O mito da cidade-global: o papel da ideologia na produção do espaço terciário em São Paulo
/Publicado na Revista Pós-FAUUSP – FAUUSP nº16, São Paulo, dezembro de 2004
Este artigo resume as grandes linhas da Tese de Doutorado “São Paulo: o mito da cidade-global”, defendida na FAUUSP, em maio de 2003, sob orientação da Profa. Dra. Ermínia Maricato. A tese recebeu o IX Prêmio Brasileiro "Política e Planejamento Urbano e Regional", pela melhor Tese de Doutorado, conferido pela ANPUR- Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Regional, Salvador, de 24 de maio de 2005.
São Paulo, cidade-global: o fato mediático
“São Paulo será, talvez, no Brasil, a principal candidata a cidade mundial”. Com essas palavras, durante um encontro internacional sobre cidades, em 1995 (Almeida, 2001) [1], o então presidente Fernando Henrique Cardoso consolidava uma interpretação sobre as cidades contemporâneas que iria rapidamente tornar-se unanimidade nos meios empresarias, acadêmicos e governamentais.
Tal interpretação tornou-se especialmente festejada nos meios acadêmicos do urbanismo desde que, em 1991, a pesquisadora Saskia Sassen publicou nos EUA seu trabalho intitulado “A Cidade-Global” (Sassen, 1996). A idéia central é a de que no atual mundo globalizado, cujo paradigma é o da competitividade econômica, as cidades que se mantêm na liderança do cenário econômico são aquelas que conseguem apresentar vantagens comparativas para atrair empresas transnacionais e os fluxos internacionais de capital financeiro, mantendo-se assim em evidência na economia globalizada.
Partindo do exemplo de Nova-York, Londres e Tóquio, e ampliando em seguida sua análise para uma rede hierarquizada de cidades, as teorias sobre a “cidade-global”[2] argumentam portanto que as novas dinâmicas de flexibilização e desregulação da economia, de aumento dos fluxos internacionais de capital, e de fortalecimento da economia de serviços em detrimento da atividade industrial fordista-taylorista, estariam obrigando as cidades a se adaptar à uma nova demanda por edifícios, serviços e equipamentos capazes de atender às exigências de um novo e moderno setor econômico, que Sassen chamou de “terciário avançado”. Quase todos os autores, e Sassen em especial, incluem a cidade de São Paulo na lista das possíveis cidades-globais, embora em posições hierárquicas inferiores[3].
Essa suposta “vocação” da cidade de São Paulo para ser “cidade-global” passou então a ser discutida na academia, propagandeada pela mídia, festejada pelo capital imobiliário e incentivada pelo poder público, usando-se como prova o fato de que vêm surgindo na cidade, desde meados da década de 80, novos bairros “de negócios”, concentrações de edifícios que a nomenclatura “globalizada” convencionou chamar de “inteligentes”, justamente pela sua tecnologia de conexão com as mais avançadas técnicas da comunicação global. Assim como as cidades norte-americanas têm seus business districts, em São Paulo também temos um World Trade Center e outros tantos centros empresariais sofisticados, concentrados na região do Rio Pinheiros e da Avenida Luiz Carlos Berrini, uma área que alguns especialistas gostam de chamar de “nova centralidade globalizada” da cidade.
Como de fato houve ali um acréscimo de cerca de 2 milhões de metros quadrados construídos entre 1991 e 2000 [4], com um número razoável de mega-empreendimentos imobiliários terciários, isso parece ser prova suficiente de que afinal podemos sim ser uma cidade-global, sem que haja qualquer preocupação em verificar se as dinâmicas e as disputas de poder que regem essa produção têm de fato algo a ver com a chamada “globalização”. Em outras palavras, o que parece legitimar a condição de “cidade-global” é tão somente a existência de um mercado imobiliário terciário que abriga empresas “transnacionais”.
As motivações que levaram cada um dos setores citados a patrocinar a nova classificação “global” da maior metrópole brasileira são aparentemente variadas. A academia parece ter seguido a velha tradição, em especial nos meios urbanísticos, de reproduzir quase que automaticamente por aqui teorias e interpretações em voga nos grandes centros universitários do exterior – e portanto capazes de dar destaque fácil e rápido à obras acadêmicas que os reproduzam – e que até hoje nunca se mostraram capazes de sustentar uma interpretação eficaz da nossa realidade urbana desigual, em um processo de importação intelectual que reitera o descompasso já apontado por Schwarz quando propôs a matriz das “idéias fora de lugar”. Na realidade, esse procedimento parece destinar-se a reproduzir e difundir por aqui teorias que sustentem academicamente os interesses de hegemonia das classes dominantes nacionais. No caso da teoria da “cidade-global” desdobraram-se teorias mais instrumentais, também discutidas pela academia, verdadeiras “receitas” para alavancar a competitividade urbana global, inspiradas na reengenharia empresarial e nas modernas técnicas de propaganda, e que ficaram conhecidas como “Planejamento Estratégico” e “Marketing de cidades” (Vainer,2000).
Para o mercado imobiliário, que se insere no grupo social das “classes dominantes”, a participação nesse esforço de construção da imagem de uma “cidade-global” parece natural, pela mobilização que ele representa em torno de possibilidades de investimentos e rentabilidade em um cenário recessivo. Se o modelo da “cidade-global” favorece as classes dominantes, é porque favorece essencialmente, como veremos, oligarquias arcaicas que atuam no mercado imobiliário. É sem dúvida o mercado quem tem mais a ganhar, e vem ganhando, com esse processo. A mídia, quanto a ela, sempre serviu no Brasil à reprodução dos mesmos interesses dominantes. Reforçando o coro da “cidade- global” paulistana, são inúmeros os artigos na grande imprensa[5], especializada ou não, festejando a “vocação global” da cidade e suas “inquestionáveis” comprovações, como os cerca de 4 milhões de "turistas de negócios", a modernidade dos nossos Business Districts, a “substituição” da indústria pelos serviços, a moderna e "internacionalizada" rede hoteleira, a proliferação dos edifícios “inteligentes”, e assim por diante.
Já o Poder Público, tanto aqui quanto nos países industrializados, adotou entusiasticamente o discurso da “cidade-global” por motivos bem pragmáticos, que merecem uma explicação mais detalhada. A partir da década de 80, no cenário de crise de superprodução e desemprego, de desconcentração industrial em muitas cidades européias e norte-americanas, e de alta competitividade, a possibilidade de alavancar parcerias milionárias com o setor privado para a construção de pólos urbanos capazes de atrair grandes empresas e negócios globais mostrou-se uma via de salvação para prefeitos submersos em graves crises de governabilidade. Otília Arantes (2000) já mostrou como grandes investimentos culturais tornaram-se uma ótima oportunidade de se construir as infra-estruturas necessárias para transformar cidades quase falidas em pólos de atração do grande capital global. Assim ocorre também com os grandes eventos internacionais, como jogos olímpicos e exposições universais. Centros de convenções, modernos aeroportos, rede hoteleira de primeira linha, atrações turísticas e culturais, segurança, são justamente os atributos que os teóricos exigem das “cidades-globais”, e que de repente tornaram-se objetivos a alcançar, justificados por algum grande evento, em uma simbiose de interesses políticos e imobiliários. O planejamento estratégico urbano tornou-se especialmente útil, para tais fins e, de Paris a Nova York, passando por Londres, Atlanta, Bilbao ou Lisboa, são inúmeras as cidades que experimentaram essa receita de sucesso, que tem em Barcelona, palco de uma gigantesca operação de reurbanização por conta dos jogos olímpicos de 1992, seu maior paradigma.
Em todos esses casos, vale notar, os interesses privados foram alavancados por incentivos governamentais, através de importantes investimentos públicos. Na grande operação de renovação das docas londrinas, as conhecidas London Docklands, por exemplo, cerca de 1,3 bilhão de dólares de fundos públicos foram investidos no empreendimento, que aliás acabou sendo um grande desastre imobiliário, salvo somente em anos recentes, graças a mais investimentos públicos[6]. Em Barcelona, foram 5,5 bilhões de dólares públicos investidos na preparação dos jogos. Quase sempre, a mobilização de importantes fundos públicos – em momentos de restrição orçamentária – para alavancar projetos de renovação urbana, motivados ou não por grandes eventos internacionais, foram legitimados junto à população justamente com o discurso de que tais investimentos seriam a porta de entrada definitiva no chamado “arquipélago das cidades- globais”, o que permitiria a atração de um volume de capital muito maior do que o investido pelo Estado. Um prognóstico arriscado, como em qualquer operação capitalista: os balanços, aliás, nunca são muito transparentes, e além do caso emblemático das Docklands (onde uma das maiores incorporadoras do mundo acabou falindo), a cidade de Montreal, por exemplo, até hoje amarga as dívidas das olimpíadas de 76, assim como em Atlanta os jogos bancados pela gigante dos refrigerantes não foram nenhum grande sucesso financeiro.
Assim como a teoria das “cidades-globais” atravessou os oceanos para pousar em nossas universidades, esse conveniente discurso político também tomou conta das metrópoles latino-americanas, e o planejamento estratégico tornou-se moda entre os chefes dos executivos municipais, de qualquer perfil ideológico. Em um continente que sofre com as opções macro-econômicas neoliberais de estabilização monetária adotadas na década de 90 e enormes restrições orçamentárias que dificultam sobremaneira os investimentos em infra-estrutura, o planejamento estratégico e suas possibilidades de parcerias público-privadas soaram como uma salvação para garantir aos prefeitos a “vitrine” necessária à sua governabilidade, e também à sua reeleição. Grandes obras de infra-estrutura – de repente possíveis graças a empréstimos privados específicos e ao empenho das agências
financeiras multilaterais especialmente empenhadas nesse tipo de ajuda – agradam aos investidores, dão visibilidade aos governantes, geram empréstimos (negócios) para os bancos financiadores internacionais, além de supostamente “capacitar” a cidade para atrair os fluxos do capitalismo financeiro globalizado. Apoiados pelos próprios mentores do planejamento estratégico barcelonês, que coincidentemente tornaram-se consultores internacionais[7], muitos prefeitos latino-americanos se lançaram, nesta última década, na aventura da “cidade-global”, candidatando-se à sede dos jogos olímpicos, como São Paulo e Rio de Janeiro, oferecendo-se para sediar filiais de grandes museus, como o Guggenheim e a Cidade da Música no Rio, alavancando grandes operações de urbanização voltadas para os interesses dos investidores imobiliários do setor terciário, como o Eixo Tamanduatehy, de Santo André (SP), ou o festejado Puerto Madero, em Buenos Aires.
A hipótese que se coloca neste artigo, baseando-nos no estudo do caso de São Paulo, é a de que as motivações das prefeituras de cidades latino-americanas em buscar sua governabilidade através da construção de uma imagem de “cidade-global” não são simplesmente um alinhamento a uma tendência generalizada no continente, mas sim uma máscara ideológica que escamoteia uma máquina a serviço da canalização de fundos públicos para privilegiar os setores mais arcaicos do mercado imobiliário.
Desde já, uma ressalva deve ser feita, sobre a escolha de limitar esta reflexão à cidade de São Paulo. Embora muitos autores brasileiros se detenham – com razão – em criticar o “city marketing” e o Planejamento Estratégico em cidades de países industrializados, não se pretende, neste artigo, entrar nesse julgamento, já que a realidade daqueles países é completamente diferente da nossa e mereceria uma análise mais detalhada. Mesmo em meio a uma forte crise econômica estrutural – que se origina ainda nos anos 70 na crise gerada pela exaustão do modelo de Bretton Woods e a adoção do modelo de endividamento, aos quais se sobrepôs a reestruturação produtiva gerada pela Revolução da Informática – o dinheiro disponível para gastos públicos na Europa e nos EUA ainda é exponencialmente maior do que no mundo subdesenvolvido. Aliás, os gastos públicos até aumentaram na Europa na década de 90, supostamente no auge da globalização neoliberal(Batista Jr, 2000). Além disso, os níveis de distribuição da renda naqueles países faz com que, grosso modo, falar em mercado ainda significa falar na sociedade em sua quase totalidade. Todos consomem e têm relativo acesso aos serviços e equipamentos públicos (mesmo que em níveis diferentes e com um recente mas consistente aumento da exclusão), e em certa medida isso permite a criação de espaços públicos – mesmo que apoiados na instrumentação da cultura, como aponta Otília Arantes – que ainda são minimamente democráticos em seu acesso e uso, apesar de gerados por mega-empreendimentos financiados pelo capitalismo global.
Sem dúvida, tais empreendimentos indicam transformações claras na forma da hegemonia do capital na produção do espaço urbano, e eles têm gerado significativa valorização fundiária e imobiliária, e processos de gentrificação importantes. Foi o caso, por exemplo, da renovação urbana de Barcelona, que sofre forte contestação local, e foi o caso das Docklands londrinas, e isso sem dúvida descredencia esses modelos de planejamento até mesmo quando aplicados em seus países de origem [8]. Mas por questões de espaço e de foco, este artigo não se atém a essas questões, embora as consideremos relevantes, mas sim à problemática transposição desses modelos urbanísticos para a sociedade brasileira, cuja matriz é de extrema desigualdade social e concentração da renda. Trata-se, aqui, de verificar se a “tábua de salvação” que já nos seus países de origem é polêmica, por acaso permite, na realidade subdesenvolvida, criar algum “efeito sinérgico” que resulte em investimentos emergenciais como saneamento básico, habitação de interesse social, transporte público de massa, etc.
Um estudo empírico mais cuidadoso mostrou que, surpreendentemente, a cidade de São Paulo pouco corresponde, em que pese sua imagem "global", a essa expectativa. Por vários ângulos que se procure verificar, a maior metrópole do continente parece mais marcada pelo arcaísmo de sua pobreza e da não-superação dos conflitos herdados da sua formação historicamente desigual e excludente, do que por alguma nova dinâmica urbana determinada pela economia globalizada. Vale lembrar que estamos falando de uma metrópole na qual cerca de 40% da população vive em situação de informalidade urbana, com aproximadamente 1,2 milhão de pessoas morando em favelas[9].
Há basicamente três formas pelas quais poderíamos averiguar se uma cidade responde ao rótulo de “global”: a primeira delas é a verificação daqueles atributos segundo os quais os teóricos qualificam uma cidade como "cidade-global". Tais autores defendem que as cidades-globais abrigam um número significativo de sedes de grandes empresas transnacionais, têm bolsas de valores de importância internacional, caracterizam-se por uma economia que transitou majoritariamente para o setor de serviços, oferecem centros de convenções, modernos aeroportos, rede hoteleira de primeira linha, e em decorrência receberiam significativo fluxo de capital financeiro, de homens de negócios e de mercadorias. A importância de cada um desses atributos constitui uma hierarquia entre centros urbanos que se interconectam, formando o que alguns autores chamaram de “arquipélago mundial de cidades-globais”.
A segunda maneira – que não exclui a primeira – seria verificando até que ponto é significativo o surgimento na cidade de novas atividades terciárias de comércio e serviços que estejam, como defendem, por exemplo, teóricos como Sassen e Castells[10], substituindo as atividades industriais do setor secundário, sendo esse processo supostamente característico da “nova economia global” e das “cidades-globais” [11]. No mesmo sentido, pode-se verificar qual a importância na economia da cidade desse novo setor econômico – o “terciário avançado” – que segundo esses autores compreendem atividades ligas à economia globalizada, como as de informática, assessoria jurídica a grandes empresas, marketing, comunicações, etc. Pode-se, por fim, verificar o quanto novos “distritos terciários”, em especial a já citada região da Marginal Pinheiros, efetivamente concentram empresas desse tipo, e qual sua importância relativa no total das atividades econômicas da cidade.
A terceira forma de verificação seria a análise da origem do capital imobiliário que vem efetivamente produzindo “centralidades terciárias globais” como a da região da Marginal Pinheiros. Seriam grandes investimentos internacionais ligados aos fluxos de capital financeiro globalizados que estariam financiando a construção dos nossos modernos business districts, da rede hoteleira de negócios, dos centros de convenções, etc., assim como ocorreu, por exemplo, nos conhecidos booms imobiliários terciários ocorridos na década de 80 nos EUA, na Inglaterra e em cidades asiáticas como Bangkok, Hong-Kong, Cingapura e Kuala-Lumpur?
É surpreendente afirmar que a cidade de São Paulo não se enquadra no rótulo de “global” em nenhuma dessas três verificações possíveis, e nem os fenômenos geralmente associados à sua “globalização” são propriamente novos, o que nos leva a dizer que a construção da imagem da “cidade-global” paulistana não corresponde a dinâmicas reais, mas sim parece responder a interesses específicos, que se utilizam dessa imagem de forma ideológica para garantir sua hegemonia. É o que veremos a seguir.
São Paulo: o mito da cidade global
Quanto aos “atributos” tipicamente atribuídos às “cidades-globais” aqui discutidas, seria razoável supor que São Paulo, sendo a maior cidade da décima primeira economia mundial, e a terceira maior metrópole do mundo, aparecesse ao menos entre as vinte mais importantes do planeta. Entretanto, segundo classificações feitas pelos próprios estudiosos das cidades-globais, em meados da década de 90, quando a construção de sua imagem “global” mais se intensificou, seu aeroporto sequer era um dos 25 maiores do mundo, tanto em fluxos de carga como de passageiros, a cidade não aparecia entre os 25 mais importantes "pares" de origem-destino no tráfego internacional de passageiros, enquanto que metrópoles periféricas menores de países de economia mais modesta, como Cingapura, Bangkok, ou o Cairo figuravam nessa lista. São Paulo tampouco estava entre os 25 maiores destinos dos fluxos mais intensos de telecomunicações, nem seu porto era um dos 25 maiores do mundo quanto ao volume de containers. Por fim, em 1984, na época da pesquisa de Saskia Sassen sobre as cidades-globais, São Paulo não abrigava – e continua não abrigando – a sede mundial de nenhuma das 500 maiores empresas transnacionais, dentre as 17 cidades analisadas pela autora (Koulioumba, 2002). Vejamos então se, ao menos, pode-se verificar na cidade uma transição do emprego para o setor terciário.
O mito da terceirização do emprego e das “centralidades do terciário avançado”
A segunda forma citada acima merece uma análise mais detalhada. A idéia de que São Paulo estaria passando, como no caso de algumas economias desenvolvidas estudadas por Castells, de um perfil industrial para outro essencialmente terciário não sobrevive à um estudo mais cuidadoso. Em primeiro lugar vale notar que, como qualquer grande centro urbano desde os tempos da Roma antiga, São Paulo sempre teve mais atividades terciárias de comércio e serviços do que industriais. A indústria paulistana esteve, desde a década de 50, especialmente concentrada nos municípios da periferia, sobretudo na região do ABCD. O município de São paulo, embora tenha abrigado – e ainda abrigue – atividades industriais de porte, por outro lado sempre se caracterizou por receber em seu território atividades terciárias "de comando", simplesmente pelo fato da cidade ser, há mais de 50 anos, o pulmão do crescimento econômico do país e do continente. Até aí, não haveria portanto nenhum fato novo na era da "globalização", e fica difícil entender qual a novidade – equiparando-se o peso que as inovações tecnológicas dos edifícios tinham em cada época – de uma concentração de edifícios terciários modernos na região da Marginal Pinheiros, nos dias atuais, em relação à concentração de novos e modernos (para a época) edifícios na avenida Paulista da década de 70, aliás em grande parte também ocupada por sedes de empresas multinacionais. Como já disse Paulo Nogueira Batsita Jr. (2000), referindo-se ao fenômeno da globalização, a idéia do “novo” como legitimadora de um cenário econômico – no nosso caso, urbano – deve ser vista com cuidado, pois esconde um peso ideológico, fazendo parecer novo o que nem sempre o é.
Assim, uma análise mais precisa da atividade industrial e do perfil dos empregos, para verificar a hipótese de Castells, deve incorporar toda a região metropolitana (RMSP), que inclui os municípios industriais do ABCD. De janeiro de 1985 a janeiro de 2002, o nível de emprego na indústria caiu significativos 50,68% [12], o que parece corroborar a tese de Castells. Entretanto, o número de assalariados sem carteira aumentou, entre 1985 e 2000, cerca de 130%, sendo o segmento que mais cresceu na economia informal Jacobsen et alii, 2000). Por outro lado, o nível de ocupação na indústria, medido pelo Dieese, caiu 15,8%, bem menos do que o nível de emprego. Este último computa pessoas efetivamente empregadas com carteira, enquanto que o nível de ocupação engloba também pessoas exercendo atividades informais. Isso mostra que o fenômeno mais significativo quanto ao emprego, na RMSP, é muito mais o aumento do setor informal e a extrema precarização das relações trabalhistas do que propriamente uma "substituição" de empregos industriais pelos de serviços. Na RMSP, cerca de 55% da população ocupada está hoje na informalidade (Dupas, 1998). A realidade brasileira parece ser, sem dúvida, bastante diferente das tendências observadas por Sassen ou Castells nos países industrializados, e a precarização do emprego é, para autores como Chico de Oliveira, a forma mais atual da exploração do trabalho e da acumulação capitalista no Brasil.
Castells verifica que no Canadá e nos EUA, "a categoria dos gerentes, especialistas e técnicos, ou seja, as profissões 'informacionais' por excelência, ...representa cerca de um terço da população ativa no início dos anos 90" (Castells, 1998: 256). Em São Paulo, as empresas declararam à RAIS, em dezembro de 1999 (9 anos depois da análise de Castells para a América do Norte), um total de 3.111.585 postos de trabalho. Desse total, apenas 211.883 eram de empregos relacionados às especialidades citadas por Castells (considerando-se até um escopo provavelmente maior de profissões [13]). Isto é, apenas 6,8% do total de postos de trabalho com carteira assinada. Se considerarmos que esse postos representam apenas uns 50% da população ativa, já que o resto se encontra no trabalho informal, temos que as profissões apontadas por Castells como típicas da sociedade "informacional" representam apenas 3,4% da mão-de-obra ativa na cidade de São Paulo. Por esses parâmetros, não há como falar, no nosso caso, de algum tipo de “economia terciária" centrada nos empregos no setor de serviços.
Além disso, mesmo que tenha havido um aumento de 14% dos empregos do setor de serviços entre 1989 e 1999 [14], o que permite pressupor alguma transferência do setor industrial para o de serviços, é impossível dizer que esta tenha ocorrido majoritariamente para os setores de "serviços avançados e globalizados", já que os dados da precarização do emprego, citados acima, permitem supor que tenha havido uma transferência significativa para serviços de baixa qualificação, ou até mesmo da indústria para a mesma indústria (por meio da terceirização) que não têm nada a ver com os avanços da "globalização".
Assim, talvez não seja errôneo dizer que São Paulo estaria vivendo, mesmo que de forma muito concentrada na região da Avenida Berrini, o que Sassen aponta como "a formação de um novo núcleo econômico urbano de atividades bancárias e ligadas à prestação de serviços que acaba substituindo os núcleos orientados para as manufaturas" (Sassen, 1998:76). Porém parece-nos mais importante entender que esse processo é pouco significativo se o compararmos ao que os especialistas apontam como o real fenômeno contemporâneo na dinâmica do emprego na cidade: a total fragilização das relações de trabalho e o crescimento significativo tanto do desemprego quanto do trabalho informal.
Quanto à indústria propriamente dita, a discussão da tão propalada “desindustrialização” e a “nova vocação terciária” da cidade de São Paulo também deve ser feita com cuidado. Nas palavras de Sassen,"muitos dos antigos grandes centros industriais dos países altamente desenvolvidos sofreram um acentuado declínio" (Sassen, 1999:7), abrindo espaço para que alguns deles, justamente, se re-fortalecessem em função de sua capacidade de concentrar novos tipos de serviços voltados a novos tipos de indústrias pós-fordistas. Embora ela seja cuidadosa ao não confundir a diminuição do emprego industrial com um suposto desaparecimento da indústria em si que, ao contrário, vem se mantendo predominante em algumas economias desenvolvidas, a defesa da idéia do "fim" da era fordista e de seus modelos de concentração industrial nas cidades está presente em seu raciocínio e baseia-se na constatação verdadeira de que essa reestruturação tem provocado relocalizações industriais e a obsolescência de bairros industriais urbanos, tanto na Europa quanto nos EUA.
Mas, como já dito, essas idéias são transpostas sem muito cuidado para a realidade brasileira, ganhando razoável destaque na mídia e nos meios especializados. Em documento da Prefeitura de São Paulo, lê-se que a "fuga de indústrias portadoras de processo produtivos baseados na exploração de mão-de-obra intensiva" é um dos fatores que comprovam os "impactos da globalização sobre a economia das cidades"[15]. "Cadê a fábrica que estava aqui?" era o título de artigo da Revista Exame de 5 de junho de 1998, comentando o "esvaziamento industrial vivido pela capital paulista", um fenômeno, segundo o texto, implicitamente ligado à "economia globalizada" à qual São Paulo teria de estar se adaptando (para alcançar sua condição de "cidade-global", entenda-se). No mesmo sentido, em caderno especial sobre as pespectivas para o século XXI, o Estado de S.Paulo[16], também comentava: "A cidade que já foi do café e depois, por muitos anos, da indústria chega ao futuro prestadora de serviços e voltada para os negócios". A associação dessa suposta tendência desindustrializante com o surgimento de um "centro de negócios" voltado para o setor terciário na região da Marginal Pinheiros é ainda mais claramente explorada pela revista Veja, em sua edição especial de maio de 2002. Em um artigo intitulado "Os efeitos da concentração", a revista afirma que "mais de 40% das indústrias foram embora" da cidade, concluindo que "em compensação, o tamanho da economia de serviços triplicou". Para ilustrar tal fenômeno, uma foto que não deixa dúvidas da localização escolhida pela economia de serviços: os modernos edifícios inteligentes do Centro Empresarial Nações Unidas, na Marginal Pinheiros.
É inegável que a economia brasileira está passando, em especial nos últimos dez anos, por um processo intenso de desmonte industrial, decorrente não de um novo “perfil” econômico da era pós-fordista, mas sim das opções macro-econômicas liberais de abertura do mercado e alta taxas de juros, que multiplicaram os processos de fusões e aquisições de empresas nacionais por grupos estrangeiros, e deslocaram o comando de suas operações empresariais para seus países de origem[17]. Ainda assim, o fenômeno da desindustrialização da RMSP não é tão efetivo quanto se pretende. Em primeiro lugar, a saída de muitas indústrias não se deve exatamente à “terciarização” da economia, mas à deseconomia gerada pela intensa urbanização: valorização fundiária e escassez de terrenos de grande porte para expansão das fábricas, trânsito caótico, alto custo de vida e falta de segurança para os executivos e, dizem alguns, atividades sindicais “organizadas demais”. Isso levou a um fortalecimento das cidades que compõe a chamada macro- metrópole paulista, Campinas, São José dos Campos e Sorocaba, que receberam parte significativa das indústrias (Nobre, 2000). Assim, trata-se mais de um processo de “desconcentração e relocação industriais” do que de substituição da indústria por atividades de serviços.
Mas cabe ressaltar que a irreversibilidade desse fenômeno já é questionada. Estudos recentes da Prefeitura de Santo André, indicam que a simples alteração, em 2002, de lei estadual que limitava a expansão de indústrias na área metropolitana de São Paulo foi suficiente para provocar um início de inversão desse processo, com a volta para a região de importantes empresas, entre as quais a COSIPA, que decidiu instalar em Santo André – e não mais no litoral – um "porto seco" destinado ao escoamento de sua produção. Segundo Pamplona (2001a), da Agência de Desenvolvimento Econômico do Grande ABC, uma vez "cessado o processo de interiorização da indústria estadual do período 1970/85, .... após 1985, a indústria do ABC vem mantendo sua participação na indústria estadual", o que leva o autor a afirmar, baseado em compilação de dados estatísticos, que "desse modo, é falsa a idéia de que teria havido esvaziamento industrial do ABC em favor de outras regiões paulistas nos últimos 15 anos", embora reconheça que as indústrias da região passaram por um processo de expansão que as levaram, em muitos casos, a ampliar suas atividades para o interior, outros estados ou mesmo o Mercosul, mas "sem, abandonar, necessariamente, seu local de origem" (Pamplona, 2001b). A pesquisa SEADE/PAEP 1996, aliás, reforçou tais argumentos, mostrando que a RMSP ainda era responsável por 60,4% do valor adicionado do Estado, empregando 56,8% do pessoal ocupado e abrigando 57% das empresas industriais. Uma posição de liderança industrial significativa, tanto no Estado quanto no país, mesmo que em um processo paulatino de diminuição. No município de São Paulo, se por um lado observou-se, muito em função da precarização das relações trabalhistas, uma diminuição dos empregos industriais de cerca de 13% entre 1986 e 1997, vale notar que a diminuição da atividade industrial foi de apenas 5% nesse período [18], e que a área total de estabelecimentos industriais não decaiu mas, ao contrário, cresceu 12,47% entre 1991 e 2000 [19].
Mas é quanto ao suposto “surgimento” do chamado “terciário avançado” e sua concentração nos novos “distritos de negócios”, como a festejada região da Marginal Pinheiros, que os dados empíricos revelam uma situação ainda menos consolidada. De fato, se selecionarmos, dentre o conjunto de atividades empresariais classificadas pelo IBGE [20], aquelas relacionadas ao “terciário avançado”[21], veremos que essa região, tão propagandeada como a nova “centralidade terciária” paulistana, na verdade não tem uma concentração significativa de empresas do setor, e comparativamente perde em importância para o centro de negócios surgido ainda na década de 70, a Avenida Paulista, embora esta seja reiteradamente apontada pelo mercado como “em decadência”. Assim, do total de empresas atuando na cidade no setor “terciário avançado”, apenas 3,46% delas se situava, em 1999, na referida “centralidade global” da região da Marginal Pinheiros[22]. Em compensação, apenas a Avenida Paulista, no mesmo ano, abrigava 2,20% das empresas do setor [23].
Se considerarmos que as regiões da Paulista e da Marginal Pinheiros reúnem apenas 5,66% (3,46% + 2,20%) das empresas do "terciário avançado" da cidade de São Paulo, cabe uma pergunta óbvia: onde estão as outras quase 95%? Espalhadas por toda a cidade, e não concentradas em uma única “centralidade”. Em 1999, por exemplo, 1.187 empresas declararam a RAIS em são Paulo, sob a classificação "atividades de assessoria em gestão empresarial", um ramo típico do que se entende por "terciário avançado". Pois bem, essas 1187 empresas estavam localizadas em 619 endereços diferentes, apenas 11 delas (0,92% do total) estando na região da Marginal Pinheiros, enquanto que a avenida Ipiranga sozinha, na região central, pouco associada à atividades “globalizadas”, apresentava 13 registros. Em outro exemplo, na área de "consultoria em sistemas de informática", contou-se 323 empresas declarantes, que se distribuem em 236 logradouros. Ou seja, 73,7% dessas empresas estão dispersas em ruas diferentes. É verdade que, neste caso, a "região da marginal Pinheiros" lidera a concentração de empresas, com 13 registros. Ainda assim, essas 13 empresas representam apenas 4 % do total. Da mesma forma, a Paulista aparece com o maior número de registros em um mesmo logradouro, porém apenas 11, ou seja 3,39% do total. O mesmo nível de espraiamento territorial se verifica na análise para outros setores do “terciário avançado”, como "banco de dados", "outras atividades auxiliares da intermediação financeira", e "processamento de dados".
A concentração do “terciário avançado” na região da Marginal Pinheiros mostra-se ainda menos significativa quando se considera o total de empresas da cidade de todos os setores econômicos. Neste caso, as empresas do “terciário avançado” representam apenas 0,50% do total! Embora seja um setor que empregue bastante, ainda assim, o número de postos de trabalho que essas mesmas empresas oferecem é de apenas 0,95% do total de empregos da cidade. Mais uma vez, a Avenida Paulista surge com uma força insuspeita para quem dá ouvidos aos rumores de sua “degradação”, com valores próximos ao do conjunto de avenidas da região da Marginal Pinheiros (Ferreira, 2003). Esses dados tornam-se ainda mais surpreendentes se verificarmos que entre os bancos e as companhias de seguro, empresas-modelo da economia financeira globalizada, poucos são aqueles, dentre os de maior porte, que escolheram a “centralidade terciária” da região da Marginal Pinheiros para instalar suas sedes: dos 48 maiores bancos atuando no Brasil, somente 7 têm suas sedes na região, e das 28 maiores companhias de seguro (de tamanho suficiente para constar entre as 1000 maiores empresas do país em faturamento), somente 3 estão lá instaladas.
Tais números evidenciam que, além da atividade do “terciário avançado” não estar significativamente concentrada em áreas específicas, como supostamente ocorre nos business districts norte-americanos, ela na verdade é muito menos importante, e até quase insignificante – no que diz respeito ao seu número e aos empregos que geram – no conjunto das atividades empresariais da cidade, do que supõem as teorias que defendem a “cidade-global” e a “transição” econômica para o terciário. Mesmo quanto ao faturamento, das mil maiores empresas atuando no Brasil, apenas 124, ou 12,4%, são do “terciário avançado”, sendo todas as maiores do setor industrial. A verdade é que, no contexto latino-americano de economias supostamente em fase de “globalização”, pelo menos a cidade mais importante do continente não parece apresentar um fortalecimento significativo dos modernos setores econômicos ligados à economia global, e com certeza não de forma a justificar a enorme publicidade que vem sendo feita em torno do advento da “cidade-global” paulistana.
O mito da internacionalização do capital imobiliário
A terceira forma de investigação sugerida para verificar a “globalidade” da cidade de São Paulo seria a análise da origem do capital imobiliário que produziu a suposta “centralidade terciária global” da região do rio Pinheiros. Seriam grandes investimentos internacionais ligados aos fluxos de capital financeiro globalizados que estariam financiando a construção dessa região? Poderíamos aventar a hipótese de que a inserção da metrópole nas dinâmicas econômicas globalizadas, que justificariam um tipo de “globalidade”, esteja se dando através da entrada e participação de capitais globalizados no setor de produção imobiliária de escritórios? A presença na região da Marginal Pinheiros de grandes empresas transnacionais como Microsoft, Compaq, Intel ou Nokia rapidamente insuflou os ideólogos da “cidade-global paulistana” a vislumbrar uma cidade semelhante às emergentes metrópoles terciárias da Ásia, como Bangkok ou Kuala-Lumpur, que passaram na década de 90 por intensa atividade imobiliária no setor de escritórios, abrigando hoje as maiores torres empresariais do mundo. O que ocorreu na Ásia, e que eventualmente poderia ter ocorrido também aqui, foi uma maciça entrada de investimentos externos no setor imobiliário, financiando um boom imobiliário de escritórios sem precedentes (Wilderode, 2000), que também ocorreu nos países industrializados na década de 80.
Esse aquecimento da atividade imobiliária de escritórios em outras partes do mundo ocorreu, em primeiro lugar, porque a intensa desregulação dos fluxos e investimentos financeiros promovidos por diversos governos neoliberais nas décadas de 80 e 90 gerou uma ampliação dos investimentos no setor imobiliário, que passou a ser mais um setor de boa rentabilidade para o mercado. Por exemplo, a política de alta de juros e endividamento adotada pelos EUA nos anos 70 fez com que o Japão direcionasse seus excedentes comerciais para investimentos no país, não só através de títulos negociáveis no mercado financeiro, mas também na aquisição de propriedades fundiárias. Segundo Wilderode (2000), os fluxos de investimentos japoneses nos EUA passaram de cerca de U$ 5 bilhões em 1970-71, para U$75 bilhões no período 1980-85 (Wilderode, 2000).
Além da desregulação das economias, David Harvey (1992) já mostrou que, quando há crise de superprodução, da qual decorre uma queda nas taxas de lucros, ocorre uma transferência de capitais ociosos do setor produtivo estagnado para o setor imobiliário, que serve como escoadouro para os investimentos. A edificação do Empire State Building, em Nova York, por exemplo, iniciou-se poucos meses antes do grande crack na bolsa de 1929, e o hoje destruído World Trade Center, também em Nova York, assim como a torre da Sears, em Chicago, as mais altas do mundo na época, também começaram a ser construídas pouco antes da crise do petróleo do início da década de 70. Isso ocorreu bem mais recentemente nas cidades da Ásia, quando a crise na economia japonesa nos anos 80 levou os investidores daquele país a canalizarem seu capital no setor imobiliário nos países próximos, promovendo o boom das cidades acima citadas.
Vale notar que, entretanto, nas cidades asiáticas, embora fique clara a relação entre a economia global e o impulso imobiliário de escritórios, não ficou demonstrado que essa dinâmica tenha de alguma forma promovido uma maior justiça social e urbana. As intensas e aceleradas atividades imobiliárias em Bangkok, por exemplo, que levaram a produção anual de escritórios a mais de um milhão de metros quadrados em 1994 e a de apartamentos residenciais a mais de 150 mil unidades[24], aceleraram também a valorização imobiliária em níveis astronômicos. A produção foi muito maior do que a demanda no pequeno e subdesenvolvido país asiático, gerando uma “bolha especulativa” que rapidamente estourou, com a quebra generalizada das empresas de incorporação. Foi esse, aliás, o estopim da hoje famosa “crise asiática” que assolou a economia global em 1997, tendo reflexos inclusive no Brasil. O aspecto nocivo desse tipo de atividade imobiliária internacionalizada não se restringiu, porém, às economias subdesenvolvidas: no final da década de 90, a falência da mega-incorporadora canadense Olympia & York, em decorrência do fracasso empresarial do maior empreendimento da requalificação das docas londrinas, em Canary Wharf, mostrou a fragilidade das “centralidades terciárias globais” e da suposta demanda à qual elas supostamente responderiam.
Além disso, o caso londrino mostrou que as apostas dos mercados imobiliários em projetos de renovação urbana em áreas centrais (que se tornaram modelos repetidos em muitas cidades latino-americanas), sempre com o comprometimento de fundos públicos, além de resultarem na expulsão das populações mais pobres do local e sua substituição por camadas mais ricas (Ducher, 1989), trazem a contradição da crença em um "efeito sinérgico" de alavancagem econômica em sociedades em crise, o que se reverteu, tanto no caso de Bangkok como no de Londres, na falência de grandes incorporadoras.
Mas se nos casos acima comentados das cidades asiáticas é possível entrever, mesmo que sem evidências de que tenha sido uma vantagem para elas, uma ligação entre a economia globalizada e a produção imobiliária, esse argumento não pode ser usado para reforçar a idéia da condição de São Paulo como uma "cidade-global". Isso porque apesar da intensa propaganda sobre uma suposta internacionalização do setor imobiliário terciário, o fato real é que os agentes mais atuantes são, na sua quase totalidade, tradicionais incorporadores locais.
Mesmo a presença de importantes empresas transnacionais no “distrito de negócios” da marginal Pinheiros não é indicativa de nada. Uma análise mais detalhada mostrou que mais de 95% das empresas pesquisadas na região são apenas locatárias, incluindo-se ai as maiores multinacionais. Tais empresas pouco ou nada participam do processo de incorporação e produção imobiliária, podendo inclusive retirar-se da região e do país com relativa agilidade. Mesmo no que diz respeito à incorporação, durante a década de 90, das mega-obras terciárias que tornaram a região famosa, como o Centro Empresarial Nações Unidas, o World Trade Center ou o Shopping D&D, o capital envolvido era essencialmente nacional, oriundo de fundos de pensão nacionais [25], a maior parte deles de empresas públicas, em função de regulamentações mais permissivas quanto à variedade dos investimentos desses fundos. Os empreendedores e construtores locais, estimulados por uma nova linha de financiamento abundante por parte dos fundos – cujos critérios de decisão de investimentos em determinadas obras e localidades foram em muitas ocasiões criticados pela sua falta de transparência – especializaram-se num novo e mais dinâmico setor de incorporação, voltado para o imobiliário comercial e de serviço, pois eram os que mais garantiam retorno e rentabilidade aos fundos.
No ramo hoteleiro, a sensação de internacionalização é exacerbada pelo fato de que os empreendedores trabalham com bandeiras, autorizações para uso de marcas estrangeiras, o que aliás ocorreu também no caso do World Trade Center, cujo vínculo com o homônimo norte-americano é apenas de direito de uso do nome. Hotéis freqüentemente citados como exemplos da internacionalização do setor, como Meliá, Blue Tree ou Renaissance, são empreendimentos tocados por empresários nacionais, embora a mídia construa freqüentemente imagem contrária. A revista Veja de 4 de julho de 2001 trazia um artigo cujo sub-título era claro: "grupos estrangeiros investem bilhões de dólares e melhoram a qualidade da hotelaria no Brasil". O texto que seguia era um enaltecimento à abertura liberal e seus efeitos sobre o ramo hoteleiro e a produção urbana: "A abertura do mercado, que operou transformações significativas em vários setores, livrou a hotelaria nacional do cheiro de mofo". A situação, em alguns casos, beira o inadmissível: o Hotel Renaissance, por exemplo, um dos mais festejados ícones da “cidade-global”, era um empreendimento da brasileira Encol, financiado pela Caixa Econômica Federal. Com a falência da Encol, a Caixa repassou as ações para o Funcef, fundo de pensão do banco, para fugir do constrangimento de termos um dos mais sofisticados hotéis da cidade nas mãos de um banco estatal cujo papel deveria ser o de prover financiamento para a habitação social no Brasil.
Já no meio da década de 90, alterações nas regras dos fundos de pensão os levaram a diminuir novamente seus investimentos no setor imobiliário. Paulatinamente, foram substituídos por fundos de investimentos imobiliários, também nacionais, que agrupam atualmente pequenos e médios investidores pulverizados, muitas vezes individuais. Esse é aliás um dos meios de financiamento de parte dos novos hotéis destinados a atender à demanda dos homens de negócios da economia globalizada, inclusive alguns de redes internacionais, como a francesa Accord, que embora citada na Veja como um exemplo da internacionalização do setor, financia dessa maneira suas unidades Íbis e Fórmula 1.
Por outro lado, a presença de algumas empresas estrangeiras atuando no país no ramo de consultoria imobiliária também ajudou a difundir a idéia da "internacionalização" do setor. Entretanto, empresas como a CB Richard Ellis ou a J.L. La Salle, e outras do mesmo ramo, são apenas gerenciadoras e consultoras imobiliárias, a maioria atuando no país há décadas, e não fazem incorporação ou construção.
Isso não significa dizer que não esteja ocorrendo atualmente alguma internacionalização do setor imobiliário. Uma importante construtora norte-americana vem atuando na cidade há alguns anos, promovendo incorporações de peso, e alguns poucos hotéis estão se implantando com o aporte de financiamentos externos. Vale observar, entretanto, que estamos falando de um movimento ainda incipiente, que ocorre quase uma década depois que o discurso da “cidade-global” tenha começado a ser construído. A verdade é que não se pode ainda considerar uma efetiva globalização dos fluxos de financiamento imobiliário em São Paulo, fato corroborado por especialistas do setor consultados. Segundo a pesquisa PAEP/Seade: "[a participação estrangeira] no caso da construção civil, é praticamente inexistente, urna vez que as empresas de capital exclusivamente nacional são responsáveis por mais de 97% da receita bruta" (Comin, 1999).
A quem interessa a “cidade-global” paulistana?
Se vimos que São Paulo não pode ser cunhada como “global”, após uma análise empírica mais cuidadosa, interessa então saber porque esse discurso ganhou tanta importância nos últimos anos. A resposta a essa questão é uma só: porque a imagem da "cidade-global" interessa aos investidores imobiliários e às elites fundiárias locais. E tal interesse ocorre, para além do glamour da imagem da cidade-global, porque a promoção da "cidade-global" legitima junto aos paulistanos a canalização de recursos públicos para promover a valorização fundiária e imobiliária desses business districts, e exacerbar as taxas de lucro resultantes desses empreendimentos. Por isso, a consolidação da imagem da “cidade-global” tornou-se uma questão ideológica : trata-se de fazer crer à população que os benefícios da “globalização” da cidade são imprescindíveis para sua “modernização” e sua “inserção econômica”, legitimando os esforços para construir a cidade-global, e garantindo a aceitação do fato de que vultosos recursos públicos são canalizados para regiões da cidade já ultra-privilegiadas.
Os urbanistas norte-americanos Logan e Molotch (1987), analisando a evolução urbana nos EUA, propuseram a teoria da "máquina de crescimento urbano", segundo a qual o que direcionou o crescimento das cidades naquele país foram coalizões entre as elites fundiárias e imobiliárias e o poder público, destinadas a promover o "crescimento" a qualquer custo, segundo seus interesses hegemônicos. Para eles, a disputa urbana nos EUA se dá entre proprietários, interessados em lucrar com o valor de troca da propriedade urbana, e moradores, geralmente locatários, para quem importa o valor de uso e a qualidade de vida, acima dos interesses do "crescimento" (Logan e Molotch, 1987). A transposição dessa matriz teórica para a realidade paulistana não pode ser feita automaticamente, mesmo porque a natureza do principal conflito urbano na cidade de São Paulo não está na disputa entre valor de uso e valor de troca , mas muito mais na luta de classes entre incluídos e excluídos da cidade formal. Uma disputa de caráter estrutural, que transcende o conflito intra-urbano entre proprietários e locatários, centrando-se na fratura social muito mais profunda entre os que estão e os que não estão na cidade. Vale sempre lembrar que, "global" ou não, estamos tratando de uma cidade que mantém quase 4 milhões de habitantes na informalidade habitacional.
Entretanto, a idéia de uma coalizão entre as elites imobiliárias e o Poder Público para promover o crescimento da cidade nos vetores que lhes interessem tem paralelos indiscutíveis na dinâmica da produção do espaço paulistano, quando se trata, obviamente, da construção da cidade formal, e não das periferias esquecidas. Também aqui em São Paulo, verifica-se historicamente um significativo favorecimento ao vetor sudoeste na aplicação dos investimentos públicos em infra-estrutura urbana, privilegiando as elites em seu deslocamento pela cidade, e promovendo uma importante valorização fundiária e imobiliária, cuja rentabilidade é evidentemente apropriada por essas mesmas elites. Esse processo, já apontado por vários autores (Villaça, 2000; Campos Fº, 1989), envolve especulação imobiliária associada à uma inversão de prioridades na alocação dos investimentos públicos, que se concentram nos bairros de elite em detrimento das periferias muito mais necessitadas. Assim, em um exemplo do patrimonialismo brasileiro, pelo qual o Estado mantém uma perversa proximidade com as elites hegemônicas, os fundos públicos urbanos se tornaram objeto da disputa entre setores dominantes.
É exatamente esse processo que ocorre no setor imobiliário de escritórios. Várias "frentes imobiliárias", todas atuando dentro desse vetor privilegiado, disputam entre si a captação de recursos públicos que favoreçam a valorização de sua área. Nesse contexto, os grupos interessados em promover determinado setor organizam-se para fazer a devida pressão e lograr uma coalizão com o poder público que garanta a vinda dos investimentos desejados. Essas “máquinas de crescimento” contam com a participação de empreendedores imobiliários, políticos interessados nos dividendos eleitorais das obras e em alguns casos nas possibilidades de ganhos escusos, e de alguns festejados arquitetos, que não só se beneficiam financeiramente das grandes obras, como alimentam sua publicidade no circuito fashion desse setor profissional, ganhando mais clientes e contratos. Nesse processo, a justificativa da “cidade-global” como instrumento necessário para a “modernização” da cidade nestes novos tempos “globais” torna-se um discurso poderoso.
O Centro, a Avenida Paulista, a região da Marginal Pinheiros, cada uma delas tem sua organização de empreendedores imobiliários – às vezes até associações –, empenhadas na mesma tarefa de atrair para si os fundos públicos que poderão garantir a "revitalização" (entenda-se, a revitalização do valor fundiário e imobiliário) de suas áreas. Sob o argumento, às vezes bastante forte, de que cada uma dessas regiões, por razões diversas, esteve ou está "abandonada", e por isso "degradada" e merece seu quinhão de investimentos públicos, cada um desses grupos irá atuar junto ao Estado para fazer valer seus interesses, utilizando-se sempre do argumento de que cada uma é a melhor região para representar a “cidade-global” conectada ao capital globalizado.
Nesse processo, as periferias excluídas, que demandam por investimentos públicos em infra-estrutura, continuam dramaticamente sem receber atenção, quando a situação demandaria uma completa reversão das prioridades desses investimentos, quase cessando os fluxos para as áreas mais privilegiadas. A gravidade da situação da população excluída exige um congelamento dos privilégios às áreas abonadas, tal o volume de investimentos demandado para reverter o quadro de pobreza existente. Enquanto isso não ocorrer, teremos a continuação do processo histórico de valorização e re-valorização da cidade formal – através das intervenções urbanas nas áreas “degradadas” para a construção de “centralidades terciárias” – que expulsa a população pobre para sempre mais longe. O recente concurso do “Bairro Novo” mostrou como esse procedimento está enraizado até mesmo nas mentes dos nossos planejadores: em uma área vazia, central, de cerca de um milhão de metros quadrados, o Poder Público pouco atentou, no edital do concurso, para a necessidade de exigir um número significativo (pelo menos 30%) de habitações sociais. O resultado foi a premiação de projetos que quase não as consideraram, porém previram pesados investimentos públicos – inclusive enterrando uma linha férrea – que só servirão para valorizar ainda mais a área, para a felicidade de seus proprietários, que viram-se “premiados” por terem deixado seus terrenos vazios por anos, contrariamente ao Estatuto da Cidade. Sintomaticamente, a Prefeitura já anunciou a primeira obra a ser feita na área: a construção de um hotel com centro de convenções na Avenida Matarazzo .
Mas na competição entre empreendedores para canalizar investimentos para sua “frente imobiliária”, é a região da Marginal Pinheiros que vem levando vantagem. Em março e junho de 1995, respectivamente, foram aprovadas na Câmara Municipal duas importantes Operações Urbanas, as da Nova Faria Lima e da Águas Espraiadas, ambas "coincidentemente" situadas em pontos estratégicos dessa "frente imobiliária". O papel das Operações Urbanas e as obras delas decorrentes no favorecimento direto aos empreendedores foi naturalmente assimilado pelos setores ligados à produção da cidade, como mostra um insuspeito artigo da revista Projeto Design de 2001, comentando os projetos hoteleiros empreendidos pelo Sr. Alcides Diniz no terreno que é hoje da Rede Globo: "o fator fundamental para que construções no terreno se materializassem... foi a abertura da avenida Águas Espraiadas, vizinha ao lote".
Como pela lei os recursos arrecadados nas Operações Urbanas com a venda de solo-criado devem ser exclusivamente aplicados na melhoria da infra-estrutura viária da própria área da operação, têm-se a impressão de que as avenidas saem "de graça" para a cidade, financiadas pela iniciativa privada. Entretanto, se a operação urbana se propõe a "vender" solo-criado para arrecadar fundos para a melhoria viária, estima-se que ela só possa ser feita em áreas onde o mercado tenha interesse em comprar, sem o que a operação torna-se, no jargão do mercado, um "mico". Assim, as decisões de políticas de planejamento urbano acabam subordinando-se aos interesses do mercado e, para evitar “micos”, o Poder Público acaba tendo de fazer investimentos prévios para sinalizar ao mercado que a área valerá o investimento. E esses investimentos nunca são computados nos custos das operações, evidentemente. Somente na gestão Paulo Maluf (1993-1996), a região da Faria Lima e da Marginal Pinheiros recebeu, em cerca de três anos, pouco mais de R$ 4 bilhões em obras, a maioria municipais .
Corroborando o fato de que são governos conservadores e comprometidos com os interesses das elites que geralmente patrocinam esses processos, Marques e Bichir (2001) mostram que as gestões Maluf e Pitta foram as que mais se empenharam em patrocinar investimentos de valorização das "frentes imobiliárias", destinando às áreas das classes altas 50% dos recursos da Secretaria de Vias Públicas. Segundo Nobre, "a Secretaria de Vias Públicas recebeu no primeiro quadrimestre de 1995 quase a metade do orçamento da prefeitura (46%), enquanto a área social, da habitação, da educação, da saúde e bem-estar juntas receberam 21% (Jornal da Tarde, 1995)" (Nobre, 2000). Entretanto, a força ideológica do argumento da necessidade da construção da “cidade-global” parece ser tanta que mesmo gestões “populares” continuam promovendo-a: além do citado “Bairro Novo”, tivemos recentemente em São Paulo novos túneis – só para carros – abertos na área da Avenida Faria Lima, que também beneficiou-se com um concurso para a “reconversão urbana” do popular Largo da Batata para moldes arquitetônicos mais adequados à “moderna” avenida terciária.
O que impressiona é que, ao contrário do propagandeado, a Operação Urbana Faria Lima não se pagou – mesmo só considerando as obras da avenida – com os recursos que gerou com a outorga onerosa. O custo previsto das obras a realizar na área da operação era, segundo documento da Sempla de dezembro de 2000, de US$ 150 milhões, incluindo US$ 120 milhões para as desapropriações, o que daria, em valores de outubro de 2002, o montante de R$ 378.116.275,20 . No final de 2000, a Sempla anunciava ter arrecadado U$ 42 milhões, ou seja, R$ 105.872.557, em valores de outubro de 2002, apenas um terço do necessário para cobrir os gastos. Cerca de um ano depois, em setembro de 2001, já na gestão Marta Suplicy, documento do grupo de estudo formado para analisar a operação urbana dava conta de uma arrecadação de 217.229.987 UFIRs, correspondente a R$ 275.294.020,30 em valores de outubro de 2002. Percebe-se um déficit, se acreditarmos nos documentos oficiais, entre os gastos com as obras viárias (R$ 378.116.275,20) e o capital arrecadado com a venda de solo-criado (de R$ 275.294.020,30), de mais de cem milhões de reais!
Além disso, para efetuar as melhorias viárias na área da operação, é necessário promover uma série de desapropriações. Embora seus custos sejam oficialmente computados nos valores acima mencionados, também não é dito que essas desapropriações geram inúmeros processos contra a prefeitura, e conseqüentemente, um significativo volume de precatórios que, em compensação, não entram na soma final. No caso da Operação Urbana Faria Lima, nem mesmo uma Comissão Parlamentar de Inquérito da Câmara Municipal de São Paulo, no ano de 2002, foi capaz de definir o total específico das dívidas relativas às desapropriações na avenida. Em entrevista à Revista Istoé, em 16 de maio de 2001, o então Secretário de Finanças do Município, o economista João Sayad, declarou que o total de precatórios devidos pelo município estaria em torno de R$ 4,5 bilhões. Segundo informações reservadas da mesma secretaria, desse total, de 2,5 a 3 bilhões seriam referentes a cerca de 3000 precatórios relativos à desapropriações. Sabendo que na avenida Faria Lima ocorreram cerca de 400 desapropriações, e que os cerca de 3000 precatórios relativos a desapropriações somariam cerca de R$ 3 bilhões (em valores de maio de 2001), uma regra de três indicaria que seria de cerca de 400 milhões de Reais o montante devido em processos de desapropriação na avenida. Em valores de outubro de 2002, teríamos então, a acrescentar aos 100 milhões dos custos de obra não cobertos, mais um montante de R$ 497,45 milhões. No total, a operação Urbana Faria Lima, apesar do discurso de que ela "se pagaria" através da parceria com a iniciativa privada, custou aos cofres públicos, até aqui, mais de meio bilhão de reais! Isso sem contar os custos de túneis sob o Parque do Ibirapuera e do Rio Pinheiros, e da renovação da avenida JK, que estranhamente não entram na soma dos custos da Operação Urbana, apesar de serem adjacentes a ela, e promoverem ainda mais valorização na área.
Como era de se esperar, foi a região da Vila Funchal, diretamente beneficiada por essas obras, a que mais cresceu em área construída de escritórios no final da década de 90. Na outra ponta da avenida, um artigo do jornal O Estado de S.Paulo de 25/06/95 não deixa dúvidas quanto aos benefícios pouco “globais” que a valorização da região significava: "A região do Largo da Batata, dominada por casas simples e comércio popular, terá valorização mínima de 100% quando as obras da Faria Lima estiverem concluídas. Entre os proprietários que vão se beneficiar com a explosão imobiliária da área está o advogado e empresário Calim Eid, coordenador de duas campanhas eleitorais de Paulo Maluf, e que tem pelo menos 20 imóveis na região" .
Abertura de avenidas, de túneis de utilidade discutível, modernização de linhas e estações de trens, interligações viárias entre bairros de negócios, entre esses bairros e o aeroporto, são alguns dos exemplos de como se canalizam investimentos públicos que sorrateiramente servirão de combustível para se vender a imagem onipotente da "São Paulo Cidade-Global", permitindo a construção de hotéis, “edifícios inteligentes” e outras mega-obras terciárias que só irão beneficiar os mesmos e arcaicos grupos de investidores imobiliários locais.
Mais do que globais, as dinâmicas que dirigem a produção da cidade de São Paulo são a representação do mais arcaico patrimonialismo, ou seja, da apropriação do público pelos setores privados dominantes, em prol de seus próprios interesses. No Brasil, em todos os momentos em que se colocou um contexto de construção autônoma de um capitalismo voltado para dentro, as elites nacionais optaram sistematicamente pela re-imposição de sua hegemonia interna, promovendo a expatriação dos excedentes (Deák, 199X). Em outros países periféricos, a ausência de uma indústria nacional minimamente significativa relegou às elites um papel de simples coadjuvante interno dos agentes do comércio internacional, Aqui, pelo contrário, a reiterada aliança estratégica da burguesia com o capital internacional consolidou uma economia dependente, mas que permitiu internamente uma total e onipotente hegemonia das elites na consolidação de uma sociedade estruturalmente desigual (Sampaio Jr., 1999). O discurso da globalização, foi incorporado pelas elites como o instrumento mais apropriado, no novo contexto do capitalismo financeiro, para perpetuar uma nova imposição de incorporação dos progressos técnicos do capitalismo hegemônico que somente a ela beneficiará e lhe garantirá a manutenção de sua hegemonia interna. Nas cidades, e em especial na suposta ”cidade-global” de São Paulo, aplica-se ideologicamente uma matriz de "modernidade" que não tem nenhuma intenção de enfim tentar superar a desigualdade estrutural herdada de nossa matriz colonial. A continuar assim, nunca se responderá à demanda por soluções que promovam enfim uma cidade socialmente justa.
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