Aos jovens de hoje, sobre os jovens de ontem e a “comemoração” do Braga Netto

Neste dia 31 de março, o novo ministro da defesa de Bolsonaro, o General Braga Netto, aquele mesmo que foi “interventor” militar no Rio há alguns anos, a mando de Michel Temer, soltou uma nota oficial “comemorando” o golpe de 64. Nas ruas, alguns imbecis acharam por bem sair sem máscara e com a camiseta da seleção (já não consigo mais olhar para nossa seleção, de nojo que me dá) para celebrar a ditadura.

Há uns dez anos atrás, quando ainda dava aula no Mackenzie, que em 1968 assistiu de camarote a Batalha da Rua Maria Antônia, entre estudantes anti-ditadura e o Comando de Caça aos Comunistas, saído dos porões daquela instituição, um aluno me perguntou ingenuamente: “professor, é verdade que houve um golpe militar no Brasil em 1964?”.

Frente a uma certa apatia das gerações mais jovens em relação à nota de Braga Netto (as mais velhas ficaram, obviamente, em alvoroço), e lembrando da pergunta desse meu aluno, achei que deveria me somar aos que, cada um à sua maneira, tentam alertar essa juventude sobre a gravidade desses fatos, e o escândalo que significa um Ministro da Defesa, militar da ativa, fazer a apologia ao regime ditatorial.

Para que fique registrado, e como se vê em um vídeo que felizmente correu nas redes estes dias, os ditadores argentinos foram todos condenados à prisão perpétua. Aqui, a simples ideia de uma comissão que resgate a verdade dos crimes da ditadura foi suficiente para deixar os militares em pé de guerra. Aqui, ninguém foi condenado. Pelo contrário, militares que festejam a ditadura se tornam ministros, e um capitão que achou que a ditadura matou pouco, virou presidente.

Então vamos rememorar um pouco. Desculpem o texto longo, e com muitos toques pessoais. Fico pensando que não é culpa do meu aluno que ele não soubesse da ditadura. A lavagem cerebral é constante, e a mídia brasileira nunca pautou esse tema com a devida importância e crítica. Talvez tenha sido, até, condescendente, já que aceitou, por anos, tratar o golpe como "revolução", a versão vendida pelos militares. Além disso, o fato é que o tempo passa. Eu mesmo, que já deixei os 50 para trás, não sou propriamente da geração da ditadura. “Peguei” ela quando criança. Por isso, e felizmente para mim, não posso rememorar a dureza da ditadura como alguns amigos, que foram eles mesmo dilacerados (o corpo, a alma, o coração, a família, tudo) pelo regime de terror. Mas acho que algumas lembranças sempre ajudarão os mais jovens a entender melhor do que se trata. Mesmo que tenha algumas imprecisões da minha memória de criança.

Em 1964, meu pai foi preso. Eu nasceria somente dois anos depois, e essa história eu só sei de me contarem. Ainda bem, naquele primeiro momento, os militares (ainda) não torturavam, e meu pai passou cerca de um mês sob as grades. Não, não houve julgamento, mandato, o que fosse. Os militares passaram lá em casa e o prenderam. Qual seu crime? Ele era diretor da Superintendência Nacional da Reforma Agrária – SUPRA, do Governo Federal. Em outras palavras, era um servidor público que trabalhava para que as terras do nosso país fossem distribuídas de forma mais justa.

Muita gente pergunta porque os “esquerdistas” (como eu) têm a “política no sangue” e são tão passionais ao falar sobre isso. Veja, quando você desde os seis anos de idade começa sabendo que seu pai foi preso por uma coisa dessas, que não faz nenhum sentido, dá para entender que a questão do que é certo e errado numa sociedade permeie seus pensamentos para sempre. Agora imagina aqueles que não tiveram somente que lidar com um relato como o que eu ouvia, de certa forma “ameno”. Hoje que tenho filhas, nem posso imaginar a violência que deve ser você ser preso uma bela manhã, com três filhas e uma mulher deixadas em casa, de forma tão injusta. E aqueles que não tiveram a mesma sorte? Filhos e filhas de gerações mais jovens que a dos meus pais, que viram os seus arrancados violentamente, torturados, assassinados, muitas vezes na sua frente, porque foram eles mesmos presos, ainda crianças? Sim, isso aconteceu, e muito.

Meus pais, vindos de uma militância estudantil católica do início dos sessenta, eram de uma idade um pouco mais avançada (mas nem tanto, apenas passavam dos trinta) do que os jovens estudantes que iriam endurecer a luta contra o regime nos anos que se seguiriam, com o AI-5 de 1968, sobretudo. Já tinham três filhas, logo eu viria. Após passarem dois anos livres, mas com todas as possibilidades de emprego cortadas, tendo seus projetos repentinamente desfeitos pelos até então parceiros, sendo vigiados e sentindo a barra pesar, meu pai e minha mãe tiveram a sorte de poder sair do Brasil, rumo à França, onde ficaríamos por alguns anos, até irmos para Chile. O exílio é algo que soa bem para quem tem poucos meses de vida e iria, na prática, crescer como um francês. Mas minha vida toda pude observar nos olhos de meus pais o que é você ser arrancado de seu país, da sua família, sem ter a possibilidade de retornar, porque seria preso. Vi isso neles, e nas centenas e centenas de jovens que chegavam por lá à medida que a ditadura endurecia (e que eu ia crescendo). Jovens latino-americanos arrancados de seus países, de suas famílias, torturados violentamente, sobreviventes, jogados em um país desconhecido que por sorte os acolhera.

Em 1971 fomos para o Chile, onde meu pai trabalharia na CEPAL, o famoso órgão de estudos da ONU para a América Latina. E lá, eu já com sete anos, viveria eu mesmo desta vez, um golpe. No Brasil, o AI-5 já vigorava faziam cinco anos, muitos intelectuais e militantes brasileiros de esquerda haviam fugido para o Chile, onde o governo socialista de Salvador Allende revigorava as esperanças de todos por uma América Latina melhor. As notícias do que ocorria aqui eram trágicas: jovens torturados, desaparecidos. Militares com metralhadora dentro das salas de aula nas universidades, monitorando o que os professores falavam e o comportamento dos estudantes. Era normal você chegar na aula um dia e seu amigo da carteira ao lado não estar lá, e nem voltar mais. Enquanto o sistema de propaganda encobria os fatos e jogava tudo na conta de pequenos atos de insubordinação de jovens esquerdistas, enquanto a massa era enganada com muita TV e com os jogos da seleção (sempre ela), nos porões dos DOPS jovens eram violentamente torturados, mães violentadas. O Coronel Ustra, aquele mesmo que o Bolsonaro tornou herói em sua declaração no impeachment da Dilma, tinha como prática preferida a de inserir ratos na vagina das presas que torturava. Dilma que foi, aliás, ela mesma violentamente torturada. Qual o crime para elas “merecerem” isso? O de terem sido jovens, idealistas, e sonharem e lutarem por um mundo democrático e socialmente justo. Em palavras atuais, por falarem “mimimi”.

O golpe do Chile, perpetrado por Pinochet, foi imediatamente marcado pela extrema violência. Mais uma vez, a violência se abate sem razão e com fúria sobre a cabeça de pessoas que absolutamente nada fizeram. Mais uma vez, como ocorrera no Brasil e ocorreria em tantos outros países do continente, pessoas “de bem” fingiam não ver e, por medo, por covardia ou por instinto de sobrevivência, pareciam encobrir e aceitar que o colega de trabalho, o vizinho, ou mesmo o “amigo” até então fossem arrancados da vida. Essa é uma característica da ditadura: esses mesmos que hoje fingem que não há covid e saem sem máscara mesmo contaminados, esses mesmos que vão às ruas pedir a volta da ditadura e aplaudir o psicopata, seriam aqueles que virariam as costas até para seus familiares quando esses fossem presos e levados injustamente para a tortura e a morte. A ditadura, assim como o faz Bolsonaro, provoca cisões e feridas profundas no tecido social, nas relações entre as pessoas. Coisas que não se saram tão rápido.

Túlio Quintiliano e Beatriz Verri, que era prima-irmã do meu pai, jovem casal de brasileiros exilados no Chile fugidos da nossa ditadura, foram levados pelos carabineiros na noite seguinte ao golpe, denunciados por vizinhos somente por serem, para eles, “esquerdistas” demais. Túlio nunca mais voltou, assassinado naquela mesma noite. A partir dali meu pai, que já nos dias seguintes ao golpe, saia à noite em pleno toque de recolher para (usando o carro com chapa diplomática) colocar jovens em embaixadas para que fugissem do terror, passou a investigar a sua morte, vendo os horrores de perto, do Estádio Nacional, da morgue , onde se enfileiravam centenas de corpos de gente jovem ceifada. Nos corredores da morte, passou impune por um tempo, porque os militares acreditavam que aquele senhor engravatado era mais um policial....brasileiro, à caça de exilados que pudesse enviar de volta aos porões do Brasil. A enganação não durou muito, e rapidamente tivemos que sair às pressas do Chile para voltar para a França, com breve passagem pelo Brasil (de nós, os filhos e da minha mãe, clandestinamente), e pela Argentina. Mas essa é outra história.

O que importa aqui é mostrar que o terror do Chile se associava ao terror brasileiro, e logo seria ampliado com conexões no Uruguai e na Argentina. Em cada um desses países, se repetiam os mesmos procedimentos de barbárie. Mujica, como se sabe, ficou sete anos em uma solitária. Na Argentina, seriam 30 mil mortos e desaparecidos, muitos sequestrados na rua em plena luz do dia pelos famosos Ford pretos sem placa e com porta-malas grande. A operação Condor, arquitetada diretamente dos EUA pela CIA e por Henri Kissinger, criou uma eficiente rede de assassinatos, interligando as polícias de todas as ditaduras do continente. Em um adiantamento da globalização, você poderia ser preso(a), e morto(a) em qualquer lugar que estivesse, numa máxima eficiência dos órgãos de repressão.

No Brasil, esses anos de chumbo marcaram o pior dos tempos. Jovens idealistas que, de alguma maneira, tentavam lutar contra a reedição de regimes que nada tinham a invejar do nazismo alemão. Eram um punhado de pessoas lutando como podiam, algumas delas criando a coragem de tentar a resistência armada, mesmo que pífia, com poucos recursos e quase nenhum efeito contra o poder do exército. Mas sem dúvida foram pouco a pouco minando esse sistema e ajudaram para que, com o tempo, ele se enfraquecesse. Hoje, alguns militares brasileiros insistem na tese de que era uma “guerra”, com mortos “dos dois lados”, como se esses lados fossem iguais. Um escárnio: não há nenhuma possibilidade de “igualdade” entre uma máquina estatal voltada para exercer o terror, com um aparato militar azeitado, e um punhado de jovens estudantes revoltados tentando fazer alguma oposição. Dilma, como disse, foi violentamente torturada quando ficou três anos presa. Tinha entre 19 e 21 anos. Esse era o “lado de lá” que os militares querem equiparar à máquina do Estado policial. Que orgulho ter tido alguém desse lado na presidência, e não um obscuro capitão que faz apologia àquele regime.

Viver no exílio é duro, embora fosse a salvação comparado aos que não puderam sair. Vi o governo brasileiro cortar os passaportes de nós todos, quando nosso embaixador na França era ninguém menos que o Delfim Netto, vi as dificuldades de arrumar trabalho e manter uma família de seis pessoas, vi a solidariedade dos exilados para ajudarem-se uns aos outros. Mas o que mais me lembro eram dos jovens, muito jovens, uns oito ou dez anos mais velhos do que eu (tinha uns 10 anos) chegando do Brasil, do Chile, da Argentina, assustados, aliviados, com cara de terem escapado de algo muito tenebroso que, eu sentia, me era disfarçado pelos meus pais e minhas irmãs. É uma lembrança doce, da alegria de viver, da musicalidade de resistência, pessoas apinhadas no chão da Casa do Brasil para ver um show da Mercedes Sosa ou do Silvio Rodrigues. Gente com um objetivo comum, com o mesmo olhar, o de ver aquela situação em seu continente mudar. O de poder voltar aos seus.

É todo esse período de trevas que Braga Netto quer celebrar. Quando ele “comemora” isso porque trata-se de “parte da trajetória histórica do Brasil”, ele tem razão em uma coisa: a história deve sim ser rememorada. Mas a história dos assassinos, dos que se julgaram no direito de matar por ideias, de torturar jovens que nada mais faziam do que ir à universidade, viver sua juventude, essa história deve ser rememorada para ser CONDENADA, nunca comemorada. O que Bolsonaro fez, só no que diz respeito à apologia à ditadura enquanto presidente, já seria motivo em qualquer lugar civilizado, para afastá-lo 30 vezes. Mas aqui não é a civilização. “Ajudado” pelo destino que lhe colocou o Covid no colo, Bolsonaro tornou este país uma barbárie. Espero que os jovens de agora aprendam a rememorar essa história, para que ela não se repita, mesmo que com cara nova e com instrumentos novos. E  a melhor forma de condená-la, é pensando bem em quem votar, nas próximas eleições.