Alcances e limitações dos Instrumentos Urbanísticos na construção de cidades democráticas e socialmente justas
/Antecedentes históricos da desigualdade urbana
É bastante comum pensarmos que a dramática situação em que estão as cidades brasileiras é uma decorrência natural do fato de o país ter hoje cerca de 80% de sua população morando nas cidades. É como se o caos urbano, as favelas, o transporte precário, a falta de saneamento, a violência, fossem características intrínsecas às cidades grandes, justificando a enorme dificuldade do Poder Público em resolver esses problemas e gerir a dinâmica de produção urbana.
Essa é, entretanto, uma visão equivocada. Ao contrário dos países industrializados, o grave desequilíbrio social que assola as cidades brasileiras – assim como outras metrópoles da periferia do capitalismo mundial – são resultantes não da natureza da aglomeração urbana por si só, mas sim da nossa condição de subdesenvolvimento. Em outras palavras, as cidades brasileiras refletem, espacialmente e territorialmente, os graves desajustes históricos e estruturais da nossa sociedade. Como muitos autores já ressaltaram, o fenômeno de urbanização desigual observado em grande parte dos países subdesenvolvidos se deve à matriz de industrialização tardia da periferia.
De fato, a atratividade exercida pelos pólos industriais sobre a massa de mão-de-obra disponível no campo provocou [1], a partir da década de 60, a explosão de grandes pólos urbanos no Terceiro-Mundo. Entretanto, esse crescimento industrial -- baseado na aliança dos interesses das burguesias nacionais e do capital internacional -- tinha como condição a manutenção do baixo valor da mão-de-obra abundante, o que restringia por princípio a possibilidade de se oferecer habitações, infra-estrutura e equipamentos urbanos que garantissem qualidade de vida aos trabalhadores. A cidade industrial periférica surge, desde então, promovendo estruturalmente a desigualdade social. Ao contrário do Estado keynesiano que se consolidou na Europa do Pós-Guerra, em que o crescimento do capitalismo fordista implicava um aumento generalizado dos níveis de vida e de consumo dos trabalhadores – gerando habitações e salários dignos , até para garantir a completude do ciclo produção-consumo –, aqui a associação das burguesias nacionais com os interesses do capitalismo internacional construiu um capitalismo canhestro, voltado à exportação e explorador da massa de mão-de-obra disponível, processo que Florestan Fernandes e outros pensadores chamaram de desenvolvimento desigual – em relação ao desenvolvimento do capitalismo hegemônico dos países industrializados – e combinado – pois dispunha novas estruturas econômicas industriais trazidas do centro sobre estruturas internas arcaicas herdadas do Brasil colonial.
Pois esse processo de industrialização, que gerou o que Maricato (1996 e 2000) chamou de “urbanização com baixos salários”, estabeleceu-se por sobre uma estrutura social que nunca havia resolvido as contradições oriundas da sociedade colonial. Um século antes, no âmbito do trabalho, a substituição dos escravos por trabalhadores livres implicou na instauração de um sistema marcado pela dominação pessoal e a troca de favores, e não na generalização do trabalho assalariado nos moldes do capitalismo central. Em relação à posse da terra, com o fim do tráfico negreiro em 1850, a Lei de Terras institui a propriedade das terras devolutas apenas mediante compra e venda, dando-lhes um valor que não tinham até então, e afastando a possibilidade de tornar proprietários de terra imigrantes e escravos.
Essa foi a base arcaica sobre a qual se assentou, cem anos depois, a industrialização brasileira. Um novo modelo de produção, segundo Francisco de Oliveira simultaneamente industrial e urbano, que aprofundava a divisão social do trabalho herdada do modelo agro- exportador anterior. Com o forte crescimento industrial, ao qual não correspondia um desenvolvimento urbano socialmente digno, estava colocada a situação para o surgimento de uma dinâmica urbana conflituosa, parametrizada pela luta de classe.
Ermínia Maricato (1996) já mostrou como, nesse contexto, enquanto as periferias urbanas expandiam seus limites -- sempre desprovidas dos serviços urbanos essenciais -- para receber o enorme contingente populacional de migrantes rurais ao longo dos anos 60 e 70, o mercado formal urbano se restringia a uma parcela das cidades que atendia as classes mais favorecidas, deixando em seu interior grande quantidade de terrenos vazios, na especulação por uma futura valorização imobiliária. Paradoxalmente, esse espraiamento periférico da cidade industrial brasileira se dava pela ação deliberada do Estado, que estimulava – em especial no período militar – soluções habitacionais de baixo custo nas periferias, por serem adequadas ao modelo do capitalismo brasileiro, mantendo baixos os valores de reprodução da força de trabalho.
Como resultado desse processo historicamente excludente o quadro atual visto nas grandes metrópoles brasileiras é invariavelmente de absoluta pobreza, corroborando um quadro generalizado pelo continente [2]. Nessas cidades, estima-se que cerca de 50% da população, em média, se encontre na informalidade [3]. Os moradores de favelas são cerca de 20% da população de São Paulo, assim como de Porto Alegre, Belo Horizonte ou do Rio de Janeiro, chegando a 46% em Recife (Bueno, apud Clichevsky, 2000).
Além disso, o atual quadro urbano continua mostrando um exagerado ritmo de crescimento das periferias pobres em relação aos centros urbanizados, que paradoxalmente estão geralmente esvaziando-se. Enquanto a taxa média de crescimento anual das cidades brasileiras é de 1,93%, o crescimento na periferia de São Paulo, por exemplo, chega em algumas regiões a taxas superiores a 6% ao ano. Em compensação, o centro da cidade apresenta taxas de crescimento negativo, em torno de – 1,2%.
Entretanto, as políticas públicas, na maioria das cidades do país, continuam a favorecer em seus investimentos urbanos apenas as regiões mais favorecidas. Flávio Villaça (2000) mostrou como, na maior parte das capitais do país, verifica-se recorrentemente um eixo de desenvolvimento produzido pelas elites em seus deslocamentos em busca das áreas mais privilegiadas para se viver. Em uma clara inversão de prioridades, os governos municipais investem quase que exclusivamente nessas porções privilegiadas da cidade, em detrimento das demandas urgentes da periferia. Em pesquisa recente (Ferreira, 2003), mostramos como, em São Paulo, foram investidos em apenas três anos, entre 1993 e 1995, cerca de R$ 4 bilhões [4] de dinheiro público em apenas 6 grandes obras viárias, destinadas geralmente ao tráfego de veículos individuais, em um quadrante de cerca de 50 km², justamente aquele em que se concentram os investimentos imobiliários de elite. Nas grandes cidades, sob a frágil justificativa de se criar “centralidades terciárias conectadas à economia global” [5], estabelecem-se “ilhas de primeiro-mundo” em meio ao mar de pobreza e exclusão, sofisticados centros de negócios que exacerbam a segregação social urbana e se apropriam de grande parte dos investimentos públicos.
Tal cenário evidencia a necessidade premente de se reverter um quadro de exclusão e segregação sócio-espacial que apenas reflete espacialmente a inquietante fratura social do país. Nesse sentido, o papel do Poder Público, em especial dos executivos municipais, torna-se fundamental na medida em que consiga romper com sua histórica tendência a favorecer apenas os interesses dominantes. Os Planos Diretores e os instrumentos urbanísticos do Estatuto da Cidade podem vir a ser ferramentas importantes nesse processo, embora não sejam por si só garantia de mudanças. Antes de discutí-los, porém, é importante entender a dinâmica pela qual se consolidam no país esses instrumentos, sem o que a compreensão de seu papel ficaria prejudicada.
O papel dos movimentos populares na reforma urbana
Face ao inquietante quadro exposto até aqui, é fácil entender que as desigualdades geradas pelo processo de industrialização e de urbanização geraram rapidamente insatisfações sociais significativas. Já em 1963, o Seminário Nacional de Habitação eReforma Urbana tentou refletir parâmetros para balizar o crescimento das cidades que começava a se delinear. A ditadura militar desmontou a mobilização da sociedade civil em torno das grandes reformas sociais, inclusive a urbana, substituindo-a por um planejamento urbano centralizador e tecnocrático. No campo da habitação, embora o regime tenha produzido, através do SFH/BNH, mais de 4 milhões de moradias, o recorte capitalista dessa produção – também marcada pelo clientelismo e a troca de favores – visava mais resultados quantitativos que rendessem frutos políticos do que qualitativos, e era voltado ao esforço do milagre econômico, favorecendo as grandes empreiteiras. Pelo custo que estas conseguiam praticar, as políticas habitacionais não conseguiram atingir a população mais pobre, abaixo de 5 SM, que ia aumentando cada vez mais, em decorrência de um modelo econômico de intensa concentração da renda. Isso aprofundou cada vez mais o fosso entre o mercado imobiliário legal e os que não tinham acesso a ele.
Nos anos 70, os excluídos do “milagre brasileiro” começam a mobilizar-se em torno da questão urbana, reivindicando a regularização dos loteamentos clandestinos, a construção de equipamentos de educação e saúde, a implantação de infra-estrutura nas favelas, etc. Uma primeira vitória ocorre em 1979, com a aprovação da Lei 6766, regulando o parcelamento do solo e criminalizando o loteador irregular. Na Constituinte de 1988, 130.000 eleitores subscrevem a Emenda Constitucional de Iniciativa Popular pela Reforma Urbana, e com isso conseguem inserir na Constituição os artigos 181 e 182, que introduzem o princípio da função social da propriedade urbana. Porém, a regulamentação desses artigos só viria a ocorrer 11 anos depois, com a aprovação definitiva do capítulo da reforma urbana da nossa constituição, em uma tramitação que contou com a pressão constante do Fórum Nacional de Reforma Urbana, e que culminou com a aprovação do Estatuto da Cidade.
O que são “instrumentos urbanísticos”?
Para se entender a função dos instrumentos urbanísticos, que iremos tratar neste texto, é preciso voltar um pouco à questão da formação do estado keynesiano das sociais- democracias européias do pós-guerra.
Os esforços para a construção de uma sociedade industrial que promovesse certa distribuição das riquezas para o conjunto dos trabalhadores – para garantir um patamar aquisitivo compatível com a necessidade do próprio sistema em gerar consumo – deu ao Estado keynesiano um papel central na mediação entre os interesses do capital e do trabalho, garantindo direitos fundamentais e universais como o acesso à educação, à saúde, e a garantia dos direitos trabalhistas. Esse papel do Estado se reproduzia naturalmente no âmbito habitacional e urbano, visando garantir o direito à moradia ao conjunto da população [6] e controlando as ações do capital imobiliário, por natureza especulativo e privatista [7].
Nesse sentido, fortaleceu-se desde então na Europa, e posteriormente também até na América do Norte, uma tradição intervencionista do Estado na regulamentação e no controle do desenvolvimento urbano, para garantir uma mínima variedade social na produção urbana, buscando prover habitação de interesse social integrada à malha urbana, para proteger antigos moradores mais pobres dos processos decorrentes da valorização imobiliária, que os expulsam e substituem por moradores de maior renda (a chamada gentrificação), para permitir a preservação dos espaços públicos como espaços de uso democrático, protegendo-os da ação invasiva da iniciativa privada, e para promover usos habitacionais sociais no mercado imobiliário privado através de ações de indução e incentivo. Vale notar que essa tradição não conseguiu impedir, nem naqueles países, processos marcantes de exclusão social e de gentrificação, capitaneados pelas forças do mercado. Mas o que se pretende discutir aqui é que, de maneira geral, e apesar dos percalços, há hoje uma certa cultura política naqueles países de respeito ao papel importante do Estado no controle urbano.
Para dar ao Estado a capacidade de exercer tal função, uma variedade de instrumentos jurídicos e financeiros foram criados. Por um lado, deu-se ao Estado um poder regulador significativo sobre o uso e a ocupação do solo, estabelecendo-se restrições de uso, parâmetros de adensamento, limites à verticalização, taxas de ocupação, punições efetivas para o descumprimento das leis urbanísticas, etc. Por outro lado, criou-se uma estrutura financeira – evidentemente apoiada na incomparável disponibilidade de recursos que aqueles países dispunham e dispõem – e uma gama de isenções para incentivar, através de linhas de crédito e renúncias tributárias específicas, determinadas ações dos agentes privados, como por exemplo a recuperação e manutenção de edifícios antigos nas áreas centrais, sua reconversão para locação social privada, ou ainda a fixação da população mais pobre em seus locais de residência, graças a auxílios financeiros diretos. Entre os incontáveis instrumentos urbanísticos, poderíamos citar, por exemplo, as Zônes d´Aménagement Concerté (ZAC) francesas, depois recuperadas e distorcidas no Brasil, espécies de intervenções do Estado sobre a propriedade fundiária, a partir das quais o Poder Público define novos usos e promove a construção e urbanização de áreas urbanas degradadas segundo novas diretrizes, vendendo-as em seguida para promover sua requalificação. Há também naquele país a experiência antiga, da década de 70, da outorga onerosa, lá chamada de “Plafond Legal de Densité”, também experimentada nos EUA na mesma época, e que estabelece a cobrança pelo direito de construir acima dos limites determinados pelo Poder Público para determinada área da cidade.
Além dos instrumentos de urbanização e de regulação do uso e ocupação, como os dois acima citados, há também instrumentos de caráter tributário e financeiro. Continuando com os exemplos franceses, há por exemplo naquele país uma linha de crédito extremamente vantajosa, oferecida pelo banco público de fomento habitacional, para proprietários que queiram renovar para fins habitacionais edifícios degradados em áreas centrais e aceitem alugar parte dos apartamentos, por determinado tempo, por preços tabelados pelo governo e considerados "sociais". Outra ação muito comum é a isenção de impostos municipais para incentivar determinadas reformas ou usos que interessem ao Poder Público. Mas sem dúvida nenhuma, a “Lei da solidariedade urbana”, aprovada na França em 2000, é o exemplo mais significativo de até onde o Poder Público pode ir no controle da produção do espaço urbano: por essa lei, todo município francês deve garantir que no mínimo 20% de seu estoque de habitações – tanto públicas como privadas – seja de interesse social, sem o que o município se vê obrigado a pagar significativa multa ao Ministério da Habitação.
Os chamados “instrumentos urbanísticos” criados na Europa do Pós-Guerra visavam portanto garantir ao Estado ferramentas jurídico-institucionais que lhe permitissem exercer um controle efetivo sobre as dinâmicas de produção e uso do espaço urbano, buscando promover o interesse público acima do privado, e tentando mediar os conflitos naturalmente decorrentes dessas dinâmicas.
Pois bem, é nessa mesma lógica que, no Brasil, os defensores da Reforma Urbana se mobilizaram para garantir a aprovação, na Constituição e posteriormente no Estatuto da Cidade, de instrumentos que permitissem dar às prefeituras um instrumental para exercer algum controle sobre as dinâmicas de produção da cidade. Esse é o princípio, em suma, dos chamados “instrumentos urbanísticos” apresentados no Estatuto da Cidade.
Note-se, entretanto, a profunda diferença estrutural entre as realidades dos países industrializados e a brasileira, já tratada no início deste texto. Enquanto lá os instrumentos urbanísticos surgem no pós-guerra, concomitantemente à estruturação do Estado do bem-estar social, como ferramentas necessárias para que o Poder Público possa desde o início, no âmbito urbanístico, promover esse modelo político-econômico e social e mediar os interesses do capital face ao bem público urbano, no Brasil os instrumentos urbanísticos surgem como uma tentativa de reação face a um modelo de sociedade e de cidade estruturalmente organizadas de forma propositalmente desigual, o que muda completamente seu potencial e seu possível alcance. Aqui, trata-se de reverter a posteriori um processo histórico-estrutural de segregação espacial, o que significaria, em essência, dar ao Estado a capacidade de enfrentar os privilégios urbanos adquiridos pelas classes dominantes ao longo de sua hegemônica atuação histórica de 500 anos. Não se trata, pois, de tarefa simples. E desde já percebe-se que tais instrumentos só poderão ter alguma eficácia se houver, ao mesmo tempo em que são criados, uma vontade política muito determinada no sentido de promover a reversão do quadro de desigualdade urbana em que vivemos, enfrentando portanto os poderosos interesses que hegemonizam hoje a produção do espaço urbano. Sem essa vontade política, que implica em políticas de governo claramente dispostas a enfrentar os privilégios das classes dominantes, os instrumentos urbanísticos podem servir apenas como uma maquiagem demagógica sem muito poder para mudar o quadro urbano brasileiro. Vale notar que a briga é longa, e até agora, tem sido difícil.
O Plano Diretor como um “pacto social”
É justamente nesse sentido, o de garantir a execução de uma vontade política coletiva de recuperação democrática das cidades, que os Planos Diretores, embora fragilizados por décadas de burocratismo e ineficácia, podem passar a ter um papel importante, ao abrir novas possibilidades, graças ao Estatuto da Cidade, de dinâmicas participativas que aumentem o controle social sobre os processos de produção da cidade.
Como se sabe, a Constituição de 1988 obrigou todo município com mais de 20.000 habitantes a ter um plano diretor. Embora fosse um instrumento urbanístico antigo, tal fato o reinseriu na agenda política urbana, ainda mais quando o Estatuto da Cidade, aprovado em 2001, determinou que as cidades que ainda não têm plano o produzam em 5 anos. Além disso, o Estatuto dá uma importância significativa aos Planos Diretores, ao determinar que seja neles que se faça a regulamentação dos instrumentos urbanísticos propostos. Esse fato tem conseqüências positivas e negativas. Positivas porque joga para a esfera municipal a mediação do conflito entre o direito privado e o interesse público, e isso é bom pois permite as necessárias diferenciações entre realidade municipais completamente diversas no país. Além disso, garante que a discussão da questão urbana no nível municipal torne-se mais próxima do cidadão, podendo ser mais eficientemente participativa. Porém, o aspecto negativo é que, ao jogar a regulamentação dos instrumentos para uma negociação posterior no âmbito dos Planos Diretores, estabelece- se uma nova disputa essencialmente política no nível municipal, e conforme os rumos que ela tome, esses instrumentos podem ser mais ou menos efetivados. Em alguns casos, até, já ocorreu que o próprio texto do Plano Diretor, ao propor os novos instrumentos do Estatuto, relegue sua regulamentação local para mais uma etapa ainda ulterior, estendendo além do razoável seu prazo de efetivação.
O plano diretor é um conjunto de diretrizes urbanísticas destinadas a organizar e induzir formas desejáveis – do ponto de vista do Poder Público, diga-se – de ocupação e uso do solo. Define as políticas públicas urbanas, como os transportes, o zoneamento, a provisão de habitações de interesse social, etc. Aparentemente, sua obrigatoriedade foi um avanço
na direção de cidades mais democráticas e justas. Mas, como qualquer instrumento de política pública, o plano diretor pode ter inúmeras feições. Por exemplo, como já mostrou Villaça (1999) ele vem sendo usado há tempos nas grandes cidades como um instrumento dos interesses das classes dominantes, com pouca efetividade na solução dos problemas reais das áreas periféricas. Nesse sentido, não há dúvidas que os instrumentos propostos no Estatuto da Cidade dão um novo fôlego aos Planos Diretores, conforme veremos adiante.
A tradição urbanística brasileira, como visto calcada em um Estado estruturado para ratificar a hegemonia das classes dominantes, sempre tratou os planos diretores por um viés tecnicista que os tornavam herméticos à compreensão do cidadão comum, mas eficientes em seu objetivo político de engessar as cidades nos moldes que interessavam
às elites, muito embora grande número de urbanistas tenham se esforçado, na década de
70 e apesar do regime vigente, em torná-los mais eficientes. Mas por exemplo nas grandes capitais, infelizmente marcaram história os calhamaços técnicos nada democráticos, que serviram mais para fins eleitorais, para estabelecer uma rígida regulamentação nos bairros ricos, ou ainda para priorizar a construção de mais e mais avenidas (em detrimento dos transportes públicos), enchendo os bolsos de políticos inescrupulosos e dos especuladores imobiliários. Em compensação, os Planos Diretores pouco fizeram para a enorme parte da população excluída da chamada “cidade formal”. Na prática, os planos se distanciaram da realidade urbana periférica, e não impediram a fragmentação das políticas públicas urbanas. É por isso, aliás, que hoje vêm sendo pesquisadas novas metodologias de planejamento, mais próximas da realidade e da gestão locais, mais abertas à participação dos agentes sociais dos bairros, e promotoras de uma reintegração transversal das políticas setoriais, como os Planos de Ação Habitacionais e Urbanos propostos recentemente pelo Laboratório de Habitação e Assentamentos Humanos (LabHab) da FAUUSP.
Mas isso não impede, obviamente, que hoje os planos diretores possam ser um instrumento eficaz para inverter a injusta lógica das nossas cidades, em especial nas cidades de médio porte, ainda não tão atingidas pela fratura social urbana. Mas, para isso, não devem ser um ementário de tecnicismos, mas um acordo de toda a sociedade para nortear seu crescimento, reconhecendo e incorporando em sua elaboração todas as disputas e conflitos que nela existem. Só assim, surgido de um amplo e demorado processo participativo, que não fique sujeito à apressada agenda político-eleitoral dos governantes de turno (em que a "governabilidade" e a busca pela reeleição passam por cima dos fins públicos que se deseja das políticas públicas), o Plano Diretor pode se tornar um ponto de partida institucional para que se expressem todas as forças que efetivamente constroem a cidade. Se toda a população – inclusive as classes menos favorecidas – apreender o significado transformador do plano, cobrará sua aprovação e fiscalizará sua aplicação, transformando-o em uma oportunidade para conhecer melhor seu território e disputar legitimamente seus espaços.
Entretanto, a gestão participativa não pode se ater apenas ao aumento das audiências públicas ou dos fóruns de discussão com os diferentes setores da sociedade civil. Hoje a "participação", mesmo em governos de esquerda, se dá com hora marcada, em audiências já pautadas, sobre assuntos pré-estabelecidos. Como bem lembra o urbanista Flávio Villaça, é de se perguntar porque o tema da "participação" geralmente só se aplica a certos assuntos de governo, e não a todos. No Brasil, os fóruns participativos ainda se limitam ao Orçamento Participativo, ou a Planos Diretores que nem sempre serão efetivados. Porque, por exemplo, não há mecanismos de participação nas decisões de investimentos das empresas de saneamento, ou nas de metrô? A participação deveria incorporar de forma estrutural e definitiva a presença decisória da população em todas as estruturas de gestão da máquina administrativa, da escala local à escala mais geral. Nesse sentido, o processo de discussão das Conferências das Cidades, implementado este ano pelo Ministério das Cidades, é uma excelente iniciativa, ainda mais considerando tratar-se de um processo que abarca todo o país. Também são fundamentais, por exemplo, os conselhos participativos de habitação e de política urbana, implantados em várias cidades do país, em decorrência da exigência de processos de gestão participativos colocada pelo Estatuto da Cidade, desde que seja dada a eles uma função efetivamente decisória e não apenas figurativa. Porém, é certo que o grau de participação, sobretudo com algum poder de decisão, deve ir ainda muito mais longe para começar a ser eficaz em seu papel politizante e pedagógico, e como um instrumento de democratização da gestão pública.
Infelizmente, ainda hoje planos diretores continuam resultando muitas vezes de uma apressada montagem em gabinetes, visando apenas transformá-los, o mais rápido possível, em fatos políticos. Nas pequenas e médias cidades brasileiras, entretanto, a perspectiva é mais animadora, pois a mobilização da população para um processo participativo é mais simples, e por isso planos diretores democráticos podem ter enorme efeito. Mais uma vez, foi fundamental a cultura de mobilização e o processo de discussão participativa alavancados pelas Conferências das Cidades organizadas pelo Ministério das Cidades. A tomada de consciência coletiva sobre os desafios da questão urbana que as conferências promoveram ajudará a romper o verdadeiro “mercado de planos” criado por urbanistas interessados em vender às prefeituras “pacotes técnicos” que nem se preocupam em assimilar as disputas sociais existentes, e cria um cenário positivo para a discussão participativa do Plano Diretor e dos instrumentos do Estatuto.
Mas o que os Planos Diretores têm exatamente a ver com os instrumentos urbanísticos de que trataremos aqui? Como vimos, eles são fundamentais pois é neles que, segundo o Estatuto da Cidade, esses instrumentos devem ser propostos e regulamentados no nível municipal. Nesse sentido, fica absolutamente claro que, por princípio, os instrumentos urbanísticos propostos no Estatuto da Cidade nem estão desde já garantidos e nem são automaticamente eficazes. Tudo depende, na verdade, da forma como eles serão incluídos e detalhados nos Planos Diretores.
Os Instrumentos Tributários e de Indução do Desenvolvimento: Direito de Preempção, Direito de Superfície, Urbanização Compulsória, IPTU Progressivo, Outorga Onerosa do Direito de Construir, Operações Urbanas Consorciadas.
Temos então que os instrumentos tributários e de indução do desenvolvimento urbano tentam estabelecer, no cenário brasileiro, uma perspectiva de uma nova presença do Estado na regulamentação, indução e controle dos processos de produção da cidade. Cabe obviamente ressaltar que sua eficácia ainda é incerta, embora as previsões sejam otimistas, em especial a médio e longo prazos. Entretanto, vale sempre repetir que seu sucesso – do ponto de vista do bem público e da reversão das desigualdades urbanas – dependerá sempre de uma forte e determinada vontade política, já que os objetivos a atingir se confrontam com interesses poderosos.
É importante separar aqui o que se chamou de instrumentos "tributários" daqueles considerados de "indução ao desenvolvimento urbano". Aqueles citados no subtítulo acima estão apenas na segunda categoria (inclusive o IPTU progressivo), embora todos eles possam até eventualmente servir para arrecadação, o que as vezes até acaba desvirtuando seu sentido, como veremos adiante. Os instrumentos de indução do desenvolvimento urbano visam, em essência, refrear o processo especulativo e regular o preço da terra, ao forçar o exercício da função social da propriedade urbana punindo o "mau proprietário", buscam permitir um maior controle do Estado sobre usos e ocupações do solo urbano, em especial em áreas que demandem uma maior democratização.
Imóveis situados na chamada “cidade formal” geralmente se beneficiam de infra-estrutura urbana (esgoto, água, luz, asfalto, etc.) custeada pelo poder público e, portanto, por toda a sociedade. Mantê-los vazios representa um alto custo social. Exercer a função social da propriedade não é nada além de dar-lhes uso. Nos centros das nossas metrópoles, por exemplo, o descompasso entre os proprietários, que mantém um mercado sobrevalorizado irreal (edifícios ficam desocupados por anos, sem ter quem queira comprá-los ou alugá-los), e a demanda generalizada por habitação pelas faixas de renda mais pobres – tanto moradoras dos centros, geralmente em cortiços, quanto das periferias– que não têm como acessar essa oferta, gera uma situação inaceitável. Nesses casos, os instrumentos tributários e de indução do desenvolvimento urbano podem ter um papel importante, ao dar ao Poder Público ferramentas que lhe possibilitem regular e controlar os terrenos vazios, os negócios imobiliários de compra-e-venda, e assim por diante.
Como já existe farto material teórico apresentando exaustivas discussões técnicas a respeito de cada um desses instrumentos [8], iremos fazer a seguir uma reflexão sobre eles a partir da ótica discutida neste artigo até aqui.
Instrumentos tributários e de financiamento
Vale mencionar que trata-se aqui de instrumentos que não estão geralmente previstos no Estatuto da Cidade, mas que os Planos Diretores certamente devem considerar, fazendo uso de inventividade e inovação.
O IPTU, por exemplo, importante instrumento de arrecadação, e que deve ser um tributo progressivo (neste caso, que não é o da progressividade no tempo, significa que os mais ricos pagam mais e os mais pobres pagam menos ou nada), ainda é pouco cobrado nas cidades brasileiras, até mesmo porque ainda é preocupante a falta de sistemas cadastrais municipais integrados, que dêem às prefeituras uma melhor capacidade de controle, de gestão e de arrecadação.
Mas inúmeros outros benefícios fiscais e financeiros podem ser pensados e aplicados para fomentar determinadas diretrizes urbanas. Isenções tributárias podem ser usadas para incentivar reformas e/ou novos usos, e linhas de financiamento podem ser pensadas, por exemplo para reabilitação de imóveis em área central, para auxílio-moradia à população ameaçada de expulsão por causa da valorização fundiária/imobiliária, e assim por diante, para incentivar o aluguel de baixo custo no mercado privado, e assim por diante. Um instrumento interessante, que recentemente tornou-se lei em São Paulo, está na compra pela prefeitura de imóveis devedores de IPTU com desconto do valor da dívida no preço pago, para uso habitacional de interesse social.
Mas, evidentemente, trata-se de um conjunto de iniciativas que ainda depende, até pelas drásticas limitações financeiras por que passam os municípios, da estruturação de políticas habitacionais e de financiamento à moradia integradas, que envolvam todas as esferas de governo. É importante frisar o novo papel que a Caixa Econômica federal poderia exercer nesse sentido, e a importância da criação do Ministério das Cidades, que deve poder reger esse processo.
IPTU Progressivo, Edificação ou Utilização Compulsória e Desapropriação com pagamento em títulos da dívida pública.
Este conjunto de instrumentos visa atingir diretamente as propriedades urbanas que não cumprem a sua função social. A partir do momento em que são considerados sub- utilizados ou vazios pelo Poder Público, pode ser exigida a edificação ou a utilização compulsórias, que se não atendida gerará um aumento progressivo do IPTU – regulamentado e com limites claramente estabelecidos – até resultar, após 5 anos de progressividade, na possibilidade de desapropriação do imóvel com pagamento com títulos da dívida pública. Trata-se claramente de uma sanção aplicável ao proprietário que não respeite a função social de seu imóvel, o chamado "mau proprietário".
Embora seja um dos instrumentos de mais fácil compreensão, e cujo efeito seja potencialmente promissor, é difícil dar ao IPTU progressivo (entendido como o conjunto dos três instrumentos acima citados) um caráter de política urbana de reversão da especulação imobiliária, como tampouco de instrumento efetivo de arrecadação. Ele deve sim ser entendido como uma ação punitiva do Estado, que pode eventualmente conseguir conter tais processos especulativos. Isso porque os procedimentos que esses instrumentos estabelecem são longos, podem durar até sete anos, e são pontuais, tendo de ser autuados e resolvidos caso a caso, dependendo de uma gestão pública eficaz, até mesmo para realizar o trabalhoso levantamento dos casos passíveis de aplicação.
Além disso, um outro ponto desses instrumento é bastante polêmico: ao determinar que seja regulamentado no Plano Diretor, que deve identificar as áreas sujeitas ao IPTU progressivo, o Estatuto da Cidade deixa em aberto o que se entende por “imóveis sub- utilizados”. Até que ponto, por exemplo, um amplo estacionamento na área central, cujo terreno certamente servirá um dia para alguma valorizada incorporação imobiliária, está ou não cumprindo sua função social? Até que ponto é ele uma área sub-utilizada? E um edifício de dez andares em que apenas o térreo esteja sendo utilizado? Evidentemente, a definição desses critérios depende das disputas políticas que ocorrerão nas Câmaras Municipais, e dependendo dos seus resultados, pode diminuir significativamente o impacto do IPTU Progressivo como instrumento de controle do exercício da função social da sociedade dos imóveis urbanos.
Outorga Onerosa, transferência do direito de construir e Operações Urbanas Consorciadas
O princípio do “solo criado”, bastante simples de entendimento, talvez seja um dos mais antigos instrumentos urbanísticos de indução do desenvolvimento, já testado em várias cidades brasileiras. Como já dito, ele se origina em experiências internacionais, notadamente na França e nos EUA. No Brasil, a primeira experiência certamente remonta à década de 70 em São Paulo, quando o então prefeito Olavo Setúbal propôs, em 1976, lei nesse sentido, e esse instrumento vem desde então sendo constantemente discutido por urbanistas e demais militantes da Reforma Urbana [9]. A idéia é dar ao Poder Público a possibilidade de recuperar a “mais-valia” obtida pelo proprietário graças à valorização gerada por investimentos públicos urbanos. Ao prover infra-estrutura urbana, a ação do Poder Público geralmente provoca imediata valorização fundiária e imobiliária da área, gerando lucros significativos aos proprietários. O “solo-criado”, que torna o direito de construir independente da propriedade urbana, permite que o Estado onere construções que ultrapassem limites que ele mesmo estabelece. Assim, a outorga onerosa possibilita regular distorções de valorização geradas por essas intervenções, ou ainda compensar as perdas do proprietário relativas a processos de tombamento. Nesses casos, o proprietário de imóvel tombado, que perde o direito de construir naquele terreno, pode transferir esse direito para outras propriedades na cidade, usando-se do instrumento da Transferência do Direito de Construir, prevista no artigo 35 do Estatuto da Cidade.
A outorga onerosa aprovada no Estatuto da Cidade (art. 28 a 31) responde a várias possibilidades já testadas em diferentes cidades brasileiras [10]. A venda de potencial construtivo pode por exemplo permitir uma maior verticalização – as vezes, mas nem sempre, revertida em maior adensamento – em corredores urbanos ou outras áreas cujo desenvolvimento urbano possa ser induzido. Por outro lado, o mesmo instrumento pode eventualmente refrear a verticalização em bairros residenciais horizontalizados, ao estabelecer uma taxação para a construção acima de um coeficiente construtivo básico (geralmente 1). Trata-se também de um eventual mecanismo de arrecadação, que pode ser aplicado em bairros com potencial de verticalização, que será portanto devidamente onerada. Mas essa possibilidade de arrecadação não pode transformar-se no objetivo do instrumento, pois senão ele acabará subordinando as necessárias decisões urbanísticas à desenfreada corrida por arrecadação. Nesse caso, a política urbana acaba tornando-se refém de uma lógica tributária, o que resulta em péssimos resultados para a cidade.
Essa é a distorção que ocorre com as Operações Urbanas Consorciadas, também previstas no Estatuto da Cidade. Estas são, em suma, uma variante da outorga onerosa, em que se especifica uma área dentro da qual os recursos arrecadados com a venda de potencial construtivo deverão ser obrigatoriamente aplicados para a recuperação viária e urbana. O argumento central desse instrumento é o de que dessa forma possibilita-se “parcerias” entre o Poder Público e o setor privado, através das quais o capital privado, interessado na compra do “solo-criado”, acaba financiando a recuperação da cidade, naquele trecho específico. Segundo seus defensores, esse instrumento permitiria que renovações urbanas saiam "de graça" para o poder executivo municipal. Entretanto, a Operação Urbana é certamente um dos instrumentos mais polêmicos do estatuto, pois pode ser utilizado apenas para responder aos interesses dos setores imobiliários da cidade. Isso ocorreu, por exemplo, nos casos de Operações Urbanas já ocorridos na cidade de São Paulo, em especial na conhecida Operação Urbana Faria Lima.
Como pela lei os recursos arrecadados nas Operações Urbanas com a venda de solo- criado devem ser exclusivamente aplicados na melhoria da infra-estrutura viária da própria área da operação, têm-se essa impressão de que as avenidas saem "de graça" para a cidade, financiadas pela iniciativa privada. Entretanto, se a operação urbana se propõe a "vender" solo-criado para arrecadar fundos para a melhoria viária, estima-se que ela só possa ocorrer em áreas onde o mercado tenha interesse em comprar, sem o que a operação torna-se, no jargão do mercado, um "mico". Entretanto, assiste-se à uma “corrida” para definir áreas de Operações Urbanas, sob o forte argumento de que assim a cidade toda estará sendo “renovada” às custas do capital privado. Porém, o que ocorre de fato é que as decisões de políticas de planejamento urbano acabam subordinando-se aos interesses do mercado e, para evitar “micos”, o Poder Público tem de fazer investimentos prévios para sinalizar ao mercado que a área valerá o investimento. Esses investimentos nunca são computados nos custos das operações, evidentemente, e se a operação não "colar", os prejuízos aos cofres públicos serão enormes. Já comentamos acima como a região da Faria Lima, em São Paulo, recebeu milionários recursos públicos viários em áreas que "coincidentemente" estavam na região da Operação Urbana, mas que não foram computadas em seu custo. Além disso, as desapropriações para abertura de novas avenidas gera processos judiciais e precatórios, que também não entram no cálculo "oficial", escamoteando o real prejuízo público gerado pela operação. Ainda no caso de São Paulo, estima-se que esses precatórios superem R$ 1 bilhão na Av. Faria Lima, e a Av. Águas Espraiadas, área de uma nova Operação Urbana, já custou outro bilhão para ser feita (com a canalização do córrego), antes mesmo do início da operação.
Alguns urbanistas defendem a criação de títulos financeiros, os CEPACS, negociáveis na bolsa, correspondendo ao estoque de área construída "a mais" a ser disponibilizada na operação. Assim, lança-se no mercado papéis representando os metros quadrados a construir, que podem ser comprados por qualquer um. Dessa forma, o Poder Público arrecada de uma só vez o valor necessário à obra de urbanização, não tendo que adiantar esses fundos. Porém, além do riso desse recurso (pois o CEPAC pode não Ter sucesso na bolsa e tornar-se outro "mico"), ele subordina de vez a política urbana aos interesses e á lógica do mercado, já que, por incrível que pareça. Uma pessoa que nem sequer tenha terreno na área da operação pode adquirir o título para negociá-lo no mercado financeiro.
Uma das formas de evitar essas distorções estaria na possibilidade de ampliar as áreas territoriais destinadas às operações urbanas para além do setor de interesse do mercado, incluindo áreas com habitações precárias. Assim, seria possível criar ZEIS [11] dentro da área da Operação Urbana, e canalizar os recursos advindos da venda de solo-criado para elas.
Direito de Superfície e Consórcio Imobiliário
O direito de superfície permite a transferência do direito de uso do solo do proprietário para terceiros, por prazos determinados. Um dos mais antigos instrumentos jurídicos urbanos, embora pouco falado, esse instrumento é importante para agilizar algumas situações de necessária regularização fundiária e/ou urbanização, e para incentivar o exercício da função da propriedade urbana. Isso porque o proprietário que transferir o direito de superfície não estará abrindo mão de eventual valorização futura de seu bem. E em casos de terrenos ocupados, esse instrumento pode incentivar o proprietário a autorizar o uso do terreno, ainda mais se sua urbanização e regularização gerar uma valorização futura. O proprietário pode também transferir o direito de uso ao Poder Público – inclusive em negociações que envolvam a aplicação do IPTU progressivo – liberando-o para realizar obras de urbanização e regularização, cujo direito de uso será depois repassado aos moradores. Nesse caso, também se aplicaria o instrumento do Consórcio Imobiliário (art. 46 do Estatuto), pelo qual o Poder Público urbaniza determinada área privada sujeita ao IPTU Progressivo, adquirindo após a obra parte do terreno, deixando ao proprietário outra parte cujo valor urbanizado seja equivalente ao valor de toda a área antes da urbanização. Por fim, o Direito de Superfície pode ser útil para terrenos públicos, podendo-se transferir o direito de uso à população que o ocupa, facilitando os procedimentos de regularização.
Direito de Preempção
O Direito de Preempção talvez seja um dos instrumentos há mais tempo utilizados nos países europeus. Trata-se da prioridade dada ao Poder Público para efetuar a compra em negociações imobiliárias em determinadas áreas definidas por ele.
Ele permite ao Poder Público fazer estoque de terras destinadas à produção de habitações de interesse social, e regular a valorização fundiária de determinada área. Mais uma vez, as áreas sujeitas a esse instrumentos devem ser indicadas no Plano Diretor, o que remete seu sucesso às negociações políticas na Câmara Municipal.
É um instrumento importante especialmente em áreas centrais, já que o estado pode acompanhar as dinâmicas imobiliárias dessas áreas. Além disso, ao “segurar” a venda de imóveis em preços definidos e eventualmente congelados por determinado tempo (como ocorre, por exemplo, em Belém), o Poder Público consegue regular a valorização fundiária e imobiliária.
Entretanto, o grande limitador desse instrumento é sem dúvida a crônica falta de recursos públicos, exacerbada pelas opções macro-econômicas e pela Lei de responsabilidade Fiscal, o que restringe seriamente a possibilidade do Poder Executivo Municipal efetivar os negócios a ele oferecidos pelo Direito de Preempção.
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Temos então que os instrumentos tributários e de indução ao desenvolvimento urbano, especialmente aqueles propostos no Estatuto da Cidade, podem sim promover o início de uma novo papel para os municípios no controle dos processos de produção urbana, dando-lhe o necessário sentido democrático e de justiça social. Entretanto, as reflexões aqui apresentadas mostram como esse será sem dúvida um caminho ainda longo, que depende de um processo paulatino de consolidação de uma cultura política que veja o Estado como o legítimo controlador da função social das propriedades urbanas e indutor do crescimento das cidades segundo o interesse público. Nesse processo, o papel dos grupos organizados da sociedade civil sempre será central e imprescindível para que a história do Estatuto da Cidade continue em seu difícil, mas até agora efetivo, caminho para garantir a reversão da extrema desigualdade e exclusão sócio-espaciais apresentadas pelas cidades brasileiras.