Folha de SP. Tendências e Debates: "A utilidade do Plano Diretor"
/Na proposta de Plano Diretor que se discute em São Paulo, focou-se o desequilíbrio entre os lugares de trabalho e de residência e a exagerada centralização econômica no eixo sudoeste. Concentrando ali a infraestrutura e as atividades econômicas, a cidade perpetrou um desequilíbrio estrutural, fazendo com que os que lá trabalham tenham que enfrentar demorados deslocamentos.
Quanto mais pobre a pessoa, mais longa e penosa a viagem. Como as políticas públicas sempre priorizaram o automóvel, que corresponde a apenas 30% das viagens diárias, a pendularidade dos deslocamentos associada à falta de uma rede de transporte de massa acabaram por colapsar a cidade.
Além disso, um planejamento urbano pouco efetivo e a ausência de regulação da atividade construtiva fizeram com que a cidade crescesse aleatoriamente, no ritmo das oportunidades imobiliárias. Chegou-se ao ponto em que o licenciamento de novos prédios foi simplesmente entregue à corrupção. Com isso, pululam shoppings centers inúteis, desfigura-se o pouco que resta dos bairros assobradados, destroem-se as áreas ambientalmente frágeis e inflama-se uma bolha de valorização.
A proposta do plano é concentrar os lançamentos construtivos apenas ao longo dos corredores expressos de ônibus, que devem multiplicar-se e passar a estruturar os deslocamentos na cidade. A oferta de prédios nesses eixos permitiria ter mais gente próxima ao transporte público, aumentando a mobilidade.
Se a lógica faz sentido, há obstáculos a superar. O principal é que o problema identificado não é o mais grave. O que realmente perverte a cidade é a própria lógica da urbanização, que no ato mesmo em que se produz, segrega os mais pobres para o mais longe possível, em um apartheid urbano. A implosão da cidade, pelo tensionamento econômico e social decorrente, já começou.
Adensar ao longo dos corredores permitindo um alto coeficiente construtivo, sem estoques limitadores, vai gerar forte verticalização nesses eixos, porém sem nenhuma garantia de que, com o aumento de prédios, seja dado lugar também aos mais pobres. Limitar o tamanho dos apartamentos, em um contexto de hipervalorização imobiliária, apenas aumentará o preço do metro quadrado. O que teremos será uma cidade um pouco mais racional e fluida, porém ainda uma cidade só para as classes média e alta.
O Plano Diretor proposto é tímido ao enfrentar a lógica do apartheid. Os instrumentos do Estatuto da Cidade continuam sendo empurrados para regulamentação posterior. Ele não rompe paradigmas, pois para isso seria necessário colocar a questão da segregação como prioridade absoluta, prevendo nos corredores adensados estoques de terras públicas para fins sociais.
Estamos no equilíbrio tênue entre romper o modelo da exclusão e construir cidades mais humanas ou deslizar de vez para a barbárie urbana, se é que já não o fizemos. Planos Diretores servem muito pouco, pois no Brasil podem ficar engavetados por anos sem maiores consequências, como ocorreu em São Paulo. Está nas mãos dos nossos vereadores a oportunidade de tornar o de São Paulo algo verdadeiramente útil, capaz de acabar com a cidade do apartheid, e mostrando ao Brasil o caminho para evitar a tragédia urbana que aflora.
JOÃO SETTE WHITAKER FERREIRA, 46, é arquiteto, urbanista e economista, professor livre-docente de planejamento urbano das faculdades de arquitetura e urbanismo da USP e da Universidade Mackenzie