Incêndio e ruína: é de um edifício que estamos falando?
/Por Caio Santo Amore
As trabalhadoras e trabalhadores paulistanos amanheceram com uma tragédia nesse 1º de maio de 2018. O edifício conhecido como Wilton Paes de Almeida, de propriedade federal, localizado no Largo do Paissandu, centro de São Paulo, que estava abandonado há vários anos e vinha sendo ocupado por famílias organizadas pelo MLSM (Movimento de Luta dos Sem Moradia) pegou fogo e ruiu durante a madrugada.
Nesse momento, há uma tendência perversa e generalizada de usar a desgraça alheia para encontrar culpados e para mobilizar nossos sentimentos punitivos. É comum que a grande mídia alimente essa tendência. Antes de tudo, portanto, toda a solidariedade e toda a nossa consternação com os amigos e amigas, companheiros e companheiras, familiares de pessoas que perderam suas vidas (ainda não se sabe quantas); toda a nossa solidariedade com as famílias que viviam lá e perderam seus bens, seus documentos.
É difícil adiantar as causas da ruína do edifício. As imagens e vídeos impressionam. Faltam levantamentos e análises cuidadosas para se fazer qualquer afirmação técnica. O caso é muito delicado e é difícil observá-lo apenas na aparência, sem puxar o fio de um novelo que, no fim, nos coloca a todos, como sociedade, como corresponsáveis pelo que ocorreu.
Para o senso comum, a mera aparência de abandono de um edifício – janelas quebradas, pichação, danos nos revestimentos externos, se estiver “feinho”, por assim dizer (como se referiu vergonhosamente o prefeito carioca à favela da Rocinha, que receberia algumas intervenções de melhorias em fachadas e padronização de esquadrias para agradar aos transeuntes do percurso Lagoa-Barra) – é associada ao risco de ruína ou desabamento. Se, além disso, estiver ocupado por pessoas pobres e vulneráveis, a associação é ainda mais direta.
É importante lembrar que a definição acadêmica de risco é a probabilidade de ocorrência de um acidente e essa probabilidade pode ser mais alta ou mais baixa, nunca nula, mesmo em locais considerados seguros, dependendo de uma avaliação complexa da situação e de medidas que possam mitigar tais acidentes e proteger as pessoas no caso extremo do acidente vir a ocorrer.
As ocupações de edifícios vazios na área central de São Paulo – bem como em outras metrópoles brasileiras – levam a leituras muito superficiais sobre “risco” e “precariedades”. São obviamente ocupações realizadas com adaptações das instalações elétricas e hidráulicas existentes, na maior parte das vezes sem elevadores, com materiais improvisados para a execução das divisórias dos cômodos; obviamente distantes das condições ideais de habitabilidade que caracterizariam as unidades produzidas regularmente pelo mercado ou pelas políticas públicas de habitação. As famílias que vivem nesses locais, numa provisoriedade que pode durar mais de uma década, estão sujeitas a diversas camadas de insegurança. Vão da possibilidade de sofrerem reintegrações de posse e terem que migrar de uma moradia para outra, levando todos os seus pertences ou abandonando-os, à falta de proteção se sua integridade física que pode chegar, como ocorreu, no limite da perda da própria vida. Muitas das ocupações procuram superar isso por meio de brigadas de manutenção e por meio de uma série de intervenções pontuais de melhorias: reformas paulatinas nas instalações, regularização de escadas, trocas de esquadrias, etc.
Além disso, os movimentos populares que organizam essas ocupações mantêm um controle bastante rígido dos comportamentos dos moradores, que não podem entrar na ocupação a partir de determinada hora, que não podem consumir álcool ou drogas, mesmo que seja em sua própria unidade, que devem evitar as brigas e desavenças familiares (que também ocorrem em todas as famílias “de bem”). São todas medidas concretas para se diminuírem os mais diversos riscos. Quem puder visitar a ocupação do edifício do INSS na Av. 9 de julho ou quem pode conhecer a organização do antigo Hotel Cambridge, que aguarda a contratação das reformas pelo programa Minha Casa Minha Vida – Entidades (ambas organizadas pela FLM – Frente de Luta pela Moradia), pode atestar com folga a capacidade que esses movimentos têm em transformar esses espaços em tão pouco tempo, em substituir entulhos de toda natureza, ratos, baratas e outros insetos por pessoas que podem organizar sua vida a partir da moradia – mesmo com toda essa nuvem de insegurança – em área bem localizada.
O edifício que ruiu nesse dia do trabalho tinha sido construído nos anos de 1960 e é considerado o primeiro edifício com fachada de vidro de São Paulo, tendo sido inclusive tombado pelo conselho de patrimônio da cidade. Lá funcionaram órgãos públicos, como a Polícia Federal, até que ficou abandonado e veio a ser ocupado pelo MLSM na presente década. A propriedade permanece sendo da União, ainda que a “guarda” estivesse com a prefeitura de São Paulo, que vinha realizando um cadastramento das famílias moradoras da ocupação para atendimento em programas públicos de moradia.
Ao longo de muitos anos houve algumas tentativas e propostas diversas de reformá-lo e dar ao edifício um uso regular. A reconversão para habitação parecia muito difícil e muito custosa, dadas as características da arquitetura original: edifícios de “planta livre” ou com pouca fachada, como ocorre com a maior parte dos edifícios projetados e construídos para abrigarem usos comerciais, requerem modificações estruturais que podem inviabilizar essas obras. Aventou-se a possibilidade de uso educacional ou de implantação de empresas de criação (start-up’s) que pudessem “movimentar” aquela região da área central de noite. A Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) avaliou que não teria recursos para a reforma, a prefeitura também acabou abrindo mão do projeto e o prédio permaneceu ali, cumprindo uma função social pela ação direta do movimento de moradia e das pessoas que ali estavam. Não faltaram “vontades políticas” (um termo bem genérico que ajuda a esconder as responsabilidades dos nossos governantes com a garantia de direitos básicos de cidadania para a maioria da população). O caso é tão complexo que nem mesmo uma conjunção das três esferas federativas seria capaz de resolver o assunto em curto prazo. E se não há caminho para as soluções “regulares”, “formais”, a necessidade de moradia se impõe e acaba submetendo pessoas e famílias que não têm opção, que não têm quase nada a perder, a viverem naquelas condições.
O incêndio, ainda sem causa definida, parece ter se iniciado dentro do edifício e se alastrou rapidamente, consumindo os materiais improvisados que definiam as divisórias e organizavam as unidades habitacionais – materiais combustíveis em sua maioria (madeiras, papelões, tecidos, colchões) – sem encontrar barreiras naquelas “plantas livres” dos pavimentos. Todas as hipóteses para o início de um incêndio são plausíveis e não são exclusivas de locais de moradia da população de baixa renda. Não são incomuns as notícias de incêndios em edifícios nos bairros de classe média alta, onde as compartimentações, os materiais de construção e mesmo equipamentos e medidas de proteção e combate ao incêndio impedem que o fogo se alastre e que o tempo a que a estrutura de aço ou concreto armado fica exposta ao calor comprometa a estabilidade da edificação. No caso de hoje, as fachadas envidraçadas também não se constituíam como barreiras para que as labaredas se propagassem de um pavimento para o outro. É bem provável que as altas temperaturas tenham afetado rapidamente os pilares metálicos da estrutura, o que levou o prédio à ruína. Se repararmos bem nas imagens, o desabamento ocorreu verticalmente, o que afasta, em princípio, a hipótese de recalques diferenciais da estrutura ou das fundações.
Já diante do fato consumado, os boatos não cessam: fala-se em uma briga de casal como causa da origem do fogo e sempre se levantam hipóteses sobre instalações elétricas inadequadas, sobre um bico de fogão, um botijão de gás ou uma vela acessa. Fala-se também que a estrutura estava comprometida, que o edifício estava se movimentando e que desabamento era iminente. Tudo é possível, diante de um controle precário de modificações que os moradores fazem por conta própria e sem um acompanhamento técnico adequado. Contudo, técnicos de órgãos públicos que fizeram há cerca de 4 anos algumas vistorias no edifício não tinham encontrado indícios de comprometimento estrutural.
De que adianta saber disso agora? São especulações que só podem nos levar, de maneira errada, a considerar que os moradores foram os algozes de si mesmos ou que os responsáveis são (todos) os movimentos de luta por moradia no centro da cidade, que realizam e mantêm ocupações muito bem sucedidas há muitos anos. Não será surpresa assistir a uma onda de reintegrações de posse nas ocupações, que podem agravar ainda mais a situação de moradia na área central. Afinal, são os movimentos que oferecem provavelmente a melhor alternativa, em meio a uma diversidade incrível de cortiços e pensões com preços de aluguel muito elevados, passando por equipamentos públicos de assistência social e por situações de rua. Aliás, foram esses movimentos, unidos, que deliberaram por acolher as famílias que estão desabrigadas nas ocupações próximas e vão montar barracas de arrecadação de alimentos, roupas e cobertores. Apresentam assim, mais uma vez, uma alternativa concreta à oferta padrão de vagas em albergues (chamados Centros de Acolhida) da prefeitura, que são frequentemente rechaçados mesmo pela população em situação de rua.
A tragédia deve servir para que todos nós possamos nos afetar enquanto seres humanos, conviventes desta mesma cidade, deste mesmo país e deste mesmo planeta que aquelas pessoas que perderam suas vidas, seus parentes e amigos, seus pertences. São situações bastante recorrentes. Quanto são causadas por chuvas intensas, enchentes, deslizamentos de terra, terremotos ou maremotos, a sociedade as classifica de “desastres naturais”. Vira-se a página rapidamente. O que fazer, quando um edifício de importância histórica, no coração da maior cidade do país desaba? Como justificar o descaso e a completa irracionalidade da existência de edifícios vazios ou sem utilização, diante de uma miríade de necessidades habitacionais? Parece que a ruína não é do edifício, mas do nosso próprio projeto de construção de uma nação onde o que ocorreu hoje seja humanamente inaceitável.
São Paulo, dia internacional do trabalho de 2018.
Caio Santo Amore é Arquiteto-Urbanista, Professor da FAUUSP e arquiteto da Assessoria Técnica Peabiru TCA.