A culpa é de muita gente, só não é das vítimas
/Há muitas causas sobre as quais pode-se jogar a culpa pela para tragédias como o incêndio ocorrido no centro de São Paulo, que provocou o desmoronamento do Edifício Wilton Paes de Almeida, com a morte de pessoas (ainda não se tem certeza de quantas, infelizmente). Nenhuma delas envolve os habitantes do prédio, embora a grande mídia insista em, sempre, apontar com destaque a "irregularidade" dos que promoveram a ocupação.
A primeira delas é o numero altíssimo - mais de uma centena - a de prédios mantidos vazios na região central (são 5 milhões de unidades habitacionais vazias nas áreas centrais das cidades de todo o Brasil). Antes de gritar e indignar-se com a irregularidade dos ocupantes desses imóveis, é sempre bom insistir que, no começo de tudo, QUEM ESTÁ NA VERDADE EM SITUAÇÃO IRREGULAR SÃO OS EDIFÍCIOS VAZIOS. Pois é, essa é uma das causas principais. Manter imóveis vazios em áreas urbanas infraestruturadas contradiz o Estatuto das Cidades, Lei federal de 2001, por não cumprirem a sua função social. E o que é isso? É o fato de que um imóvel vazio custa caro para toda a sociedade, que é quem, no fim das contas, paga pela infraestrutura que está lá, a lhe servir, sem ser usada: luz, água, asfalto na porta, coleta de lixo, transporte próximo, etc, etc. Imóveis vazios deveriam ser fiscalizados, e seus donos compelidos a utilizá-los, ou então vendê-los. Um instrumento da Lei, o PEUC (Parcelamento, Edificação e Uso Compulsórios) permite até que o imóvel, uma vez notificado pela Prefeitura, seja desapropriado, se não lhe for dado uso em 5 anos. Mas, pergunta-se: quantos municípios de fato enfrentaram esses proprietários notificando-os? Quase nenhum. Na gestão Haddad, cerca de 2 mil imóveis foram notificados pelo PEUC, em uma ação inédita. Uma diretoria especial de fiscalização da função social da propriedade também foi criada, outro fato inédito. Mas a atual administração de João Dória achou por bem interromper todas as notificações.
Por que? A razão é que a cultura política de uma sociedade de elite preserva, acima de tudo, os direitos dos proprietários, acima até do direito fundamental à moradia, que está previsto na Constituição. Nem mesmo os juízes conhecem a legislação, ou fingem não conhecê-la, e quando há edifícios ocupados, em vez de ir na causa, que é tirar satisfação do proprietário que deixou irregularmente o imóvel vazio, em vez de cobrar medidas de segurança para que quem está lá não corra risco (pois a deterioração do prédio também é responsável do proprietário), colocam a culpa no elo mais frágil, e mandam desocupar para preservar a propriedade, mesmo que de um bem irregular, jogando-o novamente às traças e aos ratos, para mais longos anos de degradação. E os municípios também não enfrentam os proprietários, para forçá-los a dar uso a seus prédios. É verdade que às vezes não é tão fácil, são muitas vezes imóveis de herança, desatualizados, sem interesse comercial. Mas, nesses casos, o Poder Público Municipal deveria colocar em prática ações de mediação e apoio para dar-lhes um uso. Na gestão Haddad, propusemos que os prédios notificados com PEUC fossem, após acordo com os proprietários, isentados de IPTU e outras taxas se fossem reformados para dar condições de uso habitacional, em troca do que a prefeitura iria alugar 100% das unidades para destiná-las à uma política de locação social no centro para a população mais vulnerável. Infelizmente, como veremos adiante, essa e muitas outras propostas não tiveram continuidade na gestão Dória, que preferiu no lugar mandar derrubar prédio com gente dentro logo ali na Cracolândia.
Ao mesmo tempo, para ajudar nessa fábrica de imóveis vazios no centro, temos as burocracias administrativas e outras dificuldades, algumas um tanto suspeitas. É importante dizer que em um prédio de propriedade particular, a Prefeitura tem pouco a fazer além de notificar e pressionar para seu uso. Mas ela pode, efetivamente, desapropriá-lo para reabilitá-lo para uso habitacional. Porém, para isso, o preço deve ser compatível com o que o poder público possa pagar, sem que o MP venha acusá-lo de jogar fora dinheiro público. Quando os prédios são tombados, por exemplo, a desapropriação é quase sempre inviável, pois a cultura de preservação do patrimônio arquitetônico no Brasil gera custos altíssimos e cria empecilhos demais para uma revitalização com novos usos, exigindo detalhes de originalidade que transformariam o prédio num museu, porém inutilizável. Mas esse não é o maior problema, pois nem todos são tombados, e às vezes até se consegue uma solução. Um dos entraves maiores é o valor estabelecido pela justiça para as desapropriações, sempre favorecendo o interesse do proprietário (mesmo que mantenha um imóvel irregular). Lembremos o caso do Hotel Aquarius: foi colocado à venda em leilão por 17 milhões, e ninguém se interessou, mostrando que esse valor era alto demais. Quando foi ocupado, a Prefeitura tentou a desapropriação. Os peritos judiciais foram lá e avaliaram o prédio em.....40 milhões, levando o Prefeito Fernando Haddad a anunciar a impossibilidade de desapropriação por esse valor. O prédio continuou vazio. Quem ganha com essas avaliações superfaturadas? Uma questão a se pensar.
Uma outro fator de produção dessa ociosidade urbana é a manutenção especulativa de imóveis vazios, sempre com certa condescendência do poder público. Há uma imobiliária em São Paulo que possui várias dezenas de prédios no centro da cidade, mantidos vazios e com enormes dívidas de IPTU, esperando uma eventual alta de preços para lucrar com alguma operação imobiliária. Por isso o esforço de alguns governos alinhados com esses interesses, como o de João Dória (e seu projeto do Lerner financiado pelo setor imobiliário, leia aqui a respeito), em promover políticas higienistas que valorizem o centro e expulsem os mais pobres. Se "pegarem" no mercado, os que especularam mantendo prédios vazios (e sobretudo os terrenos onde se encontram esses p´redios antigos) ganharão milhões. Algumas vezes, para não deixar a situação insustentável, um perdão da dívida é promovido, como fez Kassab em relação ao Edifício Prestes Maia. Quando na verdade a dívida de IPTU poderia servir como forma de pressão, já que uma lei, da 'Dação em pagamento", permite negociar a transferência do prédio á Prefeitura, em troca do perdão da dívida. Mas não, em São Paulo, como no caso do Joquey Clube, maior devedor de IPTU da cidade, protege-se sempre os proprietários e permite-se empurrar as dívidas ad eternum. NO caso do Prestes Maia, a gestão Haddad fez enfim a desapropriação, e um projeto para sua revitalização para uso habitacional. Não sei em que pé andará esse processo.
Por fim, a última causa importante para tragédias como a de ontem é, evidentemente, a falta de políticas públicas de habitação que deem conta do déficit astronômico que o Brasil, embora seja umas das dez maiores economias do mundo, tem que enfrentar. Isso não é um processo que ocorra da noite para o dia. Em São Paulo, uma gestão que viabilize muitas unidades (viabilizar significa realizar alguma das longas etapas da produção habitacional: comprar ou desapropriar terrenos, fazer projeto, aprová-los nos órgãos competentes, contratar a obra e construir) fará algo em torno de 45 a 50 mil (como na Gestão Marta e na Gestão Haddad), a média sendo menor (24 mil no conjunto das gestões Serra-Kassab). Uma fração perto do déficit a enfrentar: cerca de 370 mil famílias em situação de grande precariedade, um milhão no total que por alguma razão precisariam de casa (como o alto valor de aluguel ou o adensamento exagerado). Por isso, não será um a questão resolvida rapidamente. Ainda mais porque, no Brasil, nem os políticos, nem, a sociedade, assimilaram a centralidade da questão da moradia. Os orçamentos são pífios, e não há uma reserva constitucional como ocorreu - em grande vitória da Constituição de 88 - paras as áreas educacional e de saúde. Ora, mas sem uma casa para morar, não há educação de qualidade para os filhos, e muito menos saúde familiar.
Ainda assim, políticas são realizadas, e uma delas foi o Minha Casa Minha Vida, que tinha uma modalidade específica para as entidades de moradia e empresas que quisessem reabilitar edifícios para habitação nas áreas centrais. Em São Paulo, Assessorias Técnicas de Arquitetura realizaram em parceria com movimentos projetos sensacionais no centro, com verba federal e em alguns casos doação dos terrenos pela Prefeitura. Infelizmente, como se sabe, dentre os retrocessos que o país vem sofrendo, um deles é a paralisação quase total desse programa. E com isso a produção de novas unidades no centro. O Ministério das Cidades, aliás, recusou recentemente dois projetos de reabilitação propostos pelas entidades com a assessoria Peabiru, com 350 unidades previstas, alegando que tais projetos "saíram da prioridade de análise". Outras iniciativas podem ser feitas. Por exemplo, a gestão Haddad conseguiu receber do INSS uma dezena de prédios de sua propriedade, em troca de uma dívida do órgão federal com o município. Lançou depois um chamamento para empresas de construção para a reforma desses prédios, que seriam colocados dentro de um amplo programa de locação social.
A locação social é aliás um dos meios de, pouco a pouco, ir recuperando os prédios vazios do centro com uso habitacional. Mas precisa ser instituída como uma grande política de Estado, que dure muito mais do que uma gestão, e sobretudo que não seja destruída a cada mudança de governo. Assim como a estruturação do Serviço Social de Moradia, previsto no Plano Diretor de 2014, que prevê o atendimento com diversas modalidades de habitação para a população mais vulnerável socialmente, sobretudo no centro, onde há uma enorme demanda para tal.
Tudo isso está efetivamente proposto, em detalhes, no Plano Municipal de Habitação que realizamos, sob a gestão de Fernando Haddad, e encaminhamos em forma de um Projeto de Lei para a Câmara Municipal, em dezembro de 2016. Um plano em que não aparecia meu nome, nem o do Prefeito, pois tinha a preocupação de ter um caráter republicano, pensando o enfrentamento da questão habitacional para a cidade para os próximos 16 anos, uma novidade nesse tipo de plano. Ele está, desde o início desta gestão, congelado naquela casa. Por que?
O mais interessante é que quando ouvimos as rádios, a TV, cansa o discurso de que "não se faz nada" a respeito e da "culpa" do Poder Público. É verdade, mas em termos. Por que ninguém lembra do Plano que está de molho na Câmara? Ninguém pede que ele seja votado ispis literis como foi enviado. A gestão mudou, os vereadores também, que façam os ajustes necessários. Mas por que o abandonaram? Por que a questão da moradia dos mais pobres não interessa a ninguém. Até que um prédio caia. Daí a questão vem à tona por alguns meses, até cair de novo no esquecimento geral. Hoje ouvi na CBN um comentarista conversando com a Fabíola Cidral: diziam o quanto era importante a reabilitação de prédios no centro, o quanto precisamos de uma política de locação social. Só evitaram dizer que tudo isso está lá, em um plano já realizado e pronto para ser discutido, votado e implementado. Mas quando irão falar disso? Nunca, no Brasil atual, vale tudo menos dar crédito a governos que não são os escolhidos pelos poderosos. Tudo menos valorizar soluções técnicas e potencialmente transformadoras, pois o que a mídia faz, em permanência, é campanha política.
Apesar de tudo que escrevi até aqui, a culpa, quando ocorre algum problema com esses prédios, é dos mais pobres. Ora, os movimentos de moradia ocupam prédios para confrontar-se aos proprietários que os deixam vazios e mostrar à sociedades que esses imóveis estão irregulares e não cumprem a função social. Na Inglaterra, na Holanda, na França, é comum que isso ocorra e em geral os juízes tentam imediatamente contatar os proprietários e estabelecer negociações para uma solução do problema, que não passa imediatamente pela expulsão dos ocupantes. A Prefeitura é geralmente responsabilizada por esses processos, mas se trata de uma negociação judicial entre proprietários e ocupantes. No Brasil, os juízes, como disse, mandam imediatamente desocupar, violentamente na maioria dos casos, com força policial. Ainda assim, o município pode participar, tentando mediar o conflito. Na nossa gestão, criamos um setor específico de negociação de conflitos imobiliários e fundiários, ligado diretamente ao Gabinete do Secretário de Habitação. Com isso, conseguimos chegar a acordos em que os movimentos ocupantes negociavam a compra do imóvel diretamente com os proprietários, colocando-o depois em um programa de financiamento como o Minha Casa MInha Vida, para sua reforma.
Os movimentos organizados, como o seu nome indica, são organizados: geralmente verificam a situação do prédio antes de ocupá-lo, quanto à sua segurança e viabilidade de reabilitação futura. Também se organizam para a cotização de mensalidades visando a manutenção, a limpeza e a segurança dos prédios. Nesse sentido, CONTRIBUEM para sua manutenção, mais do que o degrada, a degradação real ocorrendo quando ele fica vazio e abandonado.
Mas ocorre que, como em todos os lados, assim como na Câmara Federal, em qualquer condomínio de alta classe, ou em tantos lugares, pessoas de má-fé, aproveitadores, se misturam para fazer suas ações. Alguns se fazem passar por movimentos de moradia, criam uma sigla qualquer, e estabelecem uma ocupação que visa essencialmente extorquir imigrantes recém-chegados e muito vulneráveis, cobrando-lhes um aluguel alto para uma condição habitacional precária. Nesses casos, pouco se importam com a segurança, e muitas vezes usam o prédio como ponto de tráfico de drogas. Foi o que aconteceu, na nossa gestão, no Edifício Marrocos, cuja "liderança" foi posteriormente presa, com quilos de crack guardados no edifício.
Mas isso é uma minoria. O problema é que muitos gostam dessa história pois aproveitam, com isso, para criminalizar os movimentos, jogando tudo no mesmo saco. É como se ao se descobrir que um morador de um condomínio de luxo trafica drogas, todos os moradores fossem acusados também. A sanha da elite é tal que quando se fala nisso, manipula-se os argumentos para criar essa falsa verdade e culpabilizar os movimentos. Em janeiro de 2017 dei uma entrevista à Folha na qual explicava todas as questões levantadas neste artigo. A manchete, criada a partir de uma frase que eu não disse, foi algo do tipo: "Ex-Secretário de Haddad diz que o crime organizado está por trás das ocupações em todos o Brasil". Na sema a seguinte, usou-se essa minha "afirmação" para dizer que Boulos, preso em uma injusta reintegração de posse determinada por um juiz, era parte desses movimentos "criminosos". Ontem, após o incêndio, o filho do Bolsonaro usou a tática de sempre: mesclando letras dos movimentos envolvidos, saiu falando que o MTST, de Boulos, tinha ocupado o prédio que desabou. Fake News. Mas com efeito devastador na opinião pública.
Com isso, se quer "resolver" o problema dos pobres em prédios na região central pelo meio mais simples, e que mais agrada aos ricos e poderosos: sua expulsão. Pelo argumento do crime, que é falso, ou do risco, que também é falso. Como disse, a quase totalidade dos movimentos zela pelos prédios e por sua segurança, de forma organizada e disciplinada. Mas a desculpa higienista para tirar os pobres da cidade dos ricos não é nova, lembrem-se da Revolta da Vacina. O Ministério Público tende a querer fazer isso, e na Câmara Federal hoje mesmo já se tentava votar um Projeto de Lei dando mais liberdade para a expulsão com uso da força de ocupações. Como se isso resolvesse o problema. Não só não resolve, como piora, ao manter os prédios vazios, em vez de serem ocupados e mantidos por movimentos organizados. Isso até poderia ser transformado em política. Mas, a verdade é a seguinte: os ricos não querem ver pobres morando ao seu lado. Esse é o raioX doentio da sociedade brasileira.
A tragédia de anteontem foi grave, ainda mais porque escancara o problema maior que temos que encarar: que a nossa sociedade faz como quem não enxerga que cerca de 20 milhões de pessoas, no Brasil, não tenham onde viver decentemente. E ache que não é importante ter políticas para isso. Afinal, vê as favelas pelo vidro do carro, apenas quando viaja para o interior e o litoral. A falta de casas dos outros não afeta aqueles que a têm. Como em tudo no Brasil, a corda vai sendo esticada, até romper. O problema é que a culpa sempre é dos mais pobres, os bandidos sempre são os mais pobres, os irregulares sempre são os mais pobres, os vagabundos sempre são os mais pobres. Até quando?