São Paulo: cidade da intolerância, ou o urbanismo “à brasileira”.
/Publicado na Revista do IEA – Estudos Avançados – Dossiê São Paulo - vol.25 no.71 São Paulo jan./abr. 2011 - ISSN 0103-4014
“... quase pretos, ou quase brancos quase pretos de tão pobres E pobres são como podres e todos sabem como se tratam os pretos...”
Caetano Veloso e Gilberto Gil, Haiti
A cidade é um espaço de conflitos. A civilização humana, em sua extraordinária capacidade de gerar sociedades desiguais, sempre produziu cidades igualmente injustas. A sua configuração, seu desenho, sua eficácia como abrigo e espaço de produção, sua capacidade em promover qualidade de vida para uns ou para todos, irão depender das dinâmicas sociais e econômicas e das correlações de forças de cada momento histórico. São Paulo, uma das cinco maiores metrópoles do mundo, expressa as disputas e conflitos da cidade capitalista, com o agravante de carregar também as contradições peculiares do subdesenvolvimento.
A produção do espaço urbano responde a uma lógica na qual se relacionam fundamentalmente o Estado, o mercado e a sociedade civil. A tensão existe no fato de que o mercado procura obter lucro por meio da valorização fundiária e imobiliária, enquanto que a sociedade civil interessa-se mais pelo valor de uso da terra urbana. Na cidade capitalista, tal tensão se exacerba, uma vez que a diferenciação de classes e a possibilidade de cada uma delas apropriar-se de áreas desigualmente valorizadas fazem com que a balança penda invariavelmente para o lado dos dominantes, que podem comprar terras nas áreas mais privilegiadas. Caberia ao Estado regulamentar o uso e a ocupação do solo, de tal forma a evitar tal desequilíbrio, restringir a supervalorização especulativa e garantir o acesso democrático à cidade a uma maior parcela da sociedade.
Ocorre que quem alavanca a valorização da terra e dos imóveis nas cidades capitalistas é, paradoxalmente, o próprio Estado. O que dá valor à terra urbana é sua localização, definida pela disponibilidade de infraestrutura (Villaça, 2000): um lote é mais caro porque há “mais cidade” em torno dele, ou seja, avenidas e transporte público para acessá-lo, serviço de esgoto, água, luz, coleta de lixo. Porém, quem produz a infraestrutura é o Estado. Aí reside a contradição fundamental da cidade capitalista: um imóvel só tem valor em função de uma complexa malha de infraestrutura, que é construída com investimentos públicos. Assim, a valorização de um terreno decorrente do investimento coletivo, público, é apropriada individualmente por aqueles que possam “pagar pela localização” (Deák, 1989). Por isso, o papel do Estado supostamente deveria ser o de regular e mediar esse antagonismo entre mercado e sociedade: garantindo uma produção homogênea de infraestrutura, evitando a exclusão das parcelas populacionais de menor renda, construindo equipamentos acessíveis por todos, e recuperando, com tributos, parte do lucro obtido pelo mercado em decorrência de investimentos públicos, a chamada “mais-valia urbana”.
Parece compreensível que nos países centrais do capitalismo, no bojo do Estado do Bem Estar Social, tal regulação tenha ocorrido, em maior ou menor grau. Claro que a intervenção pública sobre o uso do solo, feita por meio de leis e procedimentos administrativos chamados de “instrumentos urbanísticos”, ocorreu paulatinamente, ao mesmo tempo em que se consolidava o poder econômico da burguesia industrial européia a partir do séc. XIX, com a função objetiva – e nada filantrópica – de racionalizar as cidades para torná-las um instrumento eficaz da acumulação. Nas décadas do Pós-Guerra, o intervencionismo econômico keynesiano refletiu-se espacialmente, com o Estado garantindo certa igualdade na apropriação e uso do território, provendo equipamentos, serviços e moradia (os grandes conjuntos habitacionais), requisitos para o “bem-estar social”, que na verdade alavancaria um mercado de consumo de massa.
Se o Estado Providência cumpriu esse papel nos países centrais, em sua época, consolidando o mercado de consumo que se desejava, isso não significa, vale notar, que tal modelo tenha se mantido até hoje. Após a reestruturação produtiva dos anos 1970 e a consolidação do capitalismo financeiro globalizado, de recorte neoliberal, mesmo naqueles países, o “bem estar” e os direitos universais providos pelo Estado sucumbiram à hegemonia da economia de mercado, que favorece as corporações e exacerba a concentração da renda, promove a exclusão dos mais pobres (sobretudo imigrantes) dos benefícios sociais, fortalece governos cada vez mais autoritários e chauvinistas, e onde se revelam com cada vez mais frequência casos de mal-uso da máquina pública e de corrupção. Se não importamos até hoje a ideia de um Estado “publico” nos moldes de lá, é aceitável dizer que, nos dias atuais, são os países centrais que agora se inspiram no nosso modelo de modernização conservadora. No que diz respeito às cidades, não há dúvidas que a situação é uma só: como disse Mike Davis (2006), o mundo é, hoje, um planeta favela.
Mas, se ao menos até os anos 1980 o Estado Providência deu algum sentido ao “público” e alavancou certa regulação do urbano, na periferia do sistema capitalista isso nunca chegou a ocorrer. Diversos intérpretes da formação brasileira mostraram que no nosso país o conceito de “público” não é exatamente fiel ao seu significado original. O Estado brasileiro, em seu viés patrimonialista (Faoro, 2001), confunde o público e o privado na defesa dos interesses das elites, e essa equação afetou dramaticamente o modelo da nossa urbanização.
Assim, quando ao longo do séc. XIX, nossas cidades ganharam importância, não como lócus da produção propriamente dita, mas sim de comando da economia agroexportadora (Oliveira, 1977), na falta de um Estado de Bem Estar Social regulador, os investimentos públicos em infraestrutura foram claramente concentrados nas áreas ocupadas pelos setores de alta renda, capitaneados pelos interesses do mercado imobiliário (Villaça, 2001). Sua ausência no restante da cidade não se deu por causa de alguma “incapacidade” dos governantes – como é recorrentemente aventado – mas sim, em razão de uma eficaz política de segregação socioespacial. Na lógica peculiar do subdesenvolvimento, o poder público, sem o sentido de público das democracias desenvolvidas, traveste-se pela lógica das “ideias fora do lugar” (Schwarz, 2000) e se transforma em um “não-Estado”, de traço patrimonialista, marcado pela imiscuição dos interesses das classes dominantes, que aperfeiçoaram a máquina estatal como um instrumento a seu serviço, e alimentaram-se do atraso como alavanca para sua hegemonia.
Esse Estado peculiar, no âmbito urbanístico, não planeja ações para a superação do atraso, mas confunde; não organiza, mas desestrutura; não facilita, mas embaralha os procedimentos burocráticos e administrativos; não é ético, mas tolera o favor e o clientelismo, não porque seja incompetente, mas por ser extremamente eficaz no seu objetivo de emperrar um desenvolvimento urbano mais justo, redistributivo e includente, que poderia contrariar o equilíbrio de forças políticas. A acelerada industrialização e urbanização “com baixos salários”, das décadas de 1950 a 1970 (Maricato, 1996), gerou a chamada “modernização excludente” (Maricato,1997), ou seja, um crescimento econômico significativo, porém condicionado à manutenção da pobreza. No âmbito urbano, traduziu-se por um padrão de absoluta segregação socioespacial, com investimentos apenas na cidade hegemônica, que chamamos de modelo da “urbanização desigual”.
A metrópole de São Paulo é a resultante desse processo. Se não é a única, pois esse padrão se repete em todas as nossas cidades, talvez seja o caso mais exacerbado e um infeliz modelo para o resto do país. Os efeitos da modernização excludente se leem no forte antagonismo entre áreas da cidade muito reguladas, beneficiadas por constantes investimentos públicos e objeto de intensa atividade imobiliária formal, e outras sujeitas ao abandono e marcadas pela precariedade. Não é verdade que tal dicotomia se expresse no território por uma divisão geográfica entre o centro rico e a periferia pobre. Os assentamentos informais também se multiplicam nos interstícios da cidade hegemônica, nos terrenos abandonados, em baixo das pontes, nas beiras de córregos. Mas de fato se estendem majoritariamente pelas regiões mais distantes do centro. Ao longo do séc. XX, a população mais pobre, sem alternativas de moradia, foi se instalando em um distante “exílio na periferia” (Maricato, 2001), onde o custo da localização é menor.
Esse amontoado infinito de casas e barracos reflete o que foi, no Estado patrimonialista, a “melhor” política habitacional, ou seja, a “não-política”, deixando à população mais pobre a solução da autoconstrução, como resultado da falta de alternativas habitacionais, da impossibilidade de acessar a terra urbanizada, e da ação de loteadores clandestinos que disseminaram a ocupação informal. Como já comentou Francisco de Oliveira, uma solução bastante funcional do ponto de vista das necessidades da acumulação (Oliveira, 2003:59): o exército de reserva composto pela massa de imigrantes em busca de trabalho era “parte também dos expedientes de rebaixamento do custo de reprodução da força de trabalho urbana”, sendo as favelas e loteamentos clandestinos uma “solução” habitacional para os pobres que reduzia “o custo monetário de sua própria reprodução” (Oliveira, 2003:130).
Assim, enquanto os bairros ricos de São Paulo se beneficiavam de uma modernização constante, o padrão de urbanização para os mais pobres, a partir do impulso industrial do “milagre econômico”, passou a ser o da ocupação da periferia pela mão-de-obra imigrante, cujos baixos salários não permitiam acesso à moradia formal pela compra da casa própria. Pedreiros e marceneiros cheios de sabedoria (pois é deles a mão-de-obra que ainda hoje levanta a cidade formal), que construíram sozinhos a periferia com mais perícia do que se poderia imaginar: a precariedade de condições desses assentamentos poderia, não fosse isso, gerar ainda mais tragédias do que as que já assistimos a cada ano, quando chegam as águas do verão. Mas, onde não há poder público para proibir, regulamentar, fiscalizar, ou mesmo adequar o solo à construção de casas, é impossível impedir a ocupação de encostas inseguras, de beiras de córregos sujeitas a enchentes, deixando essa população muito vulnerável às calamidades naturais. Nas últimas décadas, com o esgotamento de áreas urbanizáveis as regiões de maior fragilidade ambiental, a princípio protegidas por lei, tornaram-se alternativas ainda mais distantes de assentamento.
Ao alastrar a cidade dessa maneira, a urbanização desigual distancia cada vez mais a população trabalhadora dos centros de emprego. A precariedade do transporte oferecido faz com que não seja incomum perder 5 a 6 horas por dia no trajeto periferia-centro-periferia . Uma deseconomia incompreensível para a cidade mais importante de um país tão rico, a de permitir-se fazer sua mão-de-obra ativa perder por dia mais de meia jornada de trabalho, no estressante aperto de ônibus e trens superlotados. Incompreensível para a racionalidade econômica, mas perfeitamente explicável pela lógica incongruente do subdesenvolvimento.
O resultado desse quadro é desalentador. Segundo levantamento da Prefeitura de 2004 , cerca de 3,5 milhões de pessoas moravam na informalidade, seja nos loteamentos de periferia, nas favelas, nos cortiços ou mesmo na rua. Se considerarmos ainda o grande contingente de pessoas que vivem em casas precárias, porém regularizadas, é provável que o número de paulistanos que vivem sem dignidade seja bem maior.
Porém, a discussão sobre os problemas de São Paulo não se resume a observar apenas a trágica situação dos assentamentos precários como se, em contrapartida, as regiões mais ricas das cidades fossem bem urbanizadas. Esse raciocínio esconde uma visão dicotômica, como se cada lado – o rico e o pobre – existisse por si só, independentemente do outro, quando na verdade ambos interagem e se autoalimentam, numa dinâmica de co-dependência. Muito longe de serem perfeitos, os bairros abastados, mesmo com todos os investimentosque recebem, promovem uma ocupação do território tão ou mais nociva à cidade do que a da periferia. No exagerado luxo, nos muros eletrificados, na impermeabilização do solo para suas garagens é que se expressa o gosto das elites por um modelo de vida que refuta a cidade e é autodestrutivo.
Os muros segmentam o urbano, eliminam a vitalidade das ruas e as matam como espaço de convívio; as áreas verdes públicas são menosprezadas, pois aquelas internas aos condomínios já satisfazem os que podem pagar por elas; o favorecimento ao automóvel – uma das maiores fontes de emissão de poluentes que o homem produziu – é tão abusivo que nas pontes, túneis e viadutos, construídos com dinheiro público, proíbe-se a passagem de ônibus! Mas na Região Metropolitana de São Paulo, as viagens diárias feitas de carro ou táxi representam apenas 31% do total, sendo que 69% são feitas por transporte coletivo ou a pé ! Ainda assim, gastou-se, em 2010, quase R$ 2 bilhões para ampliar a marginal do Rio Tietê, quando seria possível construir com esse montante cerca de 10 km de metrô. O favorecimento às obras viárias para o carro em detrimento do transporte coletivo é incompreensível, se não fosse coerente com a lógica da urbanização desigual. A engenharia urbana brasileira especializou-se em construir avenidas de fundo de vale, canalizando e tamponando rios e córregos, que já nem mais se sabe onde estão. A liberalidade dada ao mercado imobiliário leva à desconfiguração dos bairros antigos, vítimas da verticalização sem controle, à impermeabilização do solo, e ao colapso dos sistemas de drenagem e escoamento das águas, como atestam a cada ano, na época das chuvas, os incontáveis alagamentos.
Esse urbanismo que destrói a possibilidade de uma cidade mais humana e justa não foi fruto do acaso, nem tampouco é natural às grandes metrópoles, como o senso comum pode levar a crer. Nosso Estado peculiar transformou-se, ao longo dos anos, em uma máquina bem azeitada para promover a urbanização desigual. Não é por falta de leis que a cidade se autodestrói, muito pelo contrário. Mas no Brasil, o que é excesso para uns, é condescendência para outros, e se a violação da propriedade alheia é fortemente combatida quando se trata da ocupação pelos movimentos por moradia de um imóvel vazio há anos (sem cumprir sua função social), tal energia não é demonstrada contra as ocupações, bem menos legítimas, perpetradas pelos setores de alta renda. É sabido que uma ampla faixa de área pública do Parque do Ibirapuera, ao longo da Av. República do Líbano, foi tomada por mansões que até hoje ali estão. Se um dos mais importantes condomínios horizontais da Região Metropolitana tem cerca de 30% de sua área ocupando terras indígenas da União, isso não é realmente um problema. Há para isso uma taxa que legitima a situação e permite o uso. Quando um centro de exposições da cidade é construído em área municipal devoluta, sem o menor constrangimento, nem por isso se vê forças policiais aplicando por lá a reintegração de posse.
A cidade de São Paulo é a cidade dos vários pesos e medidas. Seja na prioridade dos investimentos públicos, seja na rigidez variável da aplicação das leis, seja na diferença abismal entre a oferta de moradia para as classes mais ricas e para as mais pobres, seja no imobilismo face às dinâmicas predadoras de urbanização. É também a cidade da indiferença: a exclusão dos mais pobres produz uma lógica perversa em que as classes dominantes cultivam a sensação de que a cidade funciona sozinha, ignorando que é um contingente populacional importante e pobre que a move, mas que tem que desaparecer de vista findo o serviço. Mas São Paulo é sobretudo a cidade da intolerância: o desprezo, a desconsideração para com as condições de vida dos mais pobres e suas demandas são também motivados por políticas e ações bem determinadas, porém veladas. O que nos remete à sensação de uma espécie de apartheid, não exatamente aquele da África do Sul, mas uma versão espacial de uma estrutura estamental, institucionalizada, de segregação dos mais pobres, de intolerância à pobreza.
“existe realmente um racismo no Brasil, diferente também do racismo praticado na África do Sul durante o regime do apartheid...porque nosso racismo é, utilizando uma palavra bem conhecida, sutil. Ele é velado. Pelo fato de ser sutil e velado isso não quer dizer que faça menos vítimas do que aquele que é aberto” (Munanga, 2008).
Se há, como indica o professor Kabenguele Munanga, uma espécie de “racismo à brasileira”, existente porém não confesso, é fácil supor que ele se expresse também na configuração do espaço. Os pesquisadores Eduardo Rios e Juliana Riani, da UERJ, mostraram que em São Paulo, no ano 2000, as áreas que concentram as camadas mais ricas e cuja porcentagem de pobres varia (segundo as áreas de ponderação) de 1,6 a 9,6 % da população, são também aquelas onde a porcentagem de negros está sempre abaixo de 13,7% dos habitantes, chegando a 3,8% em algumas áreas. Os bairros periféricos, onde se situa a maioria dos assentamentos precários, com uma população de pobres que vai de 19,8 a 58,6%, são também os bairros dos negros, que representam de 26 a 58% dos habitantes . Se considerarmos a origem étnica e geográfica, e a segregação e o preconceito para com a população migrante nordestina que fez a cidade desde meados do séc. XX, a correlação entre a segregação étnico-racial e a social fica ainda mais evidente.
Não há muita diferença entre o racismo explícito e as forças que movem a cidade pela lógica da intolerância à pobreza. Clubes da alta sociedade paulistana não aceitam negros entre seus sócios, mesmo que disfarçadamente. Mas também obrigam babás, negras ou nordestinas, mas todas pobres, a usar branco, e as impedem de adentrar seus restaurantes . Como explica Antonio Sergio Guimarães,
“o racismo brasileiro está umbicalmente ligado a uma estrutura estamental, que o naturaliza, e não à estrutura de classes, como se pensava. Na verdade, também as desigualdades de classe se legitimam através da ordem estamental. O combate ao racismo, portanto, começa pelo combate à institucionalização das desigualdades de direitos individuais” (Guimarães, 1999:15).
Essa ordem estamental, para a qual trabalham a favor os mecanismos de dominação do Estado patrimonialista, busca suas raízes na modernização conservadora, cujo traço é o de não ter rompido, em nenhum momento da história, o equilíbrio de forças que garante a hegemonia das elites, como é observado por Magalhães: “a ordem hierárquica, seja estamental, seja racial, sobre a qual se fundou a sociedade escravocrata no Brasil, não foi inteiramente rompida” (Guimarães, 1999:14). Sua força ideológica é medida pela forma como é assimilada como natural pelos dominados.
Sutil como o é o “racismo à brasileira”, a intolerância à pobreza na construção do urbano, escancara-se, para quem quiser ver, em incontáveis exemplos que, entretanto, passam despercebidos. Parece natural, ou sequer se sabe, que são comumente aprovados, pelas autoridades municipais, empreendimentos imobiliários cujos apartamentos têm quartos de 2x2 metros ou menos, sem janelas ou ventilação, com a designação “depósito” na planta oficial, muito embora todos saibam que servirão de dormitório para as “domésticas” da casa . Parece natural, ou sequer se questiona, que essas empregadas domésticas sejam frequentemente solicitadas a “dormir no serviço”, separadas dos seus para cuidar dos bebês das famílias ricas. Uma expressão atual dos “escravos domésticos”, símbolo de ascensão social da classe média paulistana e carioca no séc. XIX?
A maior revista semanal do país estampou, em 2001 , uma capa com o título “O cerco da periferia”, sugestiva interpretação da cidade de São Paulo pelo viés da institucionalização das desigualdades de direitos individuais. Nela, uma fotomontagem mostrava no centro ícones como os Edifícios Copan e Itália, casarões em meio a árvores, um parque, em uma ilha colorida cercada por uma massa feia e cinzenta de barracos de periferia. A legenda era enfática: “Os bairros de classe média estão sendo espremidos por um cinturão de pobreza e criminalidade que cresce seis vezes mais que a região central das metrópoles brasileiras”. A ameaça à “cidade”, entenda-se a cidade das elites, é clara. Ela vem dos pobres que, pela lógica do texto, crescem demais e são também criminosos. As elites consolidam a intolerância, aprofundam a ideologia da segregação e invertem o diagnóstico: não é a minoria abastada que destoa de um cenário generalizado de pobreza. É a pobreza que desfigura e ameaça a cidade moderna.
Se a intolerância à pobreza pode ser medida em declarações explícitas como essa, ela também se revela em ações concretas. No centro da cidade, onde centenas de edifícios são mantidos vazios por seus donos, à espera de alguma valorização , a conduta para com os pobres, ou com os movimentos que lutam por moradia, é digna do apartheid à brasileira. Se um prédio vazio há anos é ocupado, a reintegração de posse é quase imediata, e feita frequentemente com violência . Neste caso, a justiça não tarda, mesmo que um edifício vazio, nos termos do Estatuto da Cidade, não cumpra sua função social. Mas no Brasil o direito à propriedade está acima do direito à moradia, o que no Estado patrimonialista, faz sentido. Poucos se indignaram, também, quando foram instalados pinos nos bancos para que os sem-teto não durmam, ou “rampas anti-mendigo” nos vãos dos viadutos . Em seu “dossiê-denúncia” , o Fórum Centro Vivo, que agrupa movimentos populares da região, denuncia todo tipo de abusos do poder público contra a população de rua, moradores de cortiços e de ocupações: criminalização dos pobres, perseguição à lideranças populares, despejos violentos, jatos de água fria na madrugada, sprays de pimenta. Ações voltadas à retirada sistemática de qualquer vestígio de pobreza, que muito lembram um Estado de Exceção.
Esse Estado de Exceção, em plena vigência do Estado democrático, pode no entanto existir, quando se trata da cidade segregada. Em fevereiro de 2009, a Polícia Militar de São Paulo reagiu a um protesto de moradores, ocupando a favela Paraisópolis, encravada no bairro “nobre” do Morumbi. A causa do protesto ficou mal explicada: uma perseguição a um carro roubado nas vielas da favela resultou em tiroteio e morte do motorista. Aquilo serviu de estopim para um protesto da comunidade. A ocupação policial que se seguiu tornou a favela uma zona de exceção: averiguações nos barracos sem mandato judicial, revistas nos jovens que circulavam, acusações de violência e coação em interrogatórios. Segundo noticiou o jornal O Estado de S.Paulo, “durante pouco menos de três meses de operação, entre 4 de fevereiro e 26 de abril, 400 policiais em 100 viaturas e um helicóptero, com 20 cavalos e 4 cachorros, aplicaram 51.994 revistas a moradores do bairro” .
Se o Estado cumpre seu papel promovendo a intolerância à pobreza, ele o faz porque há quem o legitime, o que as classes dominantes expressam sempre que possível. Nas audiências públicas para a revisão do Plano Diretor de São Paulo, em 2006, os moradores de classe média do tradicional bairro da Mooca solicitaram abertamente a retirada das Zonas Especiais de Interesse Social ali previstas, temerosos pela “desvalorização” que elas criariam decorrente da atração de “pessoas pobres”. Os empreendedores de gigantesco condomínio próximo à ponte Cidade Jardim, que junta apartamentos de luxo com um centro comercial exclusivo, incomodados com a vista para uma favela, acharam por bem “estimular” a saída dos indesejados vizinhos pagando-lhes R$ 40.000 por família. Logo em frente, do outro lado do rio, é a Prefeitura que se encarregava da ação de “limpeza”, oferecendo o popular “cheque despejo”: R$ 1.500,00 para sair de lá, e R$ 5.000,00 se a família fizesse a “gentileza” de voltar ao seu Estado de origem . Já na favela Jurubatuba, a solução dos empreendedores de um prédio de luxo foi colocar um “mega-outdoor” de forma a escondê-la, e utilizar o Estado para estimular a saída dos moradores por R$ 1.500 .
Em janeiro de 2011, moradores de nove edifícios de alto padrão, indignados com um projeto da prefeitura para a construção de um conjunto habitacional de interesse social na favela do Real Parque, vizinha, entram com uma ação no Ministério Público , pedindo a suspensão da obra. Reclamam da falta de estudo de impacto ambiental e de possíveis transtornos, além do fato de que para poder alojar todos os moradores da favela, a prefeitura comprou dois terrenos vagos na área, por R$7,5 milhões. Segundo o porta-voz dos moradores dos prédios de luxo, eles deveriam ter sido avisados dessa aquisição e do destino dos terrenos. As informações sobre as obras lhe foram passadas por uma funcionária de sua casa, que mora na favela.
Quando o Estado por ventura abandona a lógica do patrimonialismo, ele é repreendido. Os moradores do condomínio argumentam com indignação e aparente sapiência sobre impactos viários e ambientais, questões da alçada do poder público. O discurso escamoteia certa parcialidade: a preocupação com os impactos não se revelou quando foram construídas as nove torres em que habitam. Indigna-os que a prefeitura compre sem consultá-los, pelas leis do mercado, um terreno para ampliar o conjunto habitacional, pois parecem acreditar que a livre iniciativa vale apenas para eles. Outorgam-se o direito de opinar sobre quem pode ou não receber o privilégio de sua vizinhança. Parece-lhes normal que seus empregados vivam numa favela às suas portas. Certos do bem que exercem ao oferecer-lhes um emprego, incomoda-os que, além do mais, possam, enfim, viver dignamente.
* * *
Mesmo que sejam gritantes os indícios de uma ordem estamental que alimenta a intolerância à pobreza, ainda assim não se pode por causa disso acreditar que não existam caminhos para uma reversão dessa tragédia urbana. Nossa estrutura social, embora carregada em muitos aspectos das heranças do passado, vem passando por mudanças significativas. Ela não é assim tão dicotomizada entre dominantes e dominados, assim como o que chamamos de “classes dominantes” não é um grupo tão monolítico.
Desde a redemocratização e o novo papel dado aos municípios, pela Constituição de 1988, na condução da política urbana, desde a ascensão, inclusive em São Paulo em 1989, de governos comprometidos com as demandas populares, o movimento da chamada “reforma urbana” logrou avanços consideráveis. Resultante da mobilização de setores da sociedade civil em prol de cidades mais justas, ele conseguiu ao menos inserir essa problemática na agenda política. Embora tenha sofrido retrocessos em várias ocasiões, e esteja atualmente estagnada, São Paulo foi pioneira, em momentos diferentes, em experimentar políticas habitacionais participativas, ou em tentar aplicar no seu Plano Diretor os chamados instrumentos urbanísticos do Estatuto da Cidade.
Tais experiências não foram isoladas, e se deram no bojo de mudanças em todos os níveis de governo. A criação do Ministério das Cidades, em 2002, e as ações decorrentes, como a implantação do Conselho das Cidades (com participação dos movimentos populares), a criação do Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social e a estruturação de uma política de financiamento envolvendo municípios e estados, significaram avanços importantes na luta pela reforma urbana. No que tange às favelas, a ideia da erradicação total e expulsão sistemática, está paulatinamente dando lugar à políticas de urbanização. Esforços para uma regularização fundiária mais ampla ocorreram, e equipamentos de educação e saúde chegaram a ser implantados em número mais significativo, por exemplo em São Paulo, em áreas pobres de periferia. Assim, o Estatuto da Cidade, aprovado em 2001, cujos instrumentos deveriam dar aos municípios condições de adquirir terras urbanizadas subutilizadas para destiná-las a fins sociais, poderia ser visto como um caminho para a reversão da injustiça urbana no Brasil.
Mas, há de se convir que ele foi, até agora, de quase nenhuma efetividade. O desequilíbrio urbano brasileiro continua inalterado, e São Paulo é exemplo disso. Os desastres que assolam a cidade na época das chuvas – e atingem em geral os mais pobres – são prova concreta do descaso para com a urbanização informal nas periferias, que continuam crescendo muito acima da média. Intervenções urbanas muito festejadas, como as Operações Urbanas, preveem um adensamento populacional significativo, porém exclusivamente voltado à demanda de alto padrão, em detrimento dos quase 4 milhões de paulistanos sem moradia adequada. A construção das novas vias da marginal do Tietê significou a retirada sumária de assentamentos que atrapalhavam a obra, como a Favela do Sapo. Embora o Estatuto da Cidade tenha dez anos, um instrumento como o IPTU Progressivo, que permitiria combater os lotes vazios nas áreas centrais, sequer foi regulamentado. Não há, portanto, motivos para comemorações. Em que pese a luta dos movimentos populares e demais grupos organizados da sociedade civil, os avanços alcançados parecem não ser suficientes para gerar as profundas transformações necessárias para mudar a ordem estamental que gera a desigualdade urbana e a cidade da intolerância.
Evidentemente, uma das razões desse impasse está na dificuldade de transformação do próprio Estado e, em maior escala, do sistema e das práticas políticas que o legitimizam. Uma máquina aperfeiçoada durante séculos para dificultar qualquer tentativa de transformação da lógica de produção do espaço urbano desigual não facilita a vida, evidentemente, daqueles que participam de gestões com intenções verdadeiramente “públicas”. Têm de enfrentar um aparato de gestão marcado por procedimentos centralizadores, fragmentado pelas disputas internas, abalado pelos projetos políticos pessoais, pela corrupção e pelo clientelismo, distante da população e de suas reivindicações, e ineficaz – quando não ativamente contrário – para promover transformações sociais mais efetivas. Somem-se a isso as demandas emergenciais, as alegadas restrições financeiras (injustificáveis na maior cidade da décima economia mundial), os constrangimentos da “governabilidade" e a reiterada recondução ao poder de gestões identificadas com os setores mais atrasados e clientelistas de nossas elites.
Por essas razões, parece de um otimismo ingênuo acreditar que hoje, no Brasil, instrumentos urbanísticos importados do Estado Providência possam ser capazes de alterar a ordem estamental que, mesmo que sutilmente, solidifica cada vez mais as dinâmicas de intolerância à pobreza, constrói uma cidade de muros e alimenta o apartheid urbano. A questão é, em essência, política. E as mudanças desejadas passam por uma profunda transformação individual, que possa levar cada um dos paulistanos a aceitar que há de ocorrer, para se salvar a cidade, uma radical inversão na lógica do seu funcionamento.
O mais comum nas mobilizações da sociedade para melhorar uma cidade que colapsa a olhos vistos é que cada grupo proponha e defenda soluções que lhe dizem respeito: os que têm a sorte de morar em uma rua pacata propõem o seu fechamento, os moradores dos bairros de alto padrão querem o bloqueio de avenidas aos domingos para a prática de esportes, os jovens de periferia lutam para a emancipação da cultura hip-hop, e assim por diante. São todas reivindicações justas, e necessárias. Porém, não terão por efeito mudar a cidade, pois não a entendem como uma expressão coletiva, ou seja, de todos.
A possibilidade de uma mudança passa por alterar o equilíbrio de forças que rege as prioridades das políticas públicas estruturais: o enfrentamento da questão da terra e daqueles que a retém para fins especulativos; a inversão radical dos investimentos, para atender emergencialmente e de forma maciça as periferias; a provisão de moradia para todos; a construção de um sistema integrado de transporte público, mesmo que isso afete, de imediato, os usuários de carros; a fiscalização da ocupação e transfiguração descontrolada dos bairros pela construção civil de alto padrão.
Tudo isso só seria possível se houvesse uma mudança de conduta individual que pudesse contaminar, por assim dizer, toda a sociedade. O que pressupõe interromper, ou combater (para os que não as adotam) as atitudes que, mesmo que veladamente, reproduzem a enraizada cultura da intolerância. Ocorre que a cultura da construção de uma sociedade que rompa com as estruturas do atraso ainda está longe de ser majoritária. E, paradoxalmente, aquilo que se festeja hoje como um ideal de progresso e modernidade, a ascensão a patamares “desenvolvidos” de consumo de massa, é justamente o padrão urbano menos sustentável e mais excludente. A euforia do nosso crescimento é, também, o caminho inexorável para uma tragédia urbana ainda maior. Devemos, urgentemente, questionar e repensar qual o modelo de cidade, e de sociedade, que queremos.
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