Adeus Flávio
/Este vídeo é do dia em que Flávio foi à FAU, aos 89 anos, fazer a "prova de vida", e foi recebido com uma grande homenagem feita por todos nós, colegas, ex-aluno(a)s, funcionário(a)s e atuais estudantes da FAUUSP.
A salva de palmas se faz mais do que pertinente hoje, dia em que Flávio adormeceu tranquilamente e nos deixou, acompanhado ao seu lado por pessoas queridas. Apesar de tudo, apesar dele estar até o fim vivíssimo e atento (e chocado) a tudo que acontecia, ele foi em paz, merecidamente.
Até minha adolescência, quando voltamos ao Brasil, Flávio era para mim o "tio" Flávio, amigo de décadas e décadas dos meus pais. Flávio foi da primeira turma (1948 a 1953) da FAUUSP, se não me engano, um ou dois anos acima do meu pai, com quem construiu desde então uma duradoura amizade.
Foi só quando fui para a pós-graduação que me aproximei dele academicamente. Juntei o carinho para com o amigo paterno, com a admiração intelectual.
Flávio foi um desbravador. Astuto, crítico, sagaz, irônico, incrivelmente inteligente, foi um dos primeiros a buscar a internacionalização e a interdisciplinaridade. Fez seu Mestrado nos EUA, em 1958, e doutorou-se em Geografia pela USP, em 1979. Seu doutorado, "A estrutura territorial da metrópole sul brasileira" já adiantava um dos assuntos que ele sempre apontaria, a importância de se entender o processo de "estruturação urbana".
Flávio também juntou teoria e prática, algo muito importante no planejamento, em que devemos tentar fugir da "bolha" acadêmica que nos distancia da realidade. Na prefeitura, teve papel importante em muitos projetos, e também alimentou seu olhar crítico para aquilo que ele apontava como um "urbanismo de gaveta", tecnocrático, retórico, ineficaz, sem nenhuma intenção real de transformar. Até o fim, teve dúvidas sobre a validade dos planos, no Brasil tão dificilmente implementados.
Um dos marcos mais importantes da sua produção foi seu livro "Espaço intra-urbano no Brasil" (Studio Nobel, 1998), onde ele mostrou com precisão e uma pesquisa de fôlego que se tornaria referência, as dinâmicas de crescimento de grandes cidades brasileiras, São Paulo, Rio, Salvador, Belo Horizonte, Porto Alegre, e Recife. Mostrou como o mercado imobiliário, mais do que o Estado, ou melhor, associado a ele, conduziu os investimentos urbanos em eixos de crescimento ultraprivilegiados, em um processo de constante segregação da população mais pobre. Não era um assunto novo, desde sempre Flávio apontava as dinâmicas desiguais e segregadoras da nossa urbanização.
Tive a sorte de ter Flávio na minha banca de Doutorado, quando já era professor recém contratado da FAUUSP e, com muita admiração, tinha me tornado também seu colega (embora ele já estivesse aposentado). Amigos amigos, assuntos acadêmicos à parte, Flávio era um arguidor temido pela precisão de sua leitura e pela franqueza com que colocava suas críticas. Mas ao mesmo tempo, era um poço de generosidade, humildade e acolhimento. Era uma honra poder ouvi-lo. Mesmo quando ele me disse, em plena banca: "Em tal página você faz tal afirmação, da qual eu discordo. Mas o pior, você a faz usando um trecho de um texto meu!", fazendo-me desdobrar para encontrar resposta que lhe parecesse aceitável, e me sentindo como ganhando um troféu quando abria seu sorriso dizendo-se satisfeito com a mesma.
Essa tese virou livro, e ele me agraciou com uma maravilhosa apresentação, na qual começava se desculpando por um "leve toque pessoal", em que lembrava que me conheceu pequeno em Paris, quando visitava meu pai, seu contemporâneo da FAU. Flávio era, como todo bom professor, um paulo freiriano que transbordava carinho e afeto. É por isso, sem dúvida, que a sala se encheu na homenagem na FAU, quando a maioria dos jovens estudantes que lá estavam só o conheciam de nome, mas foram lá homenagear esse gigante que eles haviam lido e relido tantas vezes.
Por volta de 2014 ou 2015, não me lembro, Flávio me ligou pois queria, uns quinze anos depois de se aposentar, voltar à sala de aula. Perguntou se toparia tê-lo como colega em minha disciplina (como se fosse possível alguém não topar tamanho prêmio!), e a partir dali passamos todos os segundos semestres, por quatro anos, alguns com minha amiga querida Karina Leitão, ao seu lado dando aulas na Pós-Graduação. No ano seguinte, não satisfeito em dar aula em só um semestre, foi juntar-se à Ermínia Maricato e ao Caio Santo Amore para dar aula na disciplina deles também, no semestre alternado. Energia e disposição não lhe faltavam.
Aos 85 anos, parecia um jovem professor em início de carreira. Com o tempo consolidou suas convicções marxistas e trazia aos alunos e alunas conceitos claros e fundamentais da teoria urbana no campo do materialismo histórico. Um deleite, para os estudantes e para nós. Flávio só parou quando sua saúde, já debilitada pela idade, não lhe permitia mais o deslocamento até a universidade. Mas manteve-se atento a tudo, interativo, reativo, mais ligado do que nunca à política e aos rumos do nosso país. Flávio era um gigante, um intelectual sem igual.
Foi-se hoje tranquilamente, dormiu no meio dessa confusão, ao lado de pessoas que lhe queriam bem. Tenho certeza que foi em paz e com a sensação de dever cumprido aqui entre nós. Que pena ele não ter ido em um momento um pouco melhor do que esse que vivemos. Mas tenho certeza que ele foi sabendo que iremos continuar, com sua energia e seu exemplo, trabalhando para que tudo isso melhore.
Flávio querido, saudades. Você deixa um grande vazio. E obrigado por tudo.