Maluf, o Minhocão e a gentrificação

Ao construir o Minhocão, no auge do planejamento funcionalista, quando o carro era sinônimo da cidade que não parava de crescer, Paulo Maluf foi um político incompreendido. Não queria fazer uma pista expressa para os carros. Seu intuito era fazer uma política de habitação social no centro da cidade. O Minhocão foi uma espécie de ZEIS antes da hora. Salve Maluf.

Antes que meu blog seja inundado de comentários raivosas, aviso que o pequeno devaneio acima É IRONIA. Mas, brincadeira a parte, o fato é que o nefasto elevado Costa e Silva teve um perverso efeito positivo, dentre todos seus aspectos negativos. Ao degradar o entorno, matar a rua, condenar os vizinhos a respirar toneladas de gás carbônico por anos a fio, o Minhocão desvalorizou tanto os predios em sua orla que, com isso, permitiu que uma população de baixa renda tivesse condições de alugar ou até mesmo comprar, e assim morar no centro, perto de seu trabalho. Pesquisas feitas por estudantes da FAU mostraram que muitos moradores dos prédios ao longo do Minhocão são ambulantes do comércio informal do centro.

Pois bem, o novo Plano Diretor de São Paulo, enfim, indicou a desativação dessa ferida urbana que é o Minhocão, em médio prazo. Imediatamente, movimentos cívicos ligados à luta por uma cidade melhor começaram a mobilizar-se para discutir o que fazer em seu lugar. Duas propostas são comumente aventadas: a destruição do elevado, ou sua transformação em um parque elevado. Não vou ainda falar sobre elas, e sobre uma terceira que tenho a propor. Antes, é necessário falar do “plano social do Maluf”.

A mobilização para a desativação do elevado parte de grupos cívicos de estratos sociais muito variados (o que faz sua riqueza), e ela não pode deixar passar desapercebido o fato de que a causa que defendem pode, ela também, tornar-se um instrumento de valorização imobiliária e expulsão dos mais pobres. Por que? Pois ao retirar o elevado, os preços dos imóveis no seu entorno vão, imediatamente, explodir. Imobiliárias e construtoras estão, evidentemente, com olho gordo nesse novo filão que está para surgir. Imagine poder vender um apartamento de frente para um boulevar reurbanizado ou um parque elevado em plena São Paulo. Ou seja, imediatamente, todos os moradores de renda média-baixa que por décadas se contaminaram respirando CO2 no café da manhã, receberão como prêmio pela desativação do elevado um convite forçado a retirar-se de lá.

É a mesma coisa de sempre: quando a coisa vira boa, tiram-se os pobres. Senão por políticas oficiais, pela força do dinheiro. Por isso, antes de se falar em destruir o elevado ou transformá-lo em parque, a reivindicação deve ser outra: a apresentação de um plano, por parte da Prefeitura, de regulação de preços e proteção aos moradores de menor renda que lá moram. Essa deve ser a luta no atual momento. Sob o risco, se não o fizermos, de carregar a culpa de ter defendido a criação de algo que pode tornar-se um dos projetos mais gentrificadores que a cidade já teve.

Há muitas formas de fazer isso, que demandam vitórias políticas em uma Câmara Municipal que será provavelmente muito arredia: lei de inquilinato específica para o Minhocão para proteger os moradores que lá residem, taxações hipertrofiadas para negociações imobiliárias que afetem moradores que estão lá há anos, demarcação de ZEIS (Zonas Especiais de Interesse Social) em prédios cuja maioria de moradores seja de baixa renda, e assim por diante. Na França, quem quiser comprar uma casa de pessoas idosas que nela vivem há muito tempo pode ser submetido a um imposto que dobra o valor da transação. O caminho é por ai.

Só depois disso, depois de resguardar o “efeito social” do minhocão do Maluf, é que se pode pensar no que fazer em seu lugar. E então, acho que há outras alternativas possíveis àquelas propostas. O Minhocão tem uma estrutura de vigas longitudinais, de tal forma que é simples retirar as camadas externas, deixando apenas os pilares e o vigamento que passa por cima deles. Com isso, abre-se caminho para o sol enfim chegar de novo ao chão da rua, que pode ser rearborizada e ganhar ciclovia e calçadas largas. Mas, na estrutura central preservada, pode-se fazer um VLT aéreo, elétrico e silencioso, que substituiria a via expressa pelo modal de transporte público de massa, e evitaria a ocupação de boa parte da nova avenida no térreo para a implantação de um corredor de ônibus, medida necessária e coerente com a nova orientação do município de priorizar a rede de transporte. Uma via aérea de locomoção de massa rápida, silenciosa, com paradas na Praça Roosevelt, Sta. Cecília (com conexão com o metrô), Higienópolis, etc., em direção à Barra Funda (e outra conexão com o Metrô).

Qualquer que seja a solução escolhida, que deve aliás passar por um processo participativo nos conselhos de bairro, no conselho de transporte e na Câmara Municipal, durando o tempo que for necessário, só não se pode fazer uma coisa: eliminar um problema criando outro parecido. Ou seja, a proposta feita na gestão passada de, no lugar do Minhocão, afundar a linha de trem que vai para a Barra Funda e construir uma nova via expressa por cima, é simplesmente sucumbir à tentação de continuar, 40 anos depois, fazendo o mesmo. Vias expressas de fundo de vale que, além dos custos fabulosos de enterrar o trem, ressuscitam o carro e matam a cidade.

A contra-argumentação é que não se pode retirar uma “via expressa tão importante para a cidade” sem oferecer uma alternativa viária. Balela. O colapso viário na cidade já ocorreu há anos, e a retirada do elevado vai criar um caos passageiro dentro do caos existente, e as pequenas ruas da Sta.Cecília e arredores vão da noite para o dia congestionar-se. Mas esse impacto, que deve durar alguns anos, só diminuirá enquanto, ao mesmo tempo, se implante um sistema de transporte público eficaz que pouco a pouco de fato substitua o modelo anacrônico e condenado do carro como alternativa de locomoção dentro das cidades. Estamos no caminho certo.

E, sobre isso, para terminar, vale um aceno ao Fernando Haddad. No Brasil, conta-se nos dedos os gestores que enfrentem questões estruturantes nas cidades, porque elas representam problemas cuja solução obrigatoriamente dura muito mais tempo do que uma gestão. Ou seja, não rendem frutos eleitorais. Por isso, opta-se por fazer coisas imediatas mas nada estruturais, que gerem votos a curto prazo. Ao enfrentar a opção pelo transporte público no lugar do automóvel em uma cidade de elite e conservadora como São Paulo, o prefeito optou pelas transformações estruturais, e paga o preço por isso no ataque sistemático que recebe da grande mídia corporativa e de parte dos usuários do carro. Espero que ganhe o apoio merecido da população pela opção corajosa.


PS: Dois pequenos comercias - não deixem de assistir ao bonito documentário Elevado 3.5, que conta histórias de moradores do Minhoção (veja o trailer aqui).

Sobre a temática da gentrificação, recomendo o site Arquitetura da Gentrificação (clique aqui)