mesmo que apelando para “novos AI5”.


Vejamos o porquê.


O dólar está batendo recordes de valorização ou, se preferir, o Real está se desvalorizando. A rigor, isso não é ruim. Na época de Lula e início de Dilma, enquanto surfávamos em um ciclo de crescimento em um contexto internacional ainda sem crise e compradores sólidos das nossas exportações, havia margem e poder de fogo para baixar um pouco os juros e desvalorizar o real, com o intuito de relançar os empréstimos internos e os investimentos industriais, além de dar mais fôlego às exportações (pelo Real baixo), dinamizando a economia. Embora deslocado no tempo, pois o cenário não é mais aquele, esse é exatamente o discurso que Guedes quer passar, tratando a subida do dólar com "normalidade". Porém, no meu ponto de vista, a coisa não é exatamente assim.

Vamos antes relembrar que os juros altos foram a receita do Plano Real: atrai-se para o país dólares do "mercado financeiro" global, em busca dos ganhos garantidos pelos juros altos, que ao adentrarem na nossa economia dão lastro para equivaler a quantidade de dólares em reserva com a de Reais em circulação, equiparando as moedas. A chamada estabilização monetária por meio de políticas cambiais. Ou seja, juros altos significam moeda interna forte, portanto menor (ou quase nenhuma) inflação. Uma receita que fez sucesso para estancar a hiperinflação e dar novamente poder de compra aos mais pobres, levando FHC à reeleição.

Porém, se a inflação fica sob controle, as exportações caem drasticamente, pois não conseguem ser competitivas lá fora com preços altos, já que em Reais quase equivalem ao preço em dólares. Internamente, os juros altos inibem a tomada de empréstimos, sobretudo pelo setor produtivo, que não quer pagar esses juros e ganha muito mais em investir seu dinheiro não em novas fábricas (que gerariam empregos e oferta de produtos) mas no mercado financeiro especulativo que paga altos juros. Por fim, o compromisso de se pagar juros elevados aos investidores que aqui trazem seus dólares faz com que explodam a dívida externa e as privatizações, para obter dinheiro em dólares para honrar tais compromissos. Foi o que ocorreu ao fim do governo FHC, quando os efeitos negativos dessa política cambial praticamente quebraram o país, o forçaram a tomar 30 bi de empréstimo junto ao FMI (que Lula iria cumprir) e o sacaram do governo com enorme taxa de reprovação. Não à toa Lula ganhou na sequencia as eleições secundado por um vice da indústria, José Alencar, cujo mantra era "baixem os juros".

Pois bem, esse modelo pouco mudou desde então. Digamos que Lula o cumpriu melhor do que FHC (daí a raiva intestina do príncipe da Sociologia em relação ao Sapo Barbudo?), baixando juros e dando um forte viés social de combate à miséria, coisa à qual FHC não havia atinado (não é do seu estilo). A política econômica passou a ser um malabarismo constante (e o malabarista era o Palocci) entre aumentar juros e garantir a estabilidade inflacionária mas promover a recessão interna, ou baixar juros, dinamizar as exportações e os investimentos industriais, mas ficar vulnerável à pressão inflacionária. Esse malabarismo veio dando razoavelmente certo ao longo dos governos do PT, com sobras até para sanar a d´vida com o FMI e fazer fortes investimentos em infraestrutura (PAC). Porém, com a atual crise internacional, ainda reflexo da de 2009, que se abateu sobre o governo Dilma alguns anos depois, a situação não ficou tão fácil de controlar. O cenário externo estagnou o comércio internacional para os atores mais fracos, ou seja, as exportações brasileiras, entre outras.

Voltando ao momento atual, procure por aí e você achará vários analistas dizendo que a atual alta do dólar tem razões estruturais. O que está acontecendo?

O que ocorre é que os juros foram sendo gradativamente baixados, até níveis muito baixos, o que teoricamente ajuda a economia; Com reservas em dólares abundantes e uma dívida externa equilibrada,sendo até credor internacional - feitos, diga-se, dos governos petistas - o Brasil pôde de fato ir abaixando os juros, ainda mais porque sem regular aqueles cobrados internamente pelos bancos (o famoso spread bancário, a diferença entre os juros definidos pelo BC e aqueles cobrados pelos bancos, que é o mais alto do mundo), os bancos continuaram sem ser incomodados a lucrar como nunca antes na história. Vale a nota de que das razões da queda de Dilma e da perseguição implacável ao Mantega foi eles terem resolvido mexer com o tal spread (veja um exemplo aqui)

Com os juros baixos, porém, diminuem as reservas em dólares, pois os investidores do mercado financeiro tendem a retirar seu dinheiros daqui, em busca de mercados mais interessantes com juros mais altos. Em excelente artigo no UOL (clique aqui para ler)), José Paulo Kupfer indica que saíram este ano do país, ate agora, cerca de 21 bilhões de dólares, o maior volume desde 1999.

Porém, a moeda menos valorizada - justamente por essa diminuição das reservas - deveria permitir um aquecimento das exportações, fazendo com que a equação macroeconômica se sustentasse. Ocorre que apesar dos juros baixos, as exportações estão caindo, por causa da crise internacional, e talvez das pataquadas do governo Bolsonaro também. E muito. Kupfer indica que a balança comercial despenca, e fechará o ano quase 40% abaixo do ano passado (de 60 bi para 40 bi), caindo ainda mais nas previsões para 2020. Segundo o jornalista, as exportações de Soja para a China e de carros para a Argentina batem recordes de redução.

Assim, sem conseguir captar dinheiro com as exportações, sem conseguir atrair dólares com os juros, e sem conseguir trazer divisas nos leilões do pré-sal, pelo menos em relação às expectativas, Guedes está entrando em uma tremenda saia justa. Um terreno minado, que pode lhe custar muito caro. Pois a saída, há alguns anos, seria simples: elevavam-se os juros, atraindo novamente dólares e segurando a inflação. Porém, agora, a recessão interna é tal que a economia não aguentaria essa solução. Como já disse, as consequências internas dessa elevação são graves: exportações caem de vez, empréstimos produtivos congelam, desemprego sobe, recessão se intensifica. Algo que, no atual nível de estagnação do PIB, levaria a uma situação para lá de crítica, reeditando o cenário de quebra dos últimos anos FHC. Sem essa saída, mantendo-se os juros baixos, o que pode se aproximar é sim um quadro inflacionário, que pode ter picos repentinos. O governo alega que as reservas de dólares são suficientes para segurar o rojão. Como diz Kupfer, as ações do BC “seguem a cartilha. A ideia é fornecer dólares para quem está necessitado, mas não a ponto de queimar reservas internacionais sem limites”. Mas já vimos essas cenas em capítulos anteriores, com resultados desastrosos.

Parece que, enquanto vendia o país aos interesses corporativos, enquanto produzia seus malefícios na "surdina", Guedes deixou escapar o controle macroeconômico. Sua fala sobre o AI5 pode ser, sim, sinal de um grande desespero. Mas como não sou lá um economista muito qualificado, posso estar falando um bocado de besteiras. Oxalá. Seria prudente, assim mesmo, observarmos com mais cuidado os próximos acontecimentos econômicos. Mesmo com o Bolsonaro e sua trupe continuando a fazer seu papel de espantalhos.

Atualização: O luis Nassif aventa a hipótese de que o Guedes, que é do mercado financeiro, e atua no governo como se ainda fosse um operador buscando lucros, tenha feito as declarações sobre o AI5 para gerar alta ainda maior do dólar e, assim, muitos lucros para quem eventualmente pudesse ficar sabendo dessa especulação. Se for isso, já não há nem o que comentar.