Plano Diretor: a quem estamos enganando?

Já comentei aqui várias vezes sobre minhas sérias reticências quanto à real eficácia de planos diretores no contexto brasileiro, para a ordenação das cidades por parâmetros socialmente mais justos (já que esse é o único e verdadeiro desafio que temos que enfrentar).

Porém, como nem por isso devamos desistir de tudo (ainda mais quando se é urbanista de profissão), vale somar-se ao esforço coletivo empreendido para revisar o Plano Diretor de São Paulo, após oito anos em que ele foi devidamente engavetado.

Esse esforço rendeu uma proposta com algumas inovações, dentre as quais duas são mais importantes, a meu ver:

1) a tentativa de controle do selvagem mercado imobiliário paulistano, impedindo que construa indiscriminadamente em todo e qualquer lugar, como vinha fazendo, e canalizando-o ao longo de "eixos estruturadores" da urbanização, que receberiam corredores expressos de ônibus. Com isso, espera-se direcionar o crescimento da cidade em função da sua oferta de transporte público (e não mais em função do carro), e permitir que o mercado alavanque novas áreas de adensamento para fora do sempre beneficiado eixo sudoeste, nas áreas menos "nobres" da cidade que carecem de maior atividade econômica e adensamento. Com isso, espera-se um reequilíbrio nos deslocamentos na cidade, hoje exageradamente pendulares.

2) Um esforço, na verdade muito menor do que o que deveria ser, para manter minimamente os instrumentos de justiça social, como as ZEIS e a Cota de Solidariedade, que podem ajudar a tornar a cidade um pouco menos segregadora. Essa é a justa razão pela qual os movimentos sociais estão pressionando para a aprovação rápida do Plano.

Até agora, estive firmemente apoiando a aprovação do Plano, dado que a sua redação, até antes da proposição de emendas, parecia respeitar esses dois princípios.

Porém, a própria dinâmica de elaboração de um plano diretor no Brasil é feita de tal forma que, em vez de facilitar, gera mais e mais possibilidades de manipulação.

Assim, tivemos mais de 300 emendas sugeridas pelos vereadores. Algumas legitimamente oriundas de reivindicações populares, outras inseridas meio sem explicação para tentar sempre favorecer interesses de um ou outro grupo. Por mais que defendamos a participação social, não há muita gente que possa, em meio a seus afazeres profissionais, dedicar-se ao estudo pormenorizado dessa montanha de alterações. Cabe então aos eleitos para isso ou aos profissionais diretamente envolvidos.

A questão que surge, então, para aqueles que defendem uma cidade mais justa socialmente e menos entregue aos interesses imobiliários, é até que ponto as emendas propostas alteram o plano que vinha sendo discutido, e o quanto essas alterações ultrapassam ou não um limite além do qual o plano, de tão transfigurado, não vale mais a pena de ser defendido.

Pois o problema de todo plano é sempre esse: nas negociações de última hora, uma enxurrada de emendas pode muito bem escamotear transformações que alterem substancialmente o sentido do plano inicial. 

Como não posso ler as mais de 300 emendas, me ative a apenas uma, a que mais me interessa: a tal Cota de Solidariedade. Como para mim ela representaria uma (talvez a única) grande mudança na dinâmica segregadora de produção da cidade, oferecendo um mecanismo para obter terra para os mais pobres na cidade do mercado, fiz questão de ver se ao menos  isso estaria sendo preservado nesta salada mista do plano pós-emendas.

Vamos recapitular: a ideia da Cota era transformadora pois permitiria a doação de TERRA em áreas nobres da cidade para produção de HIS. Por que isso é transformador? Porque fazem-se conjuntos de dezenas de torres para a alta renda em todo canto (tomemos o exemplo do empreendimento da Barra Funda ou de outros tantos na Moóca), sem nunca pensar que elas irão atrair milhares de pessoas para empregos de menor remuneração. Essa população trabalhadora não terá, ao contrário dos compradores dos luxuosos apartamentos desses lançamentos, oferta de moradia. Continuarão a ter que morar na cochinchina e a pegar horas de trens e ônibus abarrotados para chegar ao seu novo emprego. Por isso, a cada novo empreendimento de alta renda na cidade "nobre", aprofunda-se o movimento pendular que o plano, em seu princípio, dizia querer evitar.

Trata-se verdadeiramente de uma lógica de produção que segrega os pobres para longe, dando o "direito à cidade" apenas aos felizardos que possam pagar (muito) caro por isso, ainda mais em um contexto de bolha de valorização que a cidade vive. É a cidade do Apartheid.

O "nó" dessa questão está na terra. Não há terra nessas áreas nobres com preços acessíveis para que a prefeitura possa comprar, ou despropriar, para garantir habitações também para a população mais pobre que terá que trabalhar lá. A cidade dos ricos não é para os pobres, e ponto final. Mesmo que isso produza uma urbanização indecente que, no fim irá irremediavelmente colapsar (que já colapsou, aliás).

Por isso, a Cota de Solidariedade era uma proposta inovadora. Ao fazer um empreendimento de mais de 20 mil m² de área construída (ou, na minha visão, mais de 10 mil em áreas de urbanização como o Arco Tietê), o empreendedor teria que doar á prefeitura 10% da área 2 mil m², portanto), para a obrigatória construção, pela prefeitura, de habitação social. Por que na própria área? Para responder à demanda por moradia que o próprio empreendimento irá criar. Simples e direto.

Por que doar terra e não obrigar o empreendedor a construir ele mesmo? Porque não se pode querer que um empreendedor privado faça o que ele não tem nem competência nem interesse em fazer: produzir e gerenciar a oferta de habitação para as faixas de renda muito baixas. Quem faz isso é o poder público, é sua prerrogativa, por meio de planos habitacionais que hoje aliás são abundantes. Seja com o Estado e a CDHU, seja com financiamentos do Minha Casa Minha Vida, não será problema para a Prefeitura produzir as habitações segundo os critérios que ela decidir. O problema é conseguir terra para isso.

Para que o empreendedor não choramingue (lembrando que no Brasil TUDO é feito para que eles não choraminguem), lhe seria dado o direito de construir, em seu empreendimento, 10% a mais do que a lei permitiria, como forma de compensação da sua "perda".

Ao longo da elaboração do plano, pelas pressões normais dos grupos a quem qualquer forma de democratização do espaço causa náusea, essa regra tão simples foi sendo alterada. "Em vez de" ser no próprio terreno da construção, o empreendedor poderia doar um outro terreno, de área equivalente, em um raio próximo ao mesmo. Depois, esse raio foi aumentando: na proposta final antes das emendas, já era um terreno doado "na mesma macroárea", o que mudava bastante a ideia. 

Mas as alterações "discretas" das emendas na última minuta em pauta, que agora vai para votação, vão muito além dessa primeira desfiguração da Cota. Agora, retira-se totalmente seu sentido. O efeito democrático é sutilmente eliminado, de forma que os não especialistas (ou os que não se importam muito com a questão) nem irão perceber, pois afinal, a "Cota de Solidariedade" permanece, com seu nome pomposo e agora demagógico, na Subseção IX do Plano. Permanece, mas não não tem nada a ver com a ideia original.

Na proposta que se apresenta hoje, a Cota ficou assim: em empreendimentos de mais de 20 mil m² de área construída, o promotor não deverá mais doar terra no mesmo local, mas CONSTRUIR ele mesmo habitações de interesse social, para famílias de até seis salários mínimos. Ou seja, o empreendedor deverá fazer ele mesmo, dentro de seu empreendimento, 10% de habitações que ele destinará a famílias que ganhem até cerca de R$ 4.300,00 ao mês! Obviamente, o mais provável é que o empreendedor foque esse limite máximo, já que nada o obriga a atender a população de 0 ou 1 salário mínimo.

Assim, o que o obrigam a fazer é tão somente destinar 10% de seus apartamentos à uma faixa de renda média-alta, já que ao falar de renda acima de 4 mil Reais, estamos muto longe de atender os trabalhadores de mais baixa renda. Todo empreendimento de mais de 20 mil m² terá que ter então, além dos prováveis apartamentos gigantescos de alto luxo, um mínimo  de pequenos lofts, por exemplo, que poderão ser destinados a jovens solteiros ou casais que ganhem por volta de 4 mil Reais por mês. Não se trata, propriamente, de "habitação social". Até onde vi, nada é previsto sobre o preço desses imóveis, que estarão sujeitos às valorizações que vemos na cidade.

Se o empreendedor não quiser fazer isso, lhe são oferecidas ainda duas opções:

1) produzir as mesmas habitações "de interesse social" não no mesmo empreendimento, mas em outro terreno dentro da "macrozona de estruturação e qualificação urbana", ou seja, mais ou menos em toda a cidade consolidada! Portanto, se fizer um empreendimento de mais de 20 mil m², será "obrigado" a construir algum outro, com 10% do tamanho, em outro canto da cidade, destinado a famílias que ganhem "até" 4.300 Reais. Puxa, que plano exigente! Obriga o empreendedor a empreender ainda mais!

2) Caso não fique contente com as duas primeiras possibilidades, o empreendedor poderá então optar por depositar o equivalente a 10% do valor de seu terreno ao Fundo de Desenvolvimento Urbano da prefeitura, que o utilizará para fazer habitação social, "preferencialmente" em ZEIS 3, ou seja, em ZEIS situadas nas regiões mais centrais. Preferencialmente, nada a obriga a isso, entretanto.

Temos então, em algumas lições, uma aula perfeita sobre como se faz, em um plano diretor, para enrolar o cidadão de bem. A Cota de Solidariedade, tal qual ficou nesta última minuta, é uma farsa, que está muito, mas muito longe de ser um instrumento de inclusão social.

Pergunta-se: se percebo uma deturpação tamanha em apenas um item que me propus a verificar, o que será dos outros? O que será da força dada ao mercado em áreas em que ele deve ser regulado? Nem quero saber.

Me pergunto o quanto, então, as alterações feitas continuam a justificar a aprovação do plano. Volto ao começo de tudo: planos não servem para muita coisa, e quando servem, acaba sendo invariavelmente para favorecer a ordem atual das coisas.

No caso do acesso à cidade que funciona pelos mais pobres, que é o que a Cota de Solidariedade deveria tratar, a questão central é a terra. Sempre foi. Mas que não se preocupem os ricos e poderosos, os moradores da Barra Funda, da Moóca, e outros bairros "nobres" ou que almejam ser, e que ainda têm áreas para grandes empreendimentos. Não serão incomodados em sua nobreza. Pelo menos não pela Cota de Solidariedade. Se quiserem comprar apartamentos em "lindos" lançamentos de muitas torres, podem ficar tranquilos que seus vizinhos mais pobres serão pessoas ganhando mais de 4 mil Reais ao mês. Os pobres que lhes irão servir, como sempre foi, continuarão tendo que vir de bem longe, pois assim é que funciona nossa urbanização. Cada um em seu lugar. Sem invencionices.

Estamos salvos!