Prefácio do livro “A batalha pelo centro de São Paulo: Santa Ifigênia, concessão urbanística e projeto nova luz”.
/de Felipe Francisco de Souza, São Paulo: Paulo´s Editora, 2011. ISBN 978-85-88246-18-8
Em nossa sofrida história, confundiu-se demasiada e reiteradamente “crescimento econômico” com “desenvolvimento”, e, mais uma vez, o discernimento necessário não está suficientemente no centro das atenções. Embora estejamos progredindo, com o festejado aumento da classe média, a chamada “classe C”, o Brasil ainda é um dos recordistas mundiais de desigualdade. Aliás, a lógica de nossa formação econômica e social – cujo símbolo principal é o “milagre econômico” dos anos 1970 – foi justamente a do crescimento econômico acelerado e, também, altamente concentrador de renda, o que gerou muitas desigualdades sociais.
Esse padrão de desenvolvimento, que muitos intérpretes da formação nacional chamaram de “modernização conservadora”, afasta-se da ideia de crescimento porque, nela, exatamente, pressupõe-se que as riquezas geradas pela economia sejam distribuídas para o conjunto da sociedade, em uma dinâmica de construção e fortalecimento da nação e de todos os cidadãos. No nosso modelo, a modernização não se dá em benefício do fim da pobreza e da desigualdade, e sim às custas delas, isto é, alimentando-se delas.
Tal matriz, claramente injusta, foi possível graças à estruturação de uma sociedade cindida, herdeira do pensamento colonial escravocrata, a partir do qual as elites exerceram – e ainda exercem – uma hegemonia política e econômica onipotente, sempre pronta a passar para trás os interesses coletivos da sociedade a fim de garantir os privilégios de seus interesses particulares. Florestan Fernandes (1975) mostrou como nossas elites, ao longo de nossa história – associando-se ao poder econômico, externo e hegemônico de cada momento histórico – reiteradamente, renunciaram ao desafio da formação da nação para consolidar, na defesa dos interesses de expansão do capitalismo internacional, seu poder interno por um viés antidemocrático e antinacional. Alimentaram, para tanto, o “mito da modernização”, legitimando junto à opinião pública os saltos modernizadores que aparentemente colocavam cada vez mais o país no “rumo certo” do desenvolvimento, quando, na verdade, aprofundavam a matriz desigual do subdesenvolvimento.
Para exercer-se o poder, estruturou-se o que Raymundo Faoro denominou de “Estado Patrimonialista”, originado no estamento colonial e por meio do qual a comunidade política “conduz, comanda e supervisiona os negócios, como negócios privados seus” (Faoro, 2011:819). Dessa maneira, construiu-se permanente e sempre alimentada confusão entre o que é público e o que é privado, transformando o Estado em um eficaz instrumento da defesa dos interesses “públicos” de alguns. Para tal, a sociedade, como explicava Faoro, compreende-se apenas “no âmbito de um aparelhamento a explorar, a manipular, e a tosquiar nos casos extremos” (id. ibidem).
Se essa análise parece referir-se a um país do passado, a verdade é que poucas vezes se viu o patrimonialismo atuando tão limpidamente quanto nos processos de retomada do Centro de São Paulo, por parte dos interesses do capital imobiliário, evidentemente amparados pelo Poder Público Municipal, elementos que Felipe Francisco de Souza retrata neste livro.
A contradição do momento atual é baseada no mesmo “mito da modernização”. O atual ciclo econômico virtuoso do Brasil alavanca um crescimento mais sólido em comparação a alguns países desenvolvidos, e fala-se cada vez mais do novo papel que “potências” ascendentes, como o Brasil, podem passar a ter no cenário econômico mundial. Porém, a confusão entre “crescimento econômico” e “desenvolvimento”, como sempre, nestas situações, ganha força e parecemos distantes do salto econômico com alteração significativa no equilíbrio de poder e na estrutura da desigualdade. Chico de Oliveira (2010) lembrou que, embora a pobreza absoluta no país venha lentamente diminuindo, ainda assim, a desigualdade se mantém, ou até piora, pois o próprio modelo ideal que se persegue – o de uma sociedade de consumo, no padrão dos mercados desenvolvidos – é intrinsecamente excludente e desigual.
O problema maior é que no âmbito urbano essa contradição ganha toda sua amplitude: enquanto o país comemora seu sucesso econômico, não percebe que esse sucesso alimenta uma urbanização semelhante a uma bomba social e ambiental, que já começa a explodir. O padrão da sociedade de consumo de massa, alcançado pelos países ditos desenvolvidos, é o do consumismo exacerbado e desnecessário, que tende a piorar, e não melhorar, as injustiças sociais e a degradação ambiental. O quadro urbano brasileiro é trágico: as grandes metrópoles têm em média quase metade de sua população vivendo em condições precárias, seja em favelas, seja em loteamentos irregulares, seja em cortiços ou até mesmo na rua. Os centros das cidades – objeto de disputa do capital imobiliário, como apontado neste livro – estão se esvaziando. Sobram imóveis desocupados, que não cumprem a função social da propriedade urbana, por mais que exista a Lei Federal do Estatuto da Cidade.
O avanço modernizador exacerba as tensões urbanas: as áreas de proteção ambiental estão tomadas por ocupações precárias de alta densidade habitacional, ou por condomínios de luxo que da mesma forma driblam a legislação. A porcentagem de domicílios sem saneamento ainda é significativa: até mesmo nas metrópoles, as enchentes e desmoronamentos matam milhares a cada estação das chuvas, e a irregularidade fundiária na cidade informal parece ser insolúvel. Em inúmeros centros urbanos: continuam os processos autoritários: de expulsão da população pobre para a periferia com, quase sempre, ações capitaneadas pelas prefeituras, em sintonia com o mercado, no âmbito do patrimonialismo.
Quanto mais cresce a economia: mais se acelera a verticalização extremada e descontrolada, que arrebenta bairros assobradados inteiros; mais se multiplicam os condomínios murados que renegam a rua e o espaço público; mais se reforça o predomínio absoluto do automóvel como matriz insustentável de transporte em detrimento do transporte público de massa; e mais se consolida a liberalidade absoluta na ocupação e no uso dos espaços urbanos, sempre privilegiando os segmentos de mais alta renda.
No atual cenário de otimismo, tão festejado, em que se dá pouca ou nenhuma atenção às questões supracitadas, o papel daquilo que é chamado, sisudamente, de “academia”, é muitas vezes pouco compreendido. Na euforia econômica, as pós-graduações e especializações, assim como a própria formação superior, são geralmente assemelhadas à necessidade de ampliar a capacitação profissional, como parte do esforço coletivo necessário ao “salto modernizador”. Quando se confunde “desenvolvimento” com “crescimento econômico”, tudo que ajude a uma melhor inserção econômica, individual, ou do próprio país no cenário do capitalismo globalizado, é visto como louvável. Assim, à universidade parece ter cabido o papel de “formar quadros” capazes de contribuir para esse novo momento econômico.
Tal papel é importante, sem dúvida. Porém, não deve ser o único. A universidade, como produtora do conhecimento científico, tem a função fundamental de desenvolver reflexão crítica. O urbanismo, como ciência social aplicada, mais do que nunca, deve buscar respostas aos impasses e às subjetividades que a cidade produz. As cidades são o reflexo espacial da sociedade, e reproduzem no território suas desigualdades e injustiças, em dinâmicas marcadas pela ideologia (Ferreira, 2007). Assim, cabe à academia e, no caso, aos urbanistas, o importante papel de descortinar, explicar, denunciar e interpretar os fenômenos urbanos, bem como suas contradições, seus impasses, entendendo as suas causas e apontando os caminhos para superá-los.
Isso não é fácil nos dias de hoje, e é preciso coragem para assumir tal papel, sobretudo em uma sociedade patrimonialista, em que a produção de conhecimento se vê muitas vezes subordinada ao pensamento dominante, o que faz sentido. Por isso, muito mais simples seria, sem dúvida, acomodar-se na reprodução desse pensamento, aquele que festeja o “sucesso econômico” sem mais questionamentos, aquele que defende a “cidade-global” paulistana como modelo a se perseguir, aquele que valoriza o impulso econômico, o “crescimento urbano” e o dinamismo do mercado, e que escamoteia a verdadeira tragédia que a metrópole de fato vivencia (Arantes, Maricato e Vainer, 2000; Ferreira, 2007).
Do grupo de acadêmicos que têm coragem de refletir criticamente e contra o mainstream dominante, faz parte Felipe Francisco de Souza. O Centro de São Paulo, que ele escolhe neste livro como um dos objetos de seu olhar preciso, é hoje o território de desejo das elites políticas, econômicas e imobiliárias da cidade de São Paulo. Sabe-se bem o porquê: o Centro foi devidamente abandonado por essas mesmas elites e desconsiderado dos investimentos públicos e privados por anos. De onde sua “degradação”, que hoje parece justificar tão bem o ímpeto da intervenção, foi fruto da consequência da falta de interesse, e de investimentos, por parte dos setores dominantes. Obviamente, o discurso da degradação acentuou-se à medida que os mais pobres ocuparam o Centro, seja pela facilidade de acesso, que favoreceu o comércio popular, afugentando os setores de alta renda antes ali instalados para novas paragens mais “nobres”; seja quando, já há décadas abandonado, passou a receber os miseráveis excluídos da sociedade.
Porém, desde a aprovação do Estatuto da Cidade, em 2001, o Centro passou a ter uma nova vocação possível: o de abrigar, graças a uma desejável reabilitação das centenas de edifícios abandonados, moradias de baixa renda, atendendo o significativo déficit habitacional da cidade. Vale lembrar que, pelo Estatuto, edifícios vazios são ilegais, pois não cumprem a sua função social. Em uma cidade em que falta moradia, é de fato incompreensível, além de ilegal, manter vazios prédios que se beneficiam de água, esgoto, luz, coleta de lixo e outros benefícios arcados pelo conjunto da sociedade, enquanto centenas de milhares de paulistanos não têm onde morar. É justamente com esse raciocínio que os movimentos de moradia iniciaram há alguns anos ações de ocupação desses prédios, transformando-os em habitações improvisadas, para denunciar tal injustiça e forçar a sua reconversão. A cidade é, antes de tudo, o espaço das disputas sociais.
Entretanto, na sociedade capitalista, e mais ainda na patrimonialista, a propriedade é sagrada, mais ainda do que o direito à moradia para todos. Mesmo que seja a propriedade de prédios vazios, sem uso, abandonados há décadas; mesmo que sejam prédios com milhões de reais em dívidas fiscais – ainda assim, o Judiciário raramente tarda mais do que algumas horas para determinar a reintegração de posse da propriedade vilipendiada –; mesmo que nos prédios ocupados estejam famílias, idosos e crianças que, de fato, não têm onde morar. Nada é mais sagrado, no Brasil, do que a propriedade imobiliária.
Claro que, na lógica do patrimonialismo, a eficácia da lei geralmente tende apenas para um lado. Nunca foram vistas, que se saiba, reintegrações de posse contra condomínios fechados de luxo que ocupam terras da União, ou contra centros de convenções estabelecidos indevidamente em terras municipais, ou, ainda, contra casarões que, estranhamente, tomaram para si fatias do maior parque público da cidade. Nesses casos, a lei iria contra a propriedade, mesmo sendo as ocupações ilegais. Coisas do urbanismo “à brasileira”, sem dúvida.
Ocorre que, desde que a economia brasileira entrou no seu atual ciclo virtuoso – a cidade passou a crescer cada vez mais para todos os lados, novos terrenos vazios para investimentos imobiliários arrefeceram e, como consequência, uma bolha especulativa lançou para o espaço os preços imobiliários da cidade –, o Centro de São Paulo, antes abandonado, voltou a seduzir o mercado imobiliário, como nos tempos de sua glória. Infelizmente, com o “inconveniente” da presença de alguns moradores pobres, “noias”, prostitutas, camelôs e sem-tetos, enfim, tantos paulistanos que fizeram do Centro seu espaço de vida, mas que não condizem mais com os esforços de recuperação da região, nos moldes pretendidos pelo capital imobiliário. Era de se esperar, portanto, que os setores dominantes fizessem aquilo que fosse possível para que o Centro pudesse “revitalizar” sua nobreza perdida.
Neste momento da discussão, entra em pauta outro objeto de estudo sobre o qual Felipe Francisco de Souza se debruçou. Aquele que os urbanistas chamam de “instrumentos urbanísticos”, e mais precisamente um deles, a chamada “concessão urbanística”. A expressão “instrumento urbanístico” refere-se ao conjunto de ações que o Poder Público está legalmente amparado a fazer para intervir nas dinâmicas urbanas e nas formas de uso e ocupação do solo, regulamentando e controlando, ou direcionando-as. Leis de zoneamento, planos diretores, incentivos fiscais, normas edilícias e cobranças tributárias são exemplos de instrumentos. Em resumo, os instrumentos urbanísticos seriam o ferramental de que o Poder Público disporia para exercer seu papel na determinação e no controle das dinâmicas urbanas.
Todavia, a eficácia de sua aplicação no Brasil enfrenta um difícil desafio. Os instrumentos urbanísticos surgiram e se consolidaram na Europa, especialmente a partir do Pós-Guerra, no âmbito do Welfare State, ou do Estado de Bem Estar Social. Quando se estruturava um Estado fortemente regulador, não só da economia – no auge do keynesianismo –, mas também das dinâmicas de ocupação e uso do solo urbano para consolidar um mercado de consumo de massa, os instrumentos serviram para incluir nas cidades um máximo possível de cidadãos, nesse caso, de consumidores em potencial.
Mesmo que isso hoje seja coisa do passado, com o atual desmonte arquitetado do Estado Providência por toda a Europa – nem falemos pelos Estados Unidos da América – e uma evidente liberalização da economia, que reduz o poder do Estado e aumenta a autonomia do capital, ainda assim, o ambiente nos quais os instrumentos urbanísticos surgiram e foram no início aplicados era, e ainda é, completamente diferente da realidade muito peculiar das cidades e da sociedade brasileira. No contexto do subdesenvolvimento, utilizar-se de instrumentos urbanísticos pressupõe uma sociedade com um mínimo de equilíbrio econômico e social. Pressupõe-se, principalmente, um Estado que tenha por objetivo a causa “pública” de fato, ou seja, a defesa dos interesses de todos, acima dos de alguns.
Ora, vimos que essa não é propriamente a característica do nosso Estado. No Brasil, embora técnicos da administração pública ou mesmo políticos se esforcem cada vez mais para resgatar – ou criar – esse sentido “público” do Estado, a verdade é que ainda lidamos com uma complexa máquina pública, cuja característica é a do patrimonialismo, ou seja, azeitada por séculos para funcionar em uma lógica oposta à do público “de todos”. Por isso, ainda é difícil enxergar os instrumentos urbanísticos do Estatuto da Cidade como uma espécie de repetição tardia dos mecanismos de controle urbano típicos do Estado de Bem-Estar Social, porque tal modelo político e econômico deu-se em outro momento e em outras condições históricas. Aqui, a promoção de uma economia, que não superou sua condição de dependência e subdesenvolvimento e que se alimenta de “saltos modernizadores”, passa pela manutenção da gritante desigualdade social, o que na cidade se reflete na permanência da exacerbada exclusão sócio-espacial. Nesse cenário, os instrumentos urbanísticos parecem ter ainda um longo caminho a percorrer, que passa, antes de tudo, por uma mudança na correlação de forças para que haja realmente chamada “vontade política” em utilizá-los.
A discussão de como tais instrumentos, retirados de seu contexto original, podem ou não se adaptar e servirem aos mesmos objetivos em uma realidade completamente diferente é, aliás, uma discussão central do urbanismo, e das ciências sociais em geral. Sob pena das “ideias fora do lugar” (Schwarz, 1981), essa transposição deve ser cuidadosa, para não correr o risco de ver um mesmo pensamento, transfigurado, servir a propósitos completamente diferentes – senão antagônicos – aos que o originaram. Aliás, o próprio Felipe aventurou-se por esse difícil caminho, tentando analisar, em obra anterior, como um instrumento urbanístico de sucesso no Japão, o do land readjustment, poderia ser, eventualmente, aplicado na realidade urbana brasileira.
Desta vez, o desafio dele talvez tenha sido maior, pois o objeto tratado, como já dito, está no centro das atenções do capital imobiliário e do próprio Estado. Por meio de planos, operações de desmonte, ações de desapropriações, propostas de urbanização pouco democráticas, construção de equipamentos projetados por estrelas da arquitetura mundial, e até mesmo uma nova linha de metrô que o conecta aos bairros mais nobres da cidade, o Centro vem recebendo, há uma década, toda a atenção possível do Mercado e do Estado.
Mercado e Estado que, aliás, vêm se associando cada vez mais, coerentes com nossa tradição, para promover o que chamei em outro texto de um “urbanismo de mercado” (Ferreira, 2010). O planejamento urbano modernista e funcionalista, que no Brasil serviu aos interesses do Estado autoritário, foi aos poucos rechaçado, devido à chegada da matriz econômica neoliberal da última década do século XX, por sua pouca “flexibilidade” face às dinâmicas do mercado. O planejamento que se buscou, a partir de então, deveria ser mais eficaz para integrar as cidades à lógica da economia financeirizada e globalizada, incorporando, inclusive, as áreas obsoletas e abandonadas de grande interesse imobiliário. Deixava-se a regulação estatal do espaço público para dar livre curso à ação dos empreendedores privados, sempre associados a festejados arquitetos de renome internacional, em grandes empreendimentos de “revitalização” de qualquer área remanescente que ainda se prestasse a uma intervenção. Com fortes investimentos públicos, muitas vezes legitimados por algum grande projeto esportivo ou cultural, tais propostas de intervenção têm a marca da “gentrificação”, a saber, a invariável expulsão dos moradores originais – geralmente pobres que aceitaram viver em áreas obsoletas e abandonadas – e sua substituição por moradores de um novo e mais alto perfil econômico.
No caso de São Paulo, dentre tantos artifícios para se “oferecer” ao mercado um novo Centro adequado aos negócios, encontrou-se mais um, agora travestido de instrumento urbanístico: a concessão urbanística, analisada em detalhe neste livro. Ela, talvez, na sua forma original, tivesse de fato uma intencionalidade “pública”, mas que foi tão bem trabalhada para os interesses dominantes, que hoje se tornou uma das maiores aberrações urbanísticas de que temos notícia. Por confissão, vale precisar, que faço coro e defendo a inconstitucionalidade do instrumento. Não consigo entender algo que possa ser legal ao transferir à iniciativa privada uma prerrogativa tão básica do Poder Público, a de promover desapropriações. Também não é aceitável um instrumento que sirva para dar ao mercado a iniciativa do projeto urbano, por meio de uma licitação. O planejamento do território, a ocupação democrática do espaço e o controle de seu uso devem ser ações públicas, pois afetam o espaço público. O que há de grave nesse aspecto é que o Estado tem legitimidade para isso porque é eleito para tal. Ninguém, em contrapartida, elegeu a empresa que, por critérios incertos, ganhou uma licitação que lhe permite dizer como será o Centro de São Paulo.
A história contada neste livro é uma história trágica. Ela escancara as facetas do patrimonialismo e as perversas lógicas de funcionamento de um Estado que há muito perdeu sequer a discrição para atuar em defesa de interesses particulares. Como um bom acadêmico, Felipe Francisco de Souza não se furtou a tirar as conclusões necessárias, mesmo que tenha pago um preço caro por isso, após dez anos dedicados aos trabalhos na Prefeitura. Porém, isso não o impediu de contribuir de maneira incisiva para um melhor conhecimento dos meandros da ação pública em nossa maior metrópole. Mostrou como uma política pública pode ser umartifício para gerar novas frentes de ação para o mercado imobiliário. Mostrou como o Estado pode fazer a política do “quanto pior, melhor” para garantir o atendimento de determinados interesses. Mostrou quão delicada e perigosa é a imiscuição exagerada dos interesses privados na coisa pública. Assim, aponta toda a utilidade, esta sim “pública”, do seu trabalho: a de evitar, pela denúncia embasada e amparada pelo rigor da pesquisa acadêmica, que um processo político “viciado” possa tornar-se um modelo para outras cidades brasileiras, que passem a usar a concessão urbanística como mais um instrumento de expulsão de populações de lugares com potencial de valorização imobiliária.
É por isso que este é um livro de leitura imprescindível para os urbanistas brasileiros preocupados com a reforma urbana, a reconstrução das nossas cidades em outros moldes e a perspectiva de termos, um dia, uma nova realidade urbana, socialmente justa e verdadeiramente democrática.