A cidade para poucos: breve história da propriedade urbana no Brasil
/Publicado em Anais do Simpósio “Interfaces das representações urbanas em tempos de globalização”, UNESP Bauru e SESC Bauru, 21 a 26 de agosto de 2005.
As cidades brasileiras são hoje a expressão urbana de uma sociedade que nunca conseguiu superar sua herança colonial para construir uma nação que distribuísse de forma mais equitativa suas riquezas e, mais recentemente, viu sobrepor-se à essa matriz arcaica uma nova roupagem de modernidade “global” que só fez exacerbar suas dramáticas injustiças. Pesquisas de várias instituições indicam que as grandes metrópoles brasileiras têm em média entre 40 e 50% de sua população vivendo na informalidade urbana , das quais de 15 a 20% em média moram em favelas (chegando a mais de 40% em Recife). E não seria exagero afirmar que a questão do acesso à propriedade da terra está no cerne dessa enorme desigualdade socioespacial.
A Lei das Terras e o surgimento da propriedade fundiária
Até meados do século XIX, a terra no Brasil era concedida pela Coroa – as sesmarias – , ou simplesmente ocupada . Os municípios tinham o Rossio, terras em que se implantavam as casas e pequenas áreas de produção, sem custo. Assim, a terra ainda não tinha valor comercial, mas essas formas de apropriação já favoreciam a hegemonia de uma classe social privilegiada. A Lei das Terras, de setembro de 1850, transformou-a em mercadoria, nas mãos dos que já detinham "cartas de sesmaria" ou provas de ocupação "pacífica e sem contestação", e da própria Coroa, oficialmente proprietária de todo o território ainda não ocupado, e que a partir de então passava a realizar leilões para sua venda. Ou seja, pode-se considerar que a Lei de Terras representa a implantação da propriedade privada do solo no Brasil. Para ter terra, a partir de então, era necessário pagar por ela.
Para Maricato (1997), foi entre 1822 e 1850, nas décadas anteriores à aprovação da Lei das Terras, que se consolidou de fato o latifúndio brasileiro, através da ampla e indiscriminada ocupação das terras, e a expulsão dos pequenos posseiros pelos grandes proprietários rurais. Tal processo se deu muito em função da indefinição do Estado em impor regras, decorrente das disputas entre os próprios detentores do poder. Segundo a autora, "a demorada tramitação do projeto de lei que iria definir regras para a comercialização e propriedade da terra se devia ao medo dos latifundiários em não ver 'suas' terras confirmadas". O resultado dessa disputa foi o fim do projeto liberal de financiamento de uma colonização branca de pequenas propriedades, baseada nos colonos europeus, por meio da venda das terras do Estado . No lugar, promoveu-se uma demarcação da propriedade fundiária nas mão dos grandes latifundiários, que nesse processo conseguiram inclusive apropriar-se de muitas terras do Estado. E os imigrantes, em vez de colonos de pequenas plantações, serviram de fato como mão-de-obra nos grandes latifúndios, substituindo a mão-de-obra escrava. Pois o processo político de aprovação da Lei das Terras tem muito a ver com o fim do tráfico de escravos.
Como se sabe, o fim da escravidão no Brasil está mais ligado aos fortes interesses comerciais ingleses, a potência hegemônica da época, do que a ideais abolicionistas. A expansão comercial imposta pela Revolução Industrial fez com que aumentasse o interesse dos ingleses sobre o comércio brasileiro, e as pressões para impedir qualquer restrição a seus produtos e garantir o aumento do mercado, o que incluía também o fim da mão-de-obra escrava e a implantação do assalariamento. Segundo Boris Fausto (1994), entre 1870 e 1873, os produtos ingleses eram responsáveis por 53,4% do valor total das importações brasileiras.
A proibição do tráfico negreiro, em 1831, não impediu a continuidade do comércio de escravos, que entretanto tornavam-se mais caros para os grandes produtores agrícolas, indicando a solução da mão-de-obra imigrante. Foi somente em 1850, após a ameaça concreta, feita um ano antes pelos ingleses, de fechamento dos portos brasileiros, que uma lei coibiu definitivamente o tráfico.
Restava então aos grandes produtores cafeeiros recorrer à mão-de-obra "livre" e assalariada dos imigrantes. Nesse sentido, a Lei das Terras coibiu, como vimos, a pequena produção de subsistência, dificultando o acesso à terra pelos pequenos produtores, inclusive imigrantes, e forçando seu assalariamento nas grandes plantações. Entretanto, também com relação a estes foi estruturado um sistema de endividamento – as “parcerias” – pelo qual os trabalhadores recém-chegados abriam crédito com seus patrões para a compra dos bens que necessitavam, chegando a um ponto em que o pagamento dessas dívidas tornava-se impossível. Na prática, tal dependência instituiu um sistema de pseudo-escravidão para esses trabalhadores (que aliás perdura até hoje em algumas regiões do Brasil), que por muitos anos , até a abolição, conviveram nas fazendas com a mão-de-obra escrava.
Outro aspecto decorrente da Lei das Terras, embora menos significativo que sua função de promover a implantação do trabalho assalariado, é que antes da sua aprovação, o "capital" dos grandes latifundiários era medido pelo número de escravos que cada um detinha, fosse no campo ou nas cidades . A abundância de terras, a dificuldade para ocupá-las e a condição colocada para sua concessão de que elas se tornassem produtivas, tornavam a posse de escravos mais importante do que a da terra em si. Em suma, a riqueza dos poderosos era medida pelos seus escravos, que serviam – o que não era o caso da terra, antes de 1850 – até como objeto de hipoteca para a obtenção de empréstimos. Como lembra Maricato (1997), não foi por acaso que a Lei das Terras foi promulgada no mesmo ano – na verdade, em um intervalo de poucas semanas – do que a proibição definitiva do tráfico. Está claro que, em meio a um processo político-econômico em que se restringia o sistema de escravidão, a Lei das Terras serviu para transferir o indicativo de poder e riqueza das elites de então: sua hegemonia não era mais medida pelo número de escravos, mas pela terra que possuía, agora convertida em mercadoria, e o trabalho assalariado podia então se expandir no Brasil, respondendo às pressões inglesas.
Evidentemente, tal situação consolidou a divisão da sociedade em duas categorias bem distintas: os proprietários fundiários de um lado , e do outro, sem nenhuma possibilidade de comprar terras, os escravos, que seriam juridicamente libertos apenas em 1888, e os imigrantes, presos à dívidas com seus patrões ou simplesmente ignorantes de todos os procedimentos necessários para obter o título de propriedade. A presença de ambos já era na época considerável: se o país tinha, em 1700, cerca de 3 milhões de habitantes, o tráfico negreiro alterou bem a situação, e em 1850 somente os escravos já eram cerca de 4 milhões. Quanto aos imigrantes europeus e japoneses, sua vinda começou efetivamente na década de 1840, intensificando-se após 1850. Entre esse ano e o de 1859, cerca de 110 mil imigrantes chegaram ao país, parte deles concentrando-se, vale dizer, nas cidades. Em São Paulo, por exemplo, dos 130 mil habitantes em 1895, 71 mil eram estrangeiros . Mas, a terra como "mercadoria" não ficou por causa disso mais disponível para essa massa de população. Como vimos, a distribuição das terras no Brasil se deu, para os senhores de então, em um sistema com muito pouca, ou nenhuma concorrência.
As cidades na economia agroexportadora
Mas se o processo acima descrito ocorre essencialmente no meio rural, é importante frisar que a Lei das Terras teve também forte influência nas dinâmicas de apropriação da terra urbana. Ermínia Maricato lembra que a lei “distingue, pela primeira vez na história do país, o que é solo público e o que é solo privado” (Maricato, 1997:23). Assim, torna-se possível, inclusive, regulamentar o acesso à terra urbana, definindo padrões de uso e ocupação, que como veremos, também iriam servir para garantir, ao longo do tempo, o privilégio das classes dominantes. Ou seja, nas cidades como no campo, a estrutura institucional e política de regulamentação do acesso à terra foi sempre implementada no sentido de não alterar a absoluta hegemonia das elites.
Analisando mais de perto a questão urbana, vale lembrar, em primeiro lugar, o argumento apresentado pelo sociólogo Francisco de Oliveira , para quem é errada a ideia, bastante comum na historiografia nacional, segundo a qual na economia brasileira agroexportadora da passagem do século XIX para o XX, o meio rural predominava sobre o meio urbano. Como lembra o autor, se a sede da produção agroexportadora era necessariamente o campo, o controle de sua comercialização, entretanto, se dava essencialmente nas cidades. O papel central das cidades não acontecia apenas porque a efetivação das exportações necessitasse de atividades urbanas. Segundo o autor, “porque a produção foi fundada para a exportação, a cidade nasce no Brasil antes mesmo do campo. Daí o caráter político-administrativo das cidades no Brasil desde a Colônia, o que foi confundido...como um predomínio do campo sobre a cidade”. Entretanto, as cidades brasileiras da época cafeeira tinham a característica, que iria mudar após a consolidação da industrialização, de serem um espaço urbano onde não ocorria nem o mercado (já que o mercado real da economia era o da exportação agrícola) nem a própria produção (que se dava no campo).
Assim, antes mesmo do início da industrialização, a cidade do Rio de Janeiro já atingia um tamanho significativo, ainda no século XIX, por sua condição de capital, e São Paulo, como veremos, se consolidava como sede administrativa da produção cafeeira paulista. O fim do tráfico e a libertação de escravos antes mesmo da abolição, geraram um afluxo para a cidade do Rio, que em 1890 tinha cerca de meio milhão de habitantes. Com o advento da república, consolidou-se ainda mais seu crescimento, de tal forma que, na virada do século retrasado, a cidade se mantinha a mais populosa do país, com cerca de 600 mil habitantes, mais do que o dobro de São Paulo ou Salvador.
Na cidade de São Paulo, a expansão da produção cafeeira, associada ao surgimento de uma indústria ainda incipiente, iriam ser determinantes para seu crescimento acelerado, que a consolidaria como a maior cidade do país já nas primeiras décadas do século XX, superando, à medida em que a industrialização se consolidava, as limitações de seu papel de sede do controle da exportação agrícola. A diversificação dos investimentos oriundos do “capital cafeeiro” , intensificou atividades de caráter essencialmente urbano. Muitos fazendeiros começaram a transferir sua residência para mansões nas cidades. As atividades de comércio do café, e a construção da estrada de ferro Santos-Jundiaí, em 1867, já haviam insuflado a economia urbana, com empresas de importação-exportação, bancos, o comércio para atender a uma população urbana crescente, e as atividades da construção civil e dos serviços urbanos, como a implantação de vilas operárias, a construção de reservatórios de água, a instalação de iluminação urbana a gás, de linhas de bonde, etc., sempre com a presença marcante de empresas inglesas.
Nesse período agroexportador e de uma industrialização incipiente imperou, tanto no Rio quanto em São Paulo, uma visão de que as cidades não podiam ser a expressão do atraso nacional frente ao modernismo das grandes cidades europeias, em especial em um momento em que as exportações de café reforçavam a participação do país no comércio internacional. Sendo elas o centro comercial e político do país, interessava que cidades como Rio e São Paulo tivessem uma aparência compatível com a ambição comercial da expansão cafeeira. Segundo Ribeiro e Cardoso (1981:81), por essa razão as primeiras grandes intervenções urbanas “visaram criar uma nova imagem da cidade, em conformidade com os modelos estéticos europeus”. Nesse processo, ainda segundo os mesmos autores, “as elites buscavam afastar de suas vistas – e das vistas do estrangeiro – o populacho inculto, desprovido de maneiras civilizadas, mestiço. As reformas urbanas criaram uma cidade ‘para inglês ver’’”.
Explicita-se então o porquê das duas grandes cidades do país nesses primeiros momentos da urbanização brasileira, já promoverem uma sistemática segregação social: simplesmente reproduzia-se na cidade a mesma diferenciação social resultante da hegemonia das elites que se verificava nos latifúndios. É dessa época que datam os primeiros registros de cortiços e até mesmo de ocupação dos morros com moradias populares. Mesmo que não fosse ainda regida pelas dinâmicas do capitalismo industrial, a cidade já tinha por marca a diferenciação socioespacial, pela qual a população mais pobre, via de regra, era excluída para as áreas menos privilegiadas. Segundo Maricato (1997:27), o Rio contava, em 1888, ano da abolição, com mais de 45 mil pessoas vivendo em cortiços, sendo a maioria escravos libertos. A insalubridade, as epidemias, decorrentes da ausência de infraestrutura, como por exemplo o saneamento básico, a violência, a alta densidade urbana, eram marcas de uma parte da cidade, e já mostravam a tônica do que viria a ser a cidade brasileira do século XX.
Mas o que se destaca nesse processo são dois fatores que estão na base do entendimento das dinâmicas de segregação socioespacial urbana: o conceito de localização e a participação do Estado, representando no Brasil os interesses das elites, na formulação e implementação das políticas públicas de urbanização. Esses dois aspectos merecem ser vistos com mais cuidado .
Diferenciação urbana e produção social do espaço
A cidade se caracteriza por ser um ambiente construído, ou seja, seu espaço é produzido, fruto do trabalho social. Há anos existe um intenso debate acadêmico sobre a conveniência de se transferir ou não para o solo urbano a teoria da renda da terra, que Marx utilizou para o contexto bem específico – e pouco comparável ao solo urbano – da propriedade rural. Sem entrar nessa polêmica, o que se pode dizer é que o solo urbano tem seu valor determinado por sua localização. Esta se caracteriza pelo trabalho social necessário para tornar o solo edificável (a infraestrutura urbana), as próprias construções que eventualmente nele existam, a facilidade de acessá-lo (sua “acessibilidade”) e, enfim, a demanda. Esse conjunto de fatores é que distingue qualitativamente uma parcela do solo, dando-lhe certo valor e diferenciando-o em relação à aglomeração na qual se insere.
A localização é um fator de diferenciação espacial por motivos óbvios: terrenos com uma vista privilegiada, ou situados em locais de fácil acesso, ou muito bem protegidos, ou próximos a rodovias ou ferrovias, tornam-se mais valiosos para interesses variados. São mais agradáveis para o uso habitacional, ou melhor situados para escoar a produção de uma fábrica, ou para atrair mais consumidores para uma loja, e assim por diante. Nas cidades brasileiras do início do século passado, que acabamos de descrever, os bairros centrais, que tinham boa infraestrutura, concentravam mais gente, dispunham de linhas de bonde, eram próximos das estações de trem, eram os bairros privilegiados onde acontecia a vida urbana e comercial nascente, e onde se instalavam os palacetes da elite, embora as vezes bairros um pouco mais “distantes”, como a avenida Paulista, em São Paulo, atraiam os poderosos justamente pela sua exclusividade.
Mas o que fica claro é que a localização será tanto mais interessante quanto houver um significativo trabalho social para produzi-la, ou seja, para torná-la atrativa dentro de uma determinada aglomeração urbana. Assim, fica evidente, que a localização urbana é fruto de um trabalho coletivo, e não pode ser individualizada: ela dependerá sempre da aglomeração em que se situa, ou seja, do entorno urbano na qual está, e da intervenção do Estado para construí-la e equipá-la de tal forma que ela ganhe interesse. Por isso, como aponta Deák (2001), “a intervenção estatal é um complemento necessário, ainda que antagônico, à regulação pelo mercado” do acesso ao solo urbano. Tal intervenção pode dar-se por meio de obras urbanizadoras convencionais, mas também ocorre por meio de um conjunto de instrumentos tributários e reguladores do uso e das formas de ocupação do solo urbano. Ou seja, nessa dinâmica é muito fácil entender como a influência sobre a máquina pública pode render benefícios significativos a quem conseguir direcionar os investimentos do Estado segundo seus interesses de valorização, como veremos logo adiante. No Brasil, desde as primeiras ondas de crescimento das nossas cidades, na virada do século XIX para o XX, todas as grandes intervenções urbanas promovidas pelo Poder Público foram, salvo raras exceções, destinadas a produzir melhorias exclusivamente para os bairros das classes dominantes.
Evidentemente, nem todas as correntes teóricas admitem tal interpretação sobre a produção da diferenciação espacial e do valor fundiário urbano. Segundo o pensamento liberal, que no urbanismo se evidenciou na chamada “Escola de Chicago”, ainda nas primeiras décadas do século passado, mas com um poder de influência que perdura até hoje, a cidade apenas refletiria, no âmbito espacial, a lógica da “mão invisível” e da autorregularão, frutos do laissez-faire econômico. Assim como supostamente ocorreria no âmbito econômico da regulação dos preços e do emprego, as cidades teriam a capacidade de crescer espontaneamente, equilibrando-se naturalmente, pela lei da oferta e da demanda, em um sistema no qual os mais privilegiados encontrariam seus espaços, assim como os mais pobres acabariam achando o seu, com as diferenciações “naturais” de qualidade inerentes à própria lógica do capitalismo. Evidentemente, parece-nos que as coisas não ocorreram, e ainda não ocorrem, exatamente assim. E nas nossas cidades, a intervenção estatal foi capaz de produzir recorrentemente a diferenciação espacial desejada pelas elites, e a disputa pela apropriação dos importantes fundos públicos destinados à urbanização caracterizou – e caracteriza até hoje – a atuação das classes dominantes no ramo imobiliário.
Assim, a implantação de infraestrutura urbana no Brasil sempre se deu em áreas concentradas das nossas cidades, não por acaso os setores ocupados pelas classes dominantes. Essa prática da desigualdade na implantação de infraestrutura, ou seja, do trabalho social que produz o solo urbano, gerou – e ainda gera – diferenciações claras entre os setores da cidade, produzidas pela ação do Estado (ao contrário do que defendia a Escola de Chicago) e acentuando a valorização daqueles beneficiados pelas obras, em relação à escassez do restante da cidade. Assim, a brutal diferença de preços que tal fenômeno produz nunca esteve dissociada, evidentemente, dos interesses do capital especulativo que sempre soube, no Brasil, fundir-se à ação estatal e canalizar os investimentos públicos para locais de seu interesse, gerando altos níveis de lucratividade .
Os primeiros planos urbanísticos
No início do século passado, as dinâmicas de urbanização da cidade explicitavam, como vimos, processos de valorização fundiária e imobiliária que iriam constituir uma matriz de exclusão que perdura até hoje, sobrevivendo e fortalecendo-se em cada nova fase do nosso desenvolvimento. Na jovem república ou no Brasil industrial, o acesso à cidade urbanizada só foi possível, em suma, para aqueles que pudessem pagar por ela, ou que tivessem um razoável poder de influência dentro da máquina pública. As relações de poder se estabeleciam no âmbito urbano por um lado, em torno do privilégio dado às elites no direcionamento dos recursos públicos e na construção de bairros de elite, e do outro pela exclusão que atingia invariavelmente a população urbana mais pobre, e posteriormente o proletariado urbano. Entre esses dois extremos, uma classe-média encontrava algum lugar, em diferentes momentos históricos, conforme fosse beneficiada por uma ou outra política pública, pelos resquícios de um ou outro ciclo de crescimento econômico. Nesse processo, o Estado cumpriu sistematicamente um papel de controle sobre a produção do espaço urbano. Um "controle às avessas", pois se na Europa ele visava alguma universalização e democratização no acesso à cidade , no Brasil ele se deu ou para garantir a onipotência das elites, e manter em níveis aceitáveis os bairros de classe média, deixando aliás o mercado imobiliário bastante livre para atuar, ou para "resolver" as demandas populares quando absolutamente necessário, na base de relações populistas e clientelistas, e no que Schwarz chamou das "relações de favor" .
Como exemplo das reformas urbanas “para inglês ver”, no Rio de Janeiro dos primeiros anos do século passado, o presidente Rodrigues Alves deu ao então prefeito do Distrito Federal, Francisco Pereira Passos, poderes absolutos (e inconstitucionais) para promover uma profunda reforma urbana, destinada a sanar as epidemias crescentes e recuperar a cidade, vista como um órgão doente (Maricato, 1996). Para atrair o capital estrangeiro para o país, era necessário “sanear” a cidade: novas avenidas foram abertas – notadamente a Avenida central, hoje Rio Branco –, o porto foi modernizado, e novos e “modernos” edifícios foram construídos, substituindo casarões e prédios antigos. Nesse processo, e nas demais intervenções de urbanização no Rio do início do século passado, em que morros foram desmontados, aterros criados, e a natureza bastante modificada para a construção da capital, não havia sequer possibilidade de contestação por parte da população atingida, e os propósitos de uma “higienização social” estavam muito pouco escondidos. A população pobre foi sistematicamente expulsa dos cortiços e dos morros centrais, deslocando-se invariavelmente para locais distantes – menos valorizados – ou mesmo para outros morros. Tais planos urbanísticos, que ficaram conhecidos como de Melhoramentos e Embelezamento, repetiram também em São Paulo essa mesma lógica, assim como em muitas outras cidades brasileiras, como Curitiba, Porto Alegre, Santos, Manaus, Belém. Amparadas na preocupação de higienização dos bairros mais pobres, onde se verificava uma relação direta entre insalubridade e doenças como a febre amarela, entre outras, as intervenções da época aproveitavam tal justificativa para pouco a pouco promover a expulsão da população mais pobre das áreas centrais e renovar esses bairros com novos padrões de ocupação. Como coloca Paulo Cezar de Barros, “higienizar e modernizar a cidade significavam sobretudo, eliminar os lugares infectos e sórdidos, o desmazelo, a imundície e as residências coletivas (cortiços e cabeças de porco) em que habitava a maioria da população”.
Sempre baseando-se inicialmente no propósito pouco questionável do controle sanitário, esses planos marcaram também o início de uma outra prática que, se por um lado instituiria padrões mais modernos de controle do processo de urbanização, por outro lado iria ajudar, ao longo do século XX, na diferenciação de localizações urbanas privilegiadas: a implantação de uma complexa legislação urbanística, que estabelecia normas extremamente rígidas para a construção de edifícios e para as possibilidades de uso e ocupação do solo. Com isso, saia privilegiado o mercado imobiliário, capaz de respeitar tais regras ou de dobrá-las graças à sua proximidade com o Poder Público e seu poder financeiro, e prejudicava-se definitivamente a população mais pobre, incapaz de responder às duras exigências legais. Para construir, seria necessário ter a documentação da posse da terra, dominar o aparato técnico-jurídico do desenho e da aprovação de plantas, e respeitar as diretrizes legais sanitárias e de ocupação e uso do solo, que muitas vezes impunham regras que só podiam ser aplicadas nos terrenos mais caros.
Os Código de Posturas de São Paulo e do Rio, ainda no final do século XIX, já proibiam por exemplo os cortiços nas áreas urbanas centrais, e determinavam recuos para as construções que só podiam ser aplicados em lotes de grande área, restringindo assim por meio da lei a ocorrência de terrenos pequenos e mais baratos. A casa unifamiliar, de grande porte, centrada no lote, era a casa padrão das regulamentações urbanísticas, acrescentando-se posteriormente o edifício vertical, também de mais alto padrão social. Segundo Rolnik, comentando as primeiras regras aplicadas em São Paulo, “a essas leis, definindo a especificidade do modo de construir nos bairros de elite, corresponde uma característica absolutamente marcante na construção da legalidade urbana na cidade de São Paulo: a lei como garantia de perenidade do espaço das elites” . Embora até 1930 a provisão habitacional social ainda se desse, como veremos, por iniciativa do setor privado, Nabil Bonduki aponta que, “das medidas urbanísticas contra as duas epidemias de 1893 surgiram três frentes de combate – legislação, planos de saneamento básico e estratégia de controle sanitário – , que são a origem da intervenção estatal no controle da produção do espaço urbano e da habitação”(Bonduki, 1998:33) .
Industrialização e urbanização
Mas é com a intensificação da industrialização que o conceito de diferenciação espacial pela localização e a importância da intervenção estatal ganham toda sua dimensão. O capitalismo industrial, ao exacerbar a divisão social do trabalho e a luta de classes, acentuou a divisão social do espaço: era quase natural que as classes dominantes continuassem a apropriar-se dos setores urbanos mais valorizados, justamente por sua localização privilegiada, por sua acessibilidade, e pela infraestrutura disponível, deixando os bairros menos privilegiados para as classes mais baixas. Como se sabe, a industrialização é um fenômeno essencialmente urbano. Ou seja, a diferença agora era que a cidade tornava-se o locus do próprio sistema de produção, e não mais o campo. Por isso, aumentava consideravelmente a população urbana de baixa renda, pela necessária presença do operariado urbano, e a segregação espacial-urbana tornava-se mais visível. As leis funcionariam mais do que nunca para demarcar os lugares de cada um, e as classes dominantes intensificariam ainda mais sua presença na máquina do Estado para garantir os novos espaços de alta valorização em que se implantavam .
A primeira fase de nossa industrialização, que como visto se inicia nas últimas décadas do século XIX em um processo concomitante às atividades da economia cafeeira agroexportadora, fez com que, já em 1920, São Paulo superasse com folga a produção industrial de todos os demais estados brasileiros. Por isso, a cidade também era a que mais se urbanizava. Embora fosse ainda uma industrialização incipiente, até mesmo em função das disputas entre os interesses ingleses de escoamento da sua indústria, as resistências dos grandes produtores cafeeiros e dos coronéis mais arcaicos, face ao empreendedorismo da “moderna” burguesia industrial nascente, ela já era suficiente para que a cidade, além do local das atividades administrativas e comerciais oriundas da atividade cafeeira, se tornasse também sede da produção industrial.
Como já dito, ao contingente de trabalhadores do setor de comércio e serviços, começava a somar-se de forma significativa, sempre com a ajuda dos escravos libertos e dos imigrantes europeus, o proletariado urbano. Nabil Bonduki ressalta que, já “no segundo quinquênio da década de 1880, a cidade de São Paulo passa a atrair, pela sua própria potencialidade econômica, imigrantes que vinham inicialmente para as lavouras do café” . Segundo o autor, em 1895, quase 40% dos 104 mil imigrantes que passaram pela Hospedaria dos Imigrantes (esta estrategicamente colocada na “periferia” de então, no bairro proletário do Brás, para deixar bem claro o lugar na cidade que lhes era destinado ) ficaram na cidade. A diferenciação espacial, que antes marcava apenas o centro como a área privilegiada de assentamento de uma elite dourada voltada ao comércio cafeeiro, com nenhuma importância para os ainda raros, distantes e pouco populosos bairros pobres de periferia, agora começava a ocorrer nos moldes de uma típica cidade industrial – como aquelas que Engels já havia descrito na Inglaterra industrial do século XIX – gerando bairros proletários com péssimas condições de habitabilidade.
O Brás e a Lapa eram os bairros operários, tanto pela proximidade da estrada de ferro inglesa, que tornava interessante a implantação das fábricas, quanto por serem as várzeas dos rios Tamanduatey e Tietê, com forte ocorrência de alagamento, e portanto pouco interessantes ao assentamento habitacional das elites. Estas concentravam-se nos “bairros nobres”, para os quais a intervenção estatal não foi tímida: a construção do Viaduto do Chá, que ligava o “centro velho” à cidade nova e a abertura da Avenida Paulista, ainda na última década do século XIX, e a implantação de infraestrutura básica no bairro de Higienópolis, nas encostas arborizadas e agradáveis do espigão da cidade. Segundo Bonduki, é entre 1886 e 1900 que se dá o primeiro momento crítico de falta de habitação na cidade de São Paulo. Vale notar que tal dinâmica, embora seja exemplar na cidade de São Paulo, se reproduzia, em escala menor, nas cidades do interior do Estado onde se instalavam as primeiras indústrias ligadas ao café (em geral indústrias têxteis, como no Vale do Paraiba), e também nas demais capitais do país .
Até os anos 30, a provisão habitacional para as classes populares foi garantida pela iniciativa privada, seja através das vilas operárias de empresas – em especial no caso de indústrias que se estabeleciam no interior do Estado de São Paulo, em locais isolados – seja através da moradia de aluguel, que se limitava em sua maior parte à construção de cortiços ou de vilas de baixo padrão. As vilas, uma forma de produção estimulada pelo poder público com incentivos fiscais por ser uma solução de disciplinamento e higienização, eram em São Paulo e no Rio um empreendimento interessante para investidores imobiliários que iam desde comerciantes mais abonados até grandes fortunas do café (Bonduki, 1996:46). Entretanto, só conseguiam ter acesso a essas moradias os operários qualificados, funcionários públicos, comerciantes, enfim, segmentos da baixa classe média, e não a população mais pobre. Para esta, restavam os cortiços, investimento também muito interessante para os proprietários, pelo baixo custo de sua construção, e que apesar de serem combatidos em nome da saúde pública, se proliferaram de forma significativa, mostrando que a demanda por soluções de habitação de baixa renda começava a ser considerável. Quando os cortiços se tornavam obstáculos para as iniciativas de renovação urbana conduzidas para áreas mais nobres da cidade, eram demolidos e a “massa sobrante” obrigada a se deslocar para as áreas menos valorizadas pelo mercado (Villaça,1986).
O urbano e a moradia no período populista
A era Vargas, a partir de 1930, instituiu no pais um novo clima político, e a emergência na Europa do Estado do Bem-Estar Social dá ímpeto à tentativa, no Brasil, de construção de uma nação com um Estado forte e um mercado de consumo interno mais significativo. O Estado passou então a intervir diretamente na promoção da industrialização, através de subsídios à indústria de bens de capital, do aço, do petróleo, à construção de rodovias, etc. A burguesia agroexportadora perdia sua hegemonia, para dar lugar a um Estado populista que, entretanto, pouparia seus interesses, evitando uma reforma agrária e mantendo intacta a base fundiária do país. Ermínia Maricato resume com precisão as características do período:
“O Estado mantém uma postura ambígua entre os interesses da burguesia agrária e os da burguesia industrial. ... A essência do populismo consistirá em reconhecer a questão social, mas dando a ela um tratamento paternalista e simbólico, que nega a auto-organização dos trabalhadores. A oposição e as lideranças operárias são esmagadas, mas a massa trabalhadora seria submetida a intensa propaganda do governo e das “benesses” que este lhe concede: instituição da Previdência, promulgação da CLT, fixação do salário mínimo” (Maricato, 1997:35).
Assim, esse período presenciou pela primeira vez os efeitos de uma crescente migração rural-urbana, de uma importante massa vinda do Nordeste para o Sul em busca dos sonhados empregos industriais. Embora esse processo fosse realmente intensificar-se somente algumas décadas depois, nos anos 50/60, o fato é que tal dinâmica elevou o problema da provisão habitacional para a massa operária a patamares em que o mercado não tinha mais condições de – ou sobretudo interesse em – enfrentar. Por isso, no âmbito da provisão habitacional, a lógica populista se repetiria: o período Vargas ficou marcado por introduzir pela primeira vez políticas habitacionais públicas, reconhecendo (ou cedendo às pressões para reconhecer) que o mercado privado não tinha como atender à demanda por moradia e anunciando que o Estado assumiria tal função. Mas, como era característico do populismo, retirou-se do mercado privado a responsabilidade pela questão habitacional, sem que houvesse, entretanto, uma política pública de fôlego, que realmente respondesse à demanda que se criava. Como mostra Maricato, os Institutos de Aposentadorias e Pensões, criados na década de 30 e até hoje uma referência na história da habitação social no Brasil , entre 1937 e 1964, iriam produzir apenas 140 mil moradias em grande parte destinadas ao aluguel, o que, segunda a autora, mostraria “muita publicidade para uma resposta modesta dos programas públicos de habitação”.
A Lei do Inquilinato de Vargas, que congelaria os aluguéis em 1942, apenas intensificou a segregação urbana dos pobres nos loteamentos de periferia, pois estimulou a propriedade privada do imóvel urbano, no lugar do aluguel, restringindo ainda mais o acesso à habitação (Bonduki, 1998). Com a oferta de moradia de aluguel declinando, e sem que o Estado suprisse a consequente demanda por habitações, restava à população pobre uma solução que, na prática, “liberava” tanto o Estado quanto o mercado da responsabilidade pela questão da moradia: a ocupação pura e simples das terras, ou o loteamento das periferias, estimulado pela chegada do transporte público sobre rodas, que garantia o necessário acesso, mesmo que precário, aos loteamentos mais distantes, que sequer recebiam a infraestrutura urbana necessária (Maricato, 1997:36). Estava começando a delinear-se o que seria a matriz do crescimento urbano no Brasil a partir de então.
A “urbanização com baixos salários”
A mudança para um novo paradigma econômico, o da abertura ao capital internacional promovida nos anos 50 por Juscelino Kubitschek, que alguns grandes intérpretes da formação da nação consideram como o momento de negação definitiva da possibilidade de construção de uma economia capitalista minimamente autônoma e distributiva , iria exacerbar de vez a situação de extrema desigualdade no acesso à terra urbana. A partir desse momento, graças ao fenomenal impulso promovido pela chegada das multinacionais, a industrialização brasileira sofreu uma inflexão significativa, garantindo o “milagre econômico” e a ascensão do país, em pouco mais de uma década, à condição de oitava economia do mundo. Mas esse modelo de intenso crescimento sofria de um duplo problema: por um lado, estabelecia um padrão congênito de atraso tecnológico, pois as indústrias traziam para cá tecnologias já obsoletas em seus países de origem, e por outro lado estava condicionado a um padrão de alta concentração da renda, já que se baseava na manutenção de uma mão-de-obra de baixo custo, necessariamente sub-assalariada.
Vale notar que a entrada do capital estrangeiro no país a partir do Plano de Metas, a que Francisco de Oliveira chamou de “a fraude e traição mais notável à vontade popular de que se tem notícia no Brasil moderno” (Oliveira, 1977:73), deu-se em um contexto muito específico do desenvolvimento do capitalismo internacional caracterizado pelo interesse das empresas multinacionais, nas palavras de Plínio Sampaio Jr., “em aproveitar as oportunidades de investimento geradas pelo processo de substituição de importações mediante o deslocamento de unidades produtivas” (2000:37). Essas oportunidades de investimento que apareciam em uma economia periférica em fase de industrialização (aliás, em vários países subdesenvolvidos, e não só no Brasil) significavam um cenário perfeito para a economia capitalista em plena expansão. De fato, após a crise de 29, as políticas keynesianas norte-americanas de maior intervencionismo estatal, com o New Deal do presidente Roosvelt, e já no pós-guerra as políticas de implantação do Estado do Bem-Estar Social na Europa, representavam uma resposta ao liberalismo econômico, e uma tentativa de regular, pela mediação do Estado, os interesses do Capital e do Trabalho, não por razões filantrópicas ou humanitárias, mas porque se percebia que era necessário manter um padrão mínimo de poder aquisitivo da classe operária para que pudesse ocorrer a expansão do mercado de consumo, imprescindível para a própria sobrevida do sistema . Nesse período, instituíram-se nos EUA e na Europa, não só todas as leis trabalhistas e a garantia de serviços universais de educação e saúde, mas também políticas habitacionais de peso, que incorporaram a moradia aos custos básicos de subsistência da classe trabalhadora .
Entretanto, não só o Estado do Bem-Estar Social custava caro, como ele limitava sobremaneira a possibilidade de realização da mais-valia, ao aumentar significativamente os custos de reprodução da classe trabalhadora e diminuir as taxas de lucratividade. Nesse sentido, os países subdesenvolvidos, como o Brasil, em fase de expansão industrial, representavam uma fantástica oportunidade de investimentos, em função do inesgotável exército industrial de reserva que representava a população agrária pobre do nordeste, disponível para migrar paras as cidades industriais em busca de emprego, mesmo que por salários baixíssimos. A associação do interesse industrializante das burguesias mais modernas no Brasil, e dos interesses de expansão do capitalismo internacional provocaria o que Florestan Fernandes indicou como a renúncia das burguesias nacionais em fortalecer a revolução burguesa e a implantação de um sistema capitalista endógeno focado na consolidação de um mercado interno. Optando por aliar-se aos interesses expansionistas do capitalismo internacional, mesmo que “às custas do reforço de seu caráter antissocial, antinacional e antidemocrático” (Sampaio Jr., 2000:418), as burguesias nacionais escolhiam um caminho que garantiria uma rápida industrialização, preservando seu poder de barganha no sistema capitalista mundial e reforçando sua absoluta e intolerante dominação interna.
Assim, com a vinda das indústrias multinacionais para o país, estabelece-se um padrão de crescimento em que os baixos salários não eram apenas uma consequência da injustiça inerente aos sistema capitalista, mas a própria condição para nossa industrialização, no que alguns autores chamaram de “industrialização com baixos salários”. O mercado interno que se formava era apenas residual, o foco da atuação das multinacionais aqui instaladas sendo antes de tudo a exportação. Como o interesse destas era o de explorar a mão-de-obra barata, e o da elite brasileira, o de perpetuar sua hegemonia interna, utilizando-se para isso do seu controle sobre o próprio Estado, passa a ser lógico o fato deste último não criar exigências que aumentassem o custo de reprodução da força de trabalho, entre elas a de instalação de infraestrutura urbana e de moradia. Com a intensificação da migração rural-urbana em patamares nunca antes vistos, já que além de tudo a ausência de uma reforma agrária tornara a sobrevida dos pequenos agricultores impossível, estourava a demanda habitacional, e cresciam de forma inexorável os bairros periféricos de baixa-renda, literalmente “abandonados” pelo Estado. Se em 1940 a população urbana no Brasil era de apenas 26,34% do total, em 1980 ela já era de 68,86%, para chegar em 81,20% no ano 2000. Em dez anos, de 1970 a 1980, as cidades com mais de um milhão de habitantes dobraram, passando de cinco para dez . À “industrialização com baixos salários” se acoplava, nos termos da urbanista Ermínia Maricato, uma “urbanização com baixos salários”.
Ou seja, ao contrário do que ocorreu na formação dos Estados do Bem-Estar Social nos países centrais, o processo de concentração populacional nos grandes centros industriais brasileiros não foi acompanhado por uma ação do Estado que garantisse condições mínimas de infraestrutura urbana e qualidade de vida, pois isso resultaria, em última instância, na elevação do custo de reprodução da classe trabalhadora, o que não interessava às classes dominantes industriais. Francisco de Oliveira, em recente trabalho , lembra como o incentivo à autoconstrução (através da pouca presença do Estado, que deixou a cidade periférica crescer sem controle algum) foi uma fórmula capaz de assegurar uma morada mínima para a classe trabalhadora a preços baixíssimos, sem elevar o custo da mão-de-obra.
O exemplo de São Miguel Paulista, na cidade de São Paulo, é sintomático desse processo, embora tenha se dado ainda antes da abertura da economia na década de 50, como em uma pré-estreia do que se tornaria um padrão: na década de 30, dois importantes industriais brasileiros firmaram uma joint-venture com um industrial norte-americano, para remontar no Brasil uma fábrica petroquímica de fios rayon, já obsoletos nos EUA, onde se dominava a tecnologia subsequente, do nylon. A tal fábrica, reconstruída em São Miguel Paulista, então um bairro ainda semirrural da periferia paulistana mais distante, tornou-se instantaneamente a mais moderna indústria petroquímica do país, com o nome de Nitroquímica. Em dois anos, a população do bairro quadruplicou, sem o menor acompanhamento do Estado. As favelas que surgiram na época, há sessenta anos atrás, até hoje caracterizam o bairro.
Tal situação de abandono da população trabalhadora mais pobre nas franjas periféricas das grandes cidades só iria desencadear alguma reação quando estivesse ameaçada a própria coesão social. No regime militar, face à tal cenário, o Estado passaria a promover deliberadamente soluções habitacionais de baixo custo nas periferias. Como argumentou a então deputada Sandra Cavalcanti em carta ao presidente Castello Branco,
“...achamos que a revolução vai necessitar agir vigorosamente junto às massas. Elas estão órfãs e magoadas, de modo que nós vamos ter que nos esforçar para devolver a elas uma certa alegria. Penso que as soluções de moradia, pelo menos nos grandes centros, atuará de forma amenizadora...” (apud Villaça, 1986).
Assim, o período pós-64 inaugurou uma nova fase de intervenção estatal na habitação, criando o Banco Nacional de Habitação – BNH, que atuava como o banco central do Sistema Financeiro de Habitação, que por sua vez geria a poupança compulsória do FGTS (8% dos salários do mercado formal) e a do SBPE, esta uma poupança voluntária, ambas destinadas ao financiamento habitacional. Em função disso, foi no regime militar, paradoxalmente, que mais se produziu habitações populares no Brasil, cerca de quatro milhões de unidades .
Porém, o modelo do SFH/BNH, mais do que promover políticas públicas de universalização do direito à habitação, tinha como objetivo central a acumulação privada de setores da economia envolvidos com a produção habitacional, como as grandes empreiteiras, no bojo dos esforços para alavancar o chamado milagre brasileiro. O uso dessa significativa poupança para o financiamento habitacional, saneamento e infraestrutura urbana proporcionou mudanças importantes nas nossas cidades, porém proporcionalmente muito mais significativas nas faixas de população de renda média ou alta: os centros verticalizaram-se, gerando a valorização especulativa da terra urbana, a produção imobiliária para a classe média foi dinamizada, grandes empresas de obras públicas de infraestrutura foram beneficiadas. No campo específico da habitação social, a formatação institucional do SFH/BNH acabou por favorecer somente a construção de unidades habitacionais sem o necessário conjunto de equipamentos e melhorias urbanas. Com o discurso populista do acesso à “casa própria”, o número de unidades produzidas – e não a qualidade de vida que propiciavam – era o único índice de eficiência do modelo. Isso gerou grandes conjuntos-dormitórios, distantes das áreas centrais e da oferta de emprego, geralmente mal servidos pelo transporte público e sem quase nenhuma infraestrutura nem serviços urbanos. Além disso, os financiamentos do sistema nunca conseguiram beneficiar a população realmente pobre, com renda abaixo de 5 salários-mínimos, e a distribuição das habitações tomou-se um instrumento do clientelismo, favorecendo a generalização da inadimplência no setor habitacional de interesse social
Por outro lado, a submissão da terra urbana ao capital imobiliário fazia com que enquanto as periferias das grandes cidades expandiam seus limites e abrigavam o enorme contingente populacional de imigrantes, o mercado formal se restringia a uma parcela da cidade e deixava em seu interior grande quantidade de terrenos vazios. Kowarick e Campanário mostram que em 1976, a terra retida para fins especulativos no município de São Paulo atingia 43% da área disponível para edificação. Somente em 1980 as áreas periféricas da cidade aumentaram em 480 km², permanecendo desprovidas dos serviços urbanos essenciais à reprodução da força de trabalho. Nos dias atuais, uma pesquisa recente do Centro de Estudos da Metrópole, do CEBRAP, mostrou que a periferia paulistana ainda cresce por ano seis vezes mais do que a área central.
Ou seja, ao lado dos grandes conjuntos, a solução da ocupação pura e simples de glebas vazias e os loteamentos clandestinos continuava – e continua até hoje – a responder à maior parte da demanda habitacional dos excluídos do sistema. Com o tempo e o esgotamento dessas terras, restou à população mais pobre ocupar as únicas áreas onde estariam à salvo da ação do mercado: as áreas de proteção ambiental, como as beiras de córregos, os mananciais e as encostas. Em São Paulo, por exemplo, cerca de 1,2 milhão de pessoas vivem hoje nos mananciais das represas Billings e Guarapiranga.
Os movimentos populares de luta pela moradia, a constituição de 88 e o Estatuto da Cidade
Face ao inquietante quadro exposto até aqui, é fácil entender que as desigualdades decorrentes dos processos de industrialização e de urbanização acabaram gerando insatisfações sociais significativas, que já haviam sido premeditadas por Sandra Cavalcanti. Já em 1963, o Seminário Nacional de Habitação e Reforma Urbana tentou refletir parâmetros para balizar o crescimento das cidades que começava a se delinear. A ditadura militar desmontou a mobilização da sociedade civil em torno das grandes reformas sociais, inclusive a urbana, substituindo-a por um planejamento urbano centralizador e tecnocrático.
Nos anos 70, os excluídos do “milagre brasileiro” começam a mobilizar-se novamente em torno da questão urbana, reivindicando a regularização dos loteamentos clandestinos, a construção de equipamentos de educação e saúde, a implantação de infraestrutura nas favelas, etc. Uma primeira vitória ocorreria em 1979, com a aprovação da Lei 6766, regulando o parcelamento do solo e criminalizando o loteador irregular. Na Constituinte de 1988, 130.000 eleitores subscrevem a Emenda Constitucional de Iniciativa Popular pela Reforma Urbana, e com isso conseguiram inserir na Constituição os artigos 182 e 183, que estabeleciam alguns instrumentos para o controle público da produção do espaço urbano e introduziam o princípio da chamada “função social da propriedade urbana”: imóveis situados na chamada “cidade formal” geralmente se beneficiam de infraestrutura urbana (esgoto, água, luz, asfalto, etc.) custeada pelo poder público e, portanto, por toda a sociedade; mantê-los vazios, a prática recorrente dos especuladores, representa um alto custo social, assim exercer a função social da propriedade não é nada além de dar-lhes uso. Porém, a regulamentação desses artigos só viria a ocorrer 11 anos depois, com a aprovação definitiva do capítulo da reforma urbana da nossa constituição, em uma tramitação que contou com a pressão constante do Fórum Nacional de Reforma Urbana, e que culminou com a aprovação da Lei 10.257, o Estatuto da Cidade, em julho de 2001.
A ideia de “instrumentos urbanísticos” capazes de dar ao Poder Público um maior controle sobre as dinâmicas urbanas originou-se no esforço de construção do Estado do Bem-Estar Social na Europa, onde o Estado tinha, como já comentamos, um forte papel regulador. A idéia era a de que cabia ao Poder Público uma forte ingerência na regulamentação e no controle do desenvolvimento urbano, para garantir uma mínima variedade social na produção urbana, buscando prover habitação de interesse social integrada à malha urbana, para proteger antigos moradores mais pobres dos processos decorrentes da valorização imobiliária, que os expulsam e substituem por moradores de maior renda (a chamada gentrificação), para permitir a preservação dos espaços públicos como espaços de uso democrático, protegendo-os da ação invasiva da iniciativa privada, e para promover usos habitacionais sociais no mercado imobiliário privado através de ações de indução e incentivo. Vale notar que essa tradição não conseguiu impedir, nem naqueles países, processos marcantes de exclusão social e de gentrificação, capitaneados pelas forças do mercado. Mas é inegável que, apesar disso, há na Europa e até mesmo nos EUA uma cultura política de respeito ao papel importante do Estado no controle urbano.
Para dar ao Estado a capacidade de exercer tal função, uma variedade de instrumentos jurídicos e financeiros foram criados. Por um lado, deu-se ao Estado um poder regulador significativo sobre o uso e a ocupação do solo, estabelecendo-se restrições de uso, parâmetros de adensamento, limites à verticalização, taxas de ocupação, punições efetivas para o descumprimento das leis urbanísticas, etc. Por outro lado, criou-se uma estrutura financeira – evidentemente apoiada na incomparável disponibilidade de recursos que aqueles países dispunham e dispõem – e uma gama de isenções para incentivar, através de linhas de crédito e renúncias tributárias específicas, determinadas ações dos agentes privados, como por exemplo a recuperação e manutenção de edifícios antigos nas áreas centrais, sua reconversão para locação social privada, ou ainda a fixação da população mais pobre em seus locais de residência, graças a auxílios financeiros diretos.
Pois bem, é nessa mesma lógica que, no Brasil, os defensores da Reforma Urbana se mobilizaram para garantir a aprovação, na Constituição e posteriormente no Estatuto da Cidade, de instrumentos que permitissem dar às prefeituras um instrumental para exercer algum controle sobre as dinâmicas de produção da cidade. Esse é o princípio, em suma, dos chamados “instrumentos urbanísticos” apresentados no Estatuto da Cidade.
Note-se, entretanto, a profunda diferença estrutural entre as realidades dos países industrializados e a brasileira. Enquanto lá os instrumentos urbanísticos surgem no pós-guerra, concomitantemente à estruturação do Estado do bem-estar social, no Brasil os instrumentos urbanísticos aparecem como uma tentativa de reação face a um modelo de sociedade e de cidade estruturalmente organizadas de forma propositalmente desigual, o que muda completamente seu potencial e seu possível alcance. Aqui, trata-se de reverter a posteriori um processo histórico-estrutural de segregação espacial, o que significaria, em essência, dar ao Estado a capacidade de enfrentar os privilégios urbanos adquiridos pelas classes dominantes ao longo de sua hegemônica atuação histórica de 500 anos. Não se trata, pois, de tarefa simples. E desde já percebe-se que tais instrumentos só poderão ter alguma eficácia se houver, ao mesmo tempo em que são criados, uma vontade política muito determinada no sentido de promover a reversão do quadro de desigualdade urbana em que vivemos, enfrentando portanto os poderosos interesses que hegemonizam hoje a produção do espaço urbano. Sem essa vontade política, que implica em políticas de governo claramente dispostas a enfrentar os privilégios das classes dominantes, os instrumentos urbanísticos podem servir apenas como uma maquiagem demagógica, sem muito poder para mudar o quadro urbano brasileiro. Vale notar que a briga é longa, e até agora, tem sido difícil.
O atual contexto da “globalização” e sua influência nas cidades
É importante observar que a instituição de instrumentos urbanísticos que dêem maior poder de controle para o Estado estão na contramão da tendência neoliberal de absoluta minimização do papel do Estado, que se institucionalizou no Brasil a partir da década de 90, no bojo das reformas preconizadas – e seguidas à risca pelo governo FHC – pelo chamado “Consenso de Washington” . Nesse sentido, aliás, vale comentar que os tão propagandeados “novos paradigmas” da economia globalizada deste começo de século não trouxeram nenhuma mudança significativa no quadro estrutural de exclusão social no Brasil, e ainda menos no âmbito da segregação espacial urbana. Ao contrário, sabe-se hoje que os anos de políticas macroeconômicas neoliberais de estabilização monetária por meio de instrumentos cambiais apenas exacerbaram a dependência externa e a desigualdade interna, e vêm sendo responsáveis pela camisa-de-força na qual o Brasil se encontra quanto à enorme dificuldade para enfrentar sues problemas sociais. Nos anos 70, as burguesias nacionais reforçaram sua hegemonia interna por meio da aliança com os interesses de expansão do capitalismo internacional, acirrando a dependência do país, mas promovendo a rápida industrialização já comentada anteriormente. Esse crescimento econômico do “milagre brasileiro”, permitiu sustentar o que Florestan Fernandes chamou do “mito do crescimento”, que legitimava o papel das burguesias e escamoteava uma economia que, na verdade, era a que menos distribuía suas riquezas no mundo . Hoje, a “globalização” parece reavivar o mito: vende-se a nossa suposta “entrada” no mundo global, alimentada pelo perverso apelo do consumo e o acesso aos importados, enquanto que a economia do país é tomada pos empresas transnacionais, e se exacerba a pobreza generalizada. Em suma, uma modernidade que ainda não superou os desequilíbrios herdados do Brasil colonial.
Assim, também no âmbito das cidades, o discurso da “globalização” serve para vender uma imagem supostamente “necessária” de modernização, enquanto que na verdade se acentuam ainda mais os desequilíbrios na alocação dos investimentos públicos urbanos, gerando diferenciações e valorização fundiárias ainda mais abruptas. A desculpa da necessidade de “inserção na economia global” vem sendo usada para construir centros de negócios, avenidas ultramodernas, verdadeiras “ilhas de Primeiro Mundo” em meio ao mar de pobreza das nossas cidades, e isso, evidentemente, com o farto uso do dinheiro público. Em trabalho recente , mostramos como, por exemplo, a propalada “centralidade terciária globalizada” da região da Marginal Pinheiros em São Paulo – um cartão-postal de “modernidade urbana” – foi construída na década de 90 com cerca de 4 bilhões de Reais públicos, enquanto que a dinamização econômica gerada por essa região nunca mostrou-se significativa, e nem mesmo as supostas conexões com a “economia global”. Em suma, assim como nos planos urbanísticos do começo do século passado, as novas avenidas e túneis, os trens com ar condicionado e as demais obras públicas na região serviram, no final, para um único objetivo: promover a valorização fundiária que interessa ao mercado imobiliário e ás classes dominantes.
O interessante é que um dos principais instrumentos que permitiram a construção dessas “ilhas de primeiro-mundo” financiadas pelo dinheiro público, foram as chamadas “Operações Urbanas”, que estabelecem parcerias público-privadas urbanas, e que também estão pospostas no.....Estatuto da Cidade! Ou seja, nas duras negociações para sua aprovação, o Estatuto acabou dando margem também à aprovação de instrumentos que podem servir para alavancar interesses privados. No caso, as Operações Urbanas, pelo menos até agora, submeteram o planejamento urbano das cidades onde foram implantadas aos interesses do mercado. Evidentemente, os significativos fundos destinados ás “ilhas de primeiro mundo” poderiam ter tido destinos mais urgentes, como a provisão de saneamento básico ou outras melhorias nas periferias. O contexto da “globalização” pouco alterou, como se vê, o permanente exercício de hegemonia das classes dominantes sobre a propriedade urbana, até mesmo nas inserções que estas lograram ter em projetos supostamente destinados à democratização do acesso à terra urbana, como o Estatuto da Cidade.
Os instrumentos progressistas do Estatuto da Cidade
Nesse contexto antagônico dos tempos da “globalização”, a maioria dos instrumentos de indução do desenvolvimento urbano e tributários aprovados no Estatuto da Cidade tentam assim mesmo estabelecer, no cenário brasileiro, uma perspectiva de uma nova presença do Estado na regulamentação, indução e controle dos processos de produção da cidade, mesmo que esse seja, como vimos, um desafio e tanto. Tais instrumentos visam, em essência, refrear o processo especulativo e regular o preço da terra, ao forçar o exercício da função social da propriedade urbana punindo o "mau proprietário". Buscam também permitir um maior controle do Estado sobre usos e ocupações do solo urbano, em especial em áreas que demandem uma maior democratização. Alguns exemplos são as Zonas Especiais de Interesse Social, que permitem a definição de um padrão urbanístico próprio, com tratamentos diferenciados tanto em áreas de favelas ou loteamentos que demandem urbanização, como em áreas vazias sujeitas à provisão de moradia de interesse social, ou ainda terrenos ou imóveis subutilizados em áreas com infraestrutura urbana, geralmente nas áreas centrais. Este último aspecto se destaca quando confrontado ao esvaziamento das áreas centrais nas grandes e médias cidades, que provoca um aumento de terrenos não-utilizados especialmente propícios à Reforma Urbana e à provisão habitacional de interesse social. Outro exemplo é o do usucapião urbano, que permite dar a propriedade a moradores de favelas ou cortiços que ocupem esses imóveis, sem contestação jurídica, por mais de 5 anos. A concessão especial de uso para fins de moradia, aprovada por Medida Provisória complementar ao Estatuto, permite a poder público conceder o direito de uso habitacional em áreas públicas ocupadas. O IPTU progressivo, como um último exemplo, permite que se puna o proprietário que deixa seu imóvel ou terreno vazio por mais de sete anos com um aumento progressivo de imposto, que pode culminar com a desapropriação do imóvel.
A Constituição de 1988 obrigou todo município com mais de 20.000 habitantes a ter um plano diretor. Embora fosse um instrumento urbanístico antigo, tal fato o reinseriu na agenda política urbana, ainda mais quando o Estatuto da Cidade, em 2001, determinou que as cidades que ainda não têm plano o produzam em 5 anos. O Estatuto dá uma importância significativa aos Planos Diretores, ao determinar que seja neles que se faça a regulamentação dos instrumentos urbanísticos propostos. Esse fato tem consequências positivas e negativas. Positivas porque joga para a esfera municipal a mediação do conflito entre o direito privado e o interesse público, e isso é bom pois permite as necessárias diferenciações entre realidade municipais completamente diversas no país. Além disso, garante que a discussão da questão urbana no nível municipal torne-se mais próxima do cidadão, podendo ser mais eficientemente participativa. Porém, o aspecto negativo é que, ao jogar a regulamentação dos instrumentos para uma negociação posterior no âmbito dos Planos Diretores, estabelece-se uma nova disputa essencialmente política no nível municipal, e conforme os rumos que ela tome, esses instrumentos podem ser mais ou menos efetivados. Em alguns casos, até, ocorreu que o próprio texto do Plano Diretor, ao propor os novos instrumentos do Estatuto, relegasse sua regulamentação local para mais uma etapa ainda ulterior, estendendo além do razoável seu prazo de efetivação.
A tradição urbanística brasileira, como visto calcada em um Estado estruturado para ratificar a hegemonia das classes dominantes, sempre tratou os planos diretores por um viés tecnicista que os tornavam herméticos à compreensão do cidadão comum, mas eficientes em seu objetivo político de engessar as cidades nos moldes que interessavam às elites, muito embora grande número de urbanistas tenham se esforçado, na década de 70 e apesar do regime vigente, em torná-los mais eficientes. Mas, por exemplo nas grandes capitais, infelizmente marcaram história os calhamaços técnicos nada democráticos, que serviram mais para fins eleitorais, para estabelecer uma rígida regulamentação nos bairros ricos, ou ainda para priorizar a construção de mais e mais avenidas (em detrimento dos transportes públicos), enchendo os bolsos de políticos inescrupulosos e dos especuladores imobiliários. Em compensação, os Planos Diretores pouco fizeram para a enorme parte da população excluída da chamada “cidade formal”. Na prática, os planos se distanciaram da realidade urbana periférica, e não impediram a fragmentação das políticas públicas urbanas. É por isso, aliás, que hoje vêm sendo pesquisadas novas metodologias de planejamento, mais próximas da realidade e da gestão locais, mais abertas à participação dos agentes sociais dos bairros, e promotoras de uma reintegração transversal das políticas setoriais, como os Planos de Ação Habitacionais e Urbanos propostos recentemente pelo Laboratório de Habitação e Assentamentos Humanos (LabHab) da FAUUSP.
Mas isso não impede, obviamente, que hoje os planos diretores possam ser um instrumento para inverter a injusta lógica das nossas cidades, desde que incorporem e efetivem a implantação dos instrumentos urbanísticos do Estatuto da Cidade. Mas, para isso, não devem ser um ementário de tecnicismos, mas um acordo de toda a sociedade para nortear seu crescimento, reconhecendo e incorporando em sua elaboração todas as disputas e conflitos que nela existem. Só assim, surgido de um amplo e demorado processo participativo, que não fique sujeito à apressada agenda político-eleitoral dos governantes de turno (em que a "governabilidade" e a busca pela reeleição passam por cima dos fins públicos que se deseja das políticas públicas), o Plano Diretor e os instrumentos do Estatuto da Cidade podem eventualmente tornar-se um ponto de partida institucional para que se expressem todas as forças que efetivamente constroem a cidade. Se toda a população – inclusive as classes menos favorecidas – apreender o significado transformador do plano e do Estatuto da Cidade, e conseguir aprovar sua efetiva implementação no âmbito municipal, cobrará sua aprovação e fiscalizará sua aplicação, em uma oportunidade para conhecer melhor seu território e disputar legitimamente seus espaços.
Infelizmente, ainda hoje planos diretores continuam resultando muitas vezes de uma apressada montagem em gabinetes, visando apenas transformá-los, o mais rápido possível, em fatos políticos. E os instrumentos do Estatuto da Cidade vêm sendo muitas vezes esquecidos nos Planos Diretores, ou mesmo são aplicados sem o necessário cuidado, fragilizando muito seu potencial transformador. Recentemente, em São Paulo, foi lançado pela prefeitura um concurso de urbanização para uma área central de cerca de um milhão de m² – de propriedade privada e mantida vazia há anos –, sem que se exigisse dos participantes uma provisão mais significativa de habitações de interesse social. O edital do concurso pedia que apenas cerca de 7% das habitações propostas fossem destinadas ás classes menos favorecidas. Em um quadro em que a exclusão ao acesso á terra urbana é estrutural, e em que cabe aos municípios, seguindo os preceitos do Estatuto da Cidade, punir a especulação e obrigar o reequilíbrio social, esperava-se uma aplicação mais drástica da exigência da função social da propriedade urbana. Ainda assim, mais uma vez o que se promoveu foi um projeto de urbanização que, às custas de investimentos públicos, acabará mais uma vez provocando, para a felicidade dos proprietários que mantinham a área vazia, a valorização fundiária e o surgimento de um bairro de classe média-alta. Por isso, vê-se que a eficácia do Estatuto da Cidade e de seus instrumentos é hoje ainda uma incógnita, que faz muitos urbanistas temerem que se trate, mais uma vez, de regras que ficarão no papel e pouco contribuirão para uma reversão efetiva da desigualdade estrutural no acesso á terra e no direito à cidade no Brasil. Se o Estatuto da Cidade servir apenas para as discussões acadêmicas dos urbanistas, mas não for efetivamente utilizado pelos municípios, corremos o risco de, mais uma vez, termos uma lei que não sairá do papel, mantendo-se o estrutural desequilíbrio no acesso ao solo urbano. Além do mais, é inegável que tanto os planos diretores quanto os outros instrumentos do Estatuto da Cidade não podem ter, e nunca terão, o poder de condão de provocar por si só a reviravolta estrutural muito mais profunda que o Brasil necessita, que não se resume obviamente à tecnicismos urbanísticos, mas depende de uma revolução política nas formas de estruturação da nossa sociedade e do nosso sistema econômico. É, mais uma vez, o cruel dilema que se coloca hoje no campo ideológico progressista: estamos, com tais esforços jurídico-urbanísticos, com toda a mobilização política pela efetivação nos municípios de Planos Diretores que incorporem o Estatuto da Cidade, reforçando um “status quo” que pouco afetará as relações de poder na produção das cidades e na hegemonia intolerante das nossas elites, ou promovendo reformas de fundo que, pouco a pouco, serão capazes efetivamente reverter a histórica exclusão socioespacial e promover a existência de cidades mais justas no nosso país? Só o tempo dirá.