Cidade do apartheid: reflexões sobre o Plano Diretor de São Paulo (um longo post para ler com calma)
/Já disse aqui que pessoalmente não acredito muito em planos diretores. Acabam envolvendo um enorme esforço de técnicos bem intencionados, a mobilização de milhares de munícipes, disputas acirradas entre vereadores, mas no fim resultam num compendio de regras urbanísticas que ninguém segue, ou se segue, o faz apenas nas partes que interessam aos setores que transformaram nossas cidades em um palco exclusivo de negócios. Pior, concordo com o urbanista Flávio Villaça, que diz que os PDs servem como cortina de fumaça para dar a impressão que as cidades são democraticamente planejadas, enquanto por trás, na prática, os mesmos setores dominantes fazem o que querem com ela.
Mas enfim, isto é passado, já que a revisão do plano de São Paulo está ai, enviada à Câmara. Então, temos que engrossar o esforço dos que se debruçarão sobre ele, para depois, provavelmente decepcionar-nos pelo esforço inútil.
1. A diretriz geral do plano
O prefeito Fernando Haddad privilegiou na sua proposta - feita com seriedade por técnicos que conheço e respeito - a questão do desequilíbrio entre os lugares de trabalho e residencia, e entre as atividades econômicas e o adensamento construtivo e populacional. Ao concentrar, ao longo da história, quase que exclusivamente os recursos, as infraestruturas, as atividades econômicas, no rico quadrante sudoeste (e gradativamente no centro expandido), a cidade criou um desequilíbrio estrutural, fazendo com que os que não podem viver nesse nobre quadrante que oferta a maioria dos empregos, tenha que se deslocar diariamente dos seus bairros, que se tornaram prioritariamente bairros dormitórios, com pouca variação de usos. Quanto mais pobre a pessoa, mais longe mora do trabalho, e mais longo e penoso seu deslocamento.
Por sobre esse problema, os investimentos prioritários, ao longo do século, para o automóvel, associados à decorrente falta de investimentos em transporte de massa, acabaram por colapsar a cidade para ambos, os usuários de carros e os do transporte público. Hoje, qualquer um que queira se deslocar em São paulo, seja de ônibus, de metrô ou de carro, sofre, embora o "sofrimento" dos de carro seja exagerado pela mídia, como mostrou Eduardo Vasconcellos neste artigo (clique aqui).
Por fim, uma liberalidade excessiva para com o mercado imobiliário ao longo da última década (que prova que os planos diretores servem para pouca coisa) fez com que os novos lançamentos imobiliários se concentrassem cada vez mais nos mesmos bairros de sempre, no centro expandido e no quadrante sudoeste, desfigurando o pouco que restava de bairros tradicionais, inflamando a bolha de valorização que a cidade vive, e aprofundando ainda mais essa concentração absurda de atividades e de dinheiro em um único setor da cidade.
Essa pendularidade exacerbada é de fato impossível de gerir, e se nada for feito, a cidade ruma para o colapso total, como eu já havia comentado anteriormente (clique aqui).
Esse foi o problema central identificado pelos autores da proposta do Plano Diretor. Para enfrentá-lo, propõem, em síntese, mecanismos que façam, primeiramente, com que a cidade se adense de maneira mais homogênea e dispersa pelo território, fora do centro expandido e do quadrante sudoeste e, sobretudo, que isso se faça ao longo das vias de transporte de massa, sendo o corredor de ônibus exclusivo e com faixa de ultrapassagem o modal escolhido para estruturar essa malha.
De certa forma, ao tentar promover com o Arco do Futuro o adensamento das áreas ainda pouco ocupadas (por galpões de grandes áreas comerciais) das orlas do rio Tietê, a prefeitura já prenunciava esse mesmo discurso. O de fazer com que a atividade "cidade" ocorra com todo seu potencial em outras áreas - no caso nas bordas do Tietê - do que as já saturadas e absurdamente privilegiadas do setor sudoeste e arredores.
Como a "receita" proposta é a de deslocalizar os lançamentos construtivos para novas polaridades e estruturá-los com os corredores de ônibus, para "preparar" o terreno dessa mudança de paradigma nos transportes, o prefeito vem corajosamente implantando faixas de ônibus nas principais avenidas, lançando um debate importante e polemizando com aqueles que, como o Estadão (leia aqui), teimam em não entender que, em algum momento, a transição de pelo menos boa parte dos 30% que usam carro para o transporte coletivo terá que se iniciar. O que os radicais do conforto do carro não entendem é que esse é um processo paulatino e gradual: ninguém quer que da noite para o dia o cidadão tenha que deixar seu carro e se ensardinhar em um ônibus lotado. A ideia é que á medida que as faixas e corredores se estabeleçam e se ampliem, e forem chegando perto das casas de uns e outros, a alternativa do ônibus rápido nessas vias, que seja um ou dois dias da semana, se torne viável. E, é claro, enquanto isso tudo se implanta, quem usa carro terá que aguentar, sim, mais congestionamentos. Não é novidade a reação agressiva de alguns usuários de carros e de setores identificados com os grandes lobbies de montadoras, isso já ocorreu, por exemplo, em Paris (ver nota [1] no fim). Mas com o tempo, todos se acostumarão.
A ideia da prefeitura com o Plano Diretor é que, com o tempo, a cidade se reorganize, adensando-se de maneira mais homogênea ao longo dos corredores existentes e dos que serão construídos, permitindo portanto a verticalização apenas nessas vias, e restringindo o limite construtivo nas áreas internas, entre os corredores. Lá, ficaria preservada o tecido urbano de gabarito mais baixo. Em suma, a prefeitura parece acreditar (mostrarei depois porque tenho dúvidas quanto a isso) que assim "canalizará" a dinâmica imobiliária para esses eixos, preservando o restante. Em um exemplo mais concreto, poderíamos dizer que, em vez de entrar destruindo um bairro inteiro como a Pompéia, no novo modelo o mercado construiria ao longo da avenida principal (a Pompéia, justamente), resguardando o casario antigo e característico que está por trás.
Se fizermos um desenho da "imagem" de cidade que está por trás disso, ficaria mais ou menos assim:
Vale entretanto observar que esse modelo não é propriamente inovador. Curitiba seguiu esse padrão de urbanização há décadas, e hoje apresenta um adensamento construtivo, com significativa verticalização, ao longo das avenidas estruturadoras com corredores de ônibus, e o restante com casario baixo, como mostra com muita clareza a foto abaixo (clique na foto para ver o link e autoria):
O ar "novo" que Haddad dizia trazer ganha algum pó ao propor um modelo que, de fato, nada de novo tem. Mas, resta a pergunta: apesar de já conhecido, ele funcionou? Em termos. Depende, obviamente do ponto de vista de quem. Do ponto de vista do marketing político-urbano curitibano, foi maravilhoso (Jaime Lerner que o diga), embora, com o tempo, a proposta dos corredores de ônibus, boa na época quanto à mobilidade, tenha sofrido pela falta de atualização e hoje esteja defasada e obsoleta. Do ponto de vista do mercado imobiliário também funcionou, embora este talvez desejasse poder verticalizar toda a cidade e não somente nos corredores. Do ponto de vista da classe média, que vive nesses corredores e nas áreas interstícias, também foi razoável, já que como todas as cidades brasileiras, Curitiba passou a receber importantes investimentos em equipamentos, parques e ciclovias, quase sempre localizados no setor de mais alta renda, que pode curtir uma vida agradável.
Mas então, essa é uma boa proposta, agradou a todos? O problema é esse, justamente. O "todos" não é exatamente "todo morador da cidade", como deveria ser o objetivo da política pública, mas sim "todos aqueles com dinheiro para poder morar na parte da cidade que funciona", como quer a lógica patrimonialista brasileira: como todos os planos urbanísticos brasileiros, esse modelo não foi capaz de DEMOCRATIZAR a cidade de Curitiba. Em outras palavras, os ricos continuaram nos bairros privilegiados e os pobres, bem longe dali. Os corredores expressos de ônibus, muito bem estruturados nessa parte da cidade, não evitam a baldeação nas extremidades do sistema para ônibus convencionais (com filas gigantescas), que levam a população da periferia para suas casas. Os bairros adensados ao longo dos corredores, em suma, continuaram sendo bairros exclusivos das classes médias e altas.
2. O verdadeiro problema é outro: reverter a lógica do apartheid urbano
Estamos então face à seguinte constatação: a lógica proposta pela prefeitura para o novo Plano Diretor identificou um problema importante, do desequilíbrio emprego-moradia e do adensamento exagerado sempre no quadrante mais endinheirado. Porém, esse não é o problema mais grave e urgente a ser enfrentado. O verdadeiro desafio, aquele que deveria ser enfrentando ANTES de mais nada, é o de reverter a lógica perversa da nossa urbanização, que relega invariavelmente e impiedosamente os mais pobres para o mais longe possível, no ato mesmo em que o espaço urbano se produz.
Sou comumente taxado de esquerdista, humanista, utópico ou termos assim lisonjeiros por bater com tanta obstinação sempre nessa mesma tecla. Olham com ar de compreensão e solidariedade cristã a minha boa intenção, mas com a certeza de que se formos falar "seriamente" isso tudo é muito bonito, mas não funciona. Como assim pretender que os mais pobres, aqueles infelizes que moram nas longínquas, cinzentas e violentas periferias possam, de uma hora para outra, morar com dignidade nos "nossos" bairros?
A lógica que sempre reaparece - magistralmente sintetizada na capa da Veja - é espantosamente semelhante àquela que alimentava, décadas atrás, o apartheid sul-africano: um preconceito generalizado, que assim como o racismo, se espalha sorrateiramente na forma de pensar, se naturaliza veladamente nos hábitos culturais, se enraíza nas expressões. Invariavelmente e por mais que pareçam ter intenções das mais democráticas, no fim das contas, as políticas urbanas não conseguem - ou não querem - quebrar essa lógica. Seja em governos de direita ou mesmo os que se dizem de esquerda, as tecnicidades que no fim moldam os planos urbanos eliminam, acachapam e reduzem à nada os poucos instrumentos que poderiam ter um caráter verdadeiramente transformador. A perversidade da coisa é que a segregação por meio da urbanização é tão acentuada no Brasil que não basta uma ou outra iniciativa, a aplicação de um ou outro instrumento, para resolvê-la. Seria necessário ELEGER O PROBLEMA DA SEGREGAÇÃO COMO O ÚNICO E MAIS URGENTE, e por isso aplicar de forma maciça e concentrada TODOS OS MEIOS possíveis para desconstruí-la. Como isso é tido como "impossível", pois, na verdade, em alguma hora toca na questão sagrada da propriedade da terra urbana, os governos "de esquerda" aprovam uma ZEIS aqui, um IPTU Progressivo ali, e com essas poucas iniciativas acreditam estar mudando alguma coisa e construindo sua imagem "de esquerda". É por isso que, passados 12 anos da aprovação do Estatuto da Cidade, nem São Paulo nem nenhum município brasileiro o aplicou, de forma sistêmica, integrada e completa. É por isso, aliás, que nada mudou até hoje nas nossas cidades. É por isso, também, que os planos diretores não servem para nada.
O problema é que, com o crescimento econômico, intensificam-se as atividades urbanas, sobre essa matriz doentia e arcaica. Uma matriz de apartheid social e urbano que não é compatível com o salto modernizador que a sociedade brasileira pretende dar. Estamos, então, no equilíbrio tênue entre optar por romper o paradigma da exclusão e construir enfim cidades democráticas ou deslizar de vez para a barbárie urbana, se é que já não o fizemos.
O Plano Diretor proposto pela Prefeitura e que agora vai para discussão na Câmara, portanto, não rompe paradigmas. Repete os procedimentos "pseudo-democráticos" de sempre. Aventura-se em falar, aqui e ali, de alguns instrumentos supostamente capazes, talvez, quem sabe, eventualmente e em determinadas condições futuras, de enfrentar a lógica do apartheid. Por isso ensejou a reação imediata, por meio de manifestos, dos urbanistas comprometidos com a justiça social, publicado aqui, e dos movimentos populares.
A maioria dos instrumentos do Estatuto da Cidade, que já estavam no PD anterior, continuam sendo genericamente citados e empurrados para a regulamentação de leis específicas posteriores (que provavelmente nunca ocorrerá: diga-se de passagem que, por esse método, o IPTU Progressivo, apresentado no PD de 2002, só foi regulamentado em lei específica em...2012). Não terá sido São Paulo, portanto, a primeira cidade a priorizar e tornar auto-aplicável, de forma inequívoca e precisa, já em seu PD, o Estatuto da Cidade. As ZEIS (Zonas Especiais de Interesse Social) sequer haviam sido demarcadas na proposta inicial, mas depois de muita insistência dos movimentos, foram mantidas e timidamente ampliadas, mas deixando tudo para ser realmente regulamentado na lei de zoneamento. O PD proposto estabelece a tal da "cota de solidariedade", esta sim instrumento potencialmente inovador e mais radical (leia aqui minha proposta a respeito), mas ela é, por assim dizer, uma intenção que se perde na diversidade dos cenários futuros: "quando" a prefeitura for fazer os novos corredores (ou seja, há tempo pela frente), terá que desapropriar terrenos para isso, e a parte dos fundos que sobrar (pois o corredor só "comerá" metade dos lotes), tornando-se pública, poderá servir para o uso habitacional, "entre outros usos institucionais". Está lá, mas é tímido, eventual, e seguro apenas para quem for mestre em futurologia. Além disso, o plano prevê que nos corredores haverá um complexo sistema de cálculo para limitar o tamanho dos apartamentos construídos a 100m². Como se, em uma cidade inflada pela bolha especulativa imobiliária e que está vendendo apertamentos de 70 m² por meio milhão de Reais, isso fosse garantia de "democratização".
No outro lado, no campo do mercado, ou seja, dos que fazem da cidade seu palco de negócios, a proposta do PD é em compensação bem mais apetitosa. Mesmo que restringindo a verticalização nos corredores, o mercado ganhou a garantia de poder continuar atuando na cidade pela lógica mercantil da outorga onerosa, apresentada como principal mecanismo para "forçar" o adensamento nos corredores. Na cidade toda o coeficiente básico é um (ou seja, pode-se construir, sem pagar nada à prefeitura, o equivalente ao tamanho do lote), sendo possível construir, pagando por isso, até coeficiente 2 (o dobro da área do lote) nas áreas que não são de corredores, e até 4 (quatro vezes o tamanho do lote) ao longo destes. Por uma lógica financeirista, criou-se uma regra de atacadão, para satisfazer o mercado: se o sujeito comprar muita outorga, o preço do m² a pagar vai diminuindo. A outorga onerosa, aliás, transformou-se na última gestão em um canal de corrupção, no auge do escândalo das aprovações. Ninguém sabia, ao assumir a prefeitura, quanto havia sido vendido nem para quem. Pelo visto, nunca se saberá, mas continua-se com a outorga como principal indutor/regulador da densificação pelo mercado.
Temos então um plano tímido e pouco incisivo no combate à lógica segregacionista, mas bastante liberal na regulação do mercado, mesmo que a prefeitura pretenda que isso "só" ocorre nos corredores, onde ela quer que haja adensamento (falaremos disso adiante). Mas, por que isso foi apresentado dessa forma, por parte de uma gestão considerada "de esquerda"? Porque o governo "joga" para os setores poderosos e endinheirados? Em termos: porque, sobretudo, o governo não é ainda capaz de enfrentar a força de lobby desses setores. E, na prática, em comparação com a pressão exercida a duras penas e geralmente criminalizada dos mais pobres por seu direito à cidade, a pressão do setor imobiliário se faz bem mais efetiva, pois consegue mais quem fala mais alto.
No governo, há uma diferença entre querer e poder, e é provável que os que pensaram o plano argumentem que fizeram o possível, dado o equilíbrio das forças políticas. Querer fazer política de esquerda no Brasil é muito diferente de poder fazê-la, e é inegável que, em outros campos, a prefeitura vem conseguindo êxitos. Nada é mais complexo do que governar no Brasil, ainda mais com boas intenções, face às pressões exercidas pelos setores conservadores defensores do status quo. Há um descompasso entre o discurso (que pode ser de boa fé, e portanto ingênuo) do que se "quer fazer" estando no governo, e aquilo no que essas políticas de fato resultam. No que Schwarz há muito tempo apontou como a lógica das ideias fora do lugar, nos argumentos, idealiza-se o "Estado" como se este fosse idêntico na sua natureza e na sua capacidade de agir "pelo público" ao Estado burguês do Bem Estar Social europeu, quando na prática as dinâmicas que de fato mediam a ação do Estado são o patrimonialismo, o favor, as liberalidades para os setores poderosos, o "esquecimento" dos mais pobres, a proteção à terra privada e a confusão permanente do "público" com o "privado". Mas a justeza da argumentação e a crença deslocada em instrumentos de política pública que não podem ser pois não são da natureza do nosso Estado, escondem com um clima de "esforço pela democratização" a manutenção do apartheid urbano. É ai, como aponta Villaça, que está o lado mais perverso do Plano Diretor, que leva na crença das suas "boas intenções" as esperanças de quem demais crê em seu imaginário poder verdadeiramente transformador.
Por isso, quando o prefeito anunciou, na defesa do plano, que com ele estava indicando "como será a cidade que queremos", penso que ele realmente acreditasse no "poder" do PD, e na ideia de que mexer com densidades em torno de corredores de transportes seria transformador. Acho que não havia o entendimento de que o problema real é outro. E que, no modelo proposto, como mostrarei adiante, arriscamos ter uma cidade adensada de forma um pouco mais equilibrada mas, ainda assim, uma cidade só para as classes médias e altas. Sempre é bom lembrar, porém, que há em SP cerca de 4 milhões de pessoas que não se enquadram nessa definição. E que cidades iremos propor para elas?
A ironia da coisa é que, na minha opinião, também expressa por Ermínia Maricato no Conselho da Cidade, as "jornadas de junho" haviam colocado em uma bandeja, para o prefeito, as condições políticas para enfrentar de vez a questão da urbanização segregadora. Havia "clima" político para enfrentar os interesses dominantes em nome de uma mobilização que clamava, justamente, por políticas mais "públicas". Para apresentar uma nova lógica de plano diretor, curta e radical, enfrentando o apartheid urbano e anunciando uma histórica virada nas prioridades das políticas urbanas para garantir lugar, nessa cidade dos corredores, também para os mais pobres, aqueles que historicamente estão fora dela. Propondo a "solidariedade urbana" como regra de partida, única e generalizada, por toda acidade, por exemplo. Propondo a desapropriação definitiva (aplicando inclusive a lei de dação em pagamento para os devedores de IPTU) de todos os prédios abandonados no centro para destiná-los a um parque de locação de habitações de interesse social, como sugeri aqui. Mas, talvez porque não tivesse plenas condições políticas para isso, o Prefeito não aproveitou a chance que a história lhe deu, pelo menos no campo do urbanismo, embora esteja até aproveitando a maré na questão dos transportes, o que já é muito importante.
É importante ressaltar que a defesa incondicional do fim do urbanismo do apartheid não é motivada APENAS porque sejamos esquerdistas, utópicos, humanistas, ou o que for. A questão é que ESSE MODELO DE CIDADE NÃO FUNCIONA, AINDA MENOS A LONGO PRAZO, E ESTÁ NOS LEVANDO PARA A IMPLOSÃO TOTAL.
Em algum momento, a panela de pressão estoura. Aliás, já estourou, pelo menos nas cidades maiores. Nas outras, como reproduzem sem pestanejar o modelo das grandes, é uma questão de tempo. Deslizamentos, enchentes, engarrafamentos, tiroteios em plena rua, nossas cidades são uma violência em si, e essa violência não é causada por alguém, é razão de ser. É a violência da poluição, dos atropelamentos, da falta de verde, dos serviços insuficientes, das tensões sociais, da falta de políticas sociais. É o resultado de mais de século de um modelo que invariavelmente segrega, expulsa e criminaliza parte da população, tensionando até romper o tecido social. Para resolver o problema, no âmbito pessoal, blindam-se carros, constroem-se muros e cercas eletrificadas, multiplicam-se os shoppings que substituem as ruas, sofisticam-se os clubes em que não entram pobres nem negros (exceto com avental de serviço doméstico). Para resolver o problema do ponto de vista da sociedade, promovem-se políticas que não radicalizam no enfrentamento da segregação social, e na prática permitem o status quo. A panela já estourou, e a saída não está apenas em arquitetar formas de reequilibrar, em uma visão técnica, os desequilíbrios de adensamento e de fluxos, mas passa, em uma visão política, pela necessária inclusão na cidade "que vale" da enorme parcela de excluídos.
3. O mito do adensamento e o modelo de cidade democrática
Embora ela esteja sendo vista com demasiado otimismo como uma solução para São Paulo, essa crença tecnicista no poder do "reequilíbrio das densidades" ao longo dos eixos de transporte de massa não é, mais uma vez, uma ideia nova. Ela foi, como de hábito, a argumentação motora na constituição das cidades industriais modernas, desde meados do século XIX, intensificando-se no Pós-Guerra europeu, no âmbito da implantação do Estado do Bem-Estar Social.
O arquiteto Walter Gropius, um dos ideólogos do movimento modernista, escrevia, já em 1931: "A moradia em casa térrea com jardim oferece mais calma e isolamento, permite descansar e exercitar-se em seu próprio jardim e tomar conta mais facilmente dos filhos, porém, enquanto habitação padronizada ela não é rentável, sua manutenção é cara, implica em longos trajetos e tona seus habitantes sedentários. O apartamento em prédio coletivo, por sua vez, garante trajetos curtos, instalações centralizadas de equipamentos e serviços, economizando tempo e dinheiro, e são estimulantes socialmente. (...) A construção térrea não é uma panaceia, sua consequência seria a desagregação e a negação da cidade" [2].
Embora aceitasse que as cidades tinham que compor-se de uma variação entre sobrados e edifícios, conforme a situação de cada parte do território, Gropius argumentava que os prédios mais elevados, "de uma altura racional de dez a doze andares" representavam a conformação ideal nas áreas "onde a taxa de utilização da terra é alta", ou seja, nas áreas bem servidas em infra-estrutura.
Com maiores ou menores variações, essa doutrina urbana iria ser aplicada na maioria das cidades Europeias. No embalo de economias keynesianas fortemente reguladas pelo Estado, era lógico que este também regulasse a produção do espaço urbano e a conformação das cidades. A lógica era só uma: para racionalizar os gastos públicos em infraestrutura, deve-se concentrar um máximo de pessoas - ou seja, adensar demograficamente - nas áreas em que essa infraestrutura estiver mais concentrada, incluindo-se aí o transporte público. Porém, isso não quer dizer que se permita construir sem limites nas áreas centrais. A densidade construtiva é regulada pelo Estado - limitando a altura a dez ou doze andares - para garantir insolação, ventilação, e uma boa relação entre a escala do pedestre e a dos prédios. Para isso, o Estado lança mão dos instrumentos urbanísticos, tais como o Código de Obras, as Leis de Zoneamento, etc. Quem quiser morar em casas térreas ajardinadas, irá fazê-lo mais longe, na periferia, onde poderá chegar de carro. É por isso que, via de regra, nas cidades europeias o centro é mais popular (mesmo com áreas mais nobres e outras menos), e é ocupado por blocos de prédios de quadra inteira, com uma altura sempre regulada em torno de dez andares. As periferias, em compensação, são mais chiques, e abrigam os bairros de sobrados e casas com jardins.
É claro que, como me lembrou uma leitora deste blog, não se deve desconsiderar, para cada cidade no mundo, as suas especificidades sociais, econômicas e culturais, que fazem com que cada caso seja um caso, e as comparações sempre um pouco forçadas. Mas, para o que nos interessa aqui, acho que podemos fazer uma comparação mais generalista, sobre grandes dinâmicas estruturadoras.
O site Metamorfose Digital apresenta incríveis vistas aéreas de diversas cidades do mundo. Nelas, percebe-se com clareza o que estou dizendo. Vejam, abaixo, os exemplos de Barcelona, Paris (avista-se ao longe o fim da área adensada) e Amsterdã (organizada ao longo de canais).
É muito comum ouvir por ai que São Paulo, evidentemente, não seguiu esse modelo, mas porque se espelhou no exemplo das cidades norte-americanas, estas sim adensadas e verticalizadas. Isso também não é verdade. A pátria dos arranha-céus também limita a verticalização exagerada, por meio da ação do Estado, e as cidades norte-americanas são, quase sempre, espraiadas, mas bem compactas nas áreas centrais, com prédios de oito a dez andares. Os arranha-céus de que tanto se fala se concentram em áreas bastante restritas, os chamados business districts, onde, ali sim, a altura é quase ilimitada. Como lá o modelo do transporte, como no Brasil, foi fortemente direcionado pelos interesses da indústria automobilística, as periferias norte-americanas, aquelas dos filmes, com as casinhas de madeira e o carro estacionado ao lado, são maiores e mais distantes, para além do centro adensado. Vejamos, por exemplo, sempre no mesmo site, os casos de Chicago e de Nova York. Nesta, excetuando Manhattan e o centro financeiro de Wall Street, em primeiro plano na foto, a média de alturas é, como se vê, homogênea e limitada.
Vejamos, agora, o que ocorre nos países subdesenvolvidos. O mercado imobiliário paulistano costuma dizer e repetir que a cidade não é adensada. Isso é relativo. Vejam uma cidade pobre do tamanho de São Paulo e que realmente não é adensada, pois segue um padrão de repetição de casinhas térreas a perder de vista, como a Cidade do México. Por conta da pouca verticalização, a cidade (chamado Distrito Federal) se espalha, e tem tamanho equivalente à toda a Região Metropolitana de São Paulo.:
É uma vista parecida com a de São Paulo, é verdade, mas somente na sua periferia, como mostra a foto abaixo (Foto acervo LabHab)
Agora, esse não é o padrão de São Paulo em seu centro e no centro expandido. Apesar do que costuma defender o mercado imobiliário, de que a cidade não é adensada construtivamente (na média, de fato não o é), a verdade é que onde for possível, o mercado avança. Uma imagem vale mais do que mil palavras:
Percebe-se claramente a infinidade de prédios, cuja altura mínima é de dez a doze andares, e hoje chegam aos 40, e que se espalham como que aleatoriamente pela cidade. Esse é o padrão brasileiro. Vejam, por exemplo, Belo Horizonte. A lógica é a mesma: verticalizar, verticalizar, verticalizar, em todo e qualquer lugar em que se consiga uma brecha da (pouco rígida) legislação:
Mas voltemos a São Paulo, agora em outra foto do mesmo site Metamorfose Digital, com um ângulo mais aberto, que permite ver além do centro expandido, inclusive a orla da Marginal Tietê, que o Arco do Futuro quer adensar. Percebe-se que ao Norte do Rio Tietê (em baixo na foto), a densidade é mais baixa, com um casario ainda predominantemente térreo. Para o Sul do rio, adentrando no centro expandido (para o alto da foto), fica claro o adensamento aparentemente aleatório da verticalização. Mas, é interessante observar que, no meio das extensões de prédios, aparecem sim grandes superfícies verdes. Seriam essas áreas que o mercado ainda insiste que pode adensar construindo mais? Então, o argumento modernista de Gropius ainda valeria para São Paulo, e justificaria o modelo apontado pelo Plano Diretor, de adensar ao longo de eixos de transporte?
A resposta a essa pergunta exige uma outra observação. A de que, na concepção dos pensadores modernistas europeus, o adensamento populacional e a compactação da cidade nas áreas com mais infraestrutura - em especial de transporte - visava abrigar O CONJUNTO DA POPULAÇÃO das cidades, a maioria da classe média e das classes populares, deixando-se para a periferia a implantação dos bairros-jardins dos mais abastados.
Pois bem, vejamos, agora, como ocorre historicamente a concentração de infraestrutura - sobretudo de transporte por automóvel - na cidade de São Paulo. Abaixo, o mapa mostra a estrutura viária primária e secundária (sobre base do Infurb-FAU), assim como as linhas de metrô. Concentram-se fortemente, como se observa com facilidade, na área circunscrita em vermelho: o famoso setor Sudoeste.
Ou seja, se fossemos aplicar, aqui, a lógica modernista exposta pro Gropius, teríamos hoje uma cidade em que toda essa área interna ao oval vermelho seria fortemente compactada, adensada populacionalmente, ocupada por prédios de quarteirão inteiro e de altura entre dez e doze andares. Uma cidade, racional, adensada e com infraestrutura, sobretudo a de transportes.
Mas, a nossa urbanização, como dito, nunca seguiu essa lógica. Aqui, tivemos uma urbanização segregadora e excludente em sua natureza. Ao invés de aplicar os preceitos modernistas de democratização, ela os INVERTEU. Ao invés de compactar o centro com mais infraestrutura, garantiu-se que neles se instalassem os ricos bairros-jardins. Aqueles mesmos que, nos ideias de Gropius, deveriam ficar lá na periferia. Vejam o mapa abaixo, com o mesmo oval em vermelho, e em amarelo, as Zonas Exclusivamente Residenciais - Z1, desenhadas no Pano Diretor de 1972:
Pois é. São os bairros jardins, os loteamentos da City, e assim por diante. Nessas áreas, a Lei não dizia que era para adensar, mas ao contrário exigia (e ainda exige) lotes de NO MÍNIMO 250 m² de área. Lotes para grandes casas unifamiliares, com jardins, aquelas que Gropius dizia não serem adequadas para uma cidade racional, pois causam "desagregação e negação da cidade".
Ou seja, o centro expandido da cidade de São Paulo, se tivesse sido produzido nos moldes da cidade racional compacta do estado do Bem Estar Social, seria assim:
Mas, pelas formas peculiares do nosso desenvolvimento, o centro expandido de São Paulo, em grande parte da sua área, ficou assim:
Os bairros ricos das grandes mansões - empreendidos ao longo do tempo pelas incorporadoras imobiliárias largamente protegidas pelo poder público, como a City - sequestraram a cidade para si, acapararam-se dela e ocuparam com seus grandes lotes justamente quase toda a área mais privilegiada por infraestrutura, travando a possibilidade de adensamento racional.
Aqui, os jardins não ficam longe nas periferias. Ficam, sim, no cento expandido com infraestrutura. Por isso a presença de grandes áreas verdes entre as manchas de prédios. Observe-se que, quando termina o território que a lei garantiu para as casas ajardinadas, começa o paredão dos prédios, mostrando que o mercado avançou sempre onde se lhe deu a brecha. Isso se vê claramente na foto abaixo, no Jardim América (que ilustra texto de Hugo Segawa, no site Vitruvius ), que mostra a linha divisória da Rua Estados Unidos e o começo da área "liberada" ao mercado. Nossa urbanização patrimonialista reservou para as classes dominantes e suas casas térreas, ao longo da história, as áreas mais bem servidas de infraestrutura.
E, vejam só que coisa incrível, justamente nesses bairros, como mostram os excelentes mapas produzidos pelos sociólogos Eduardo Rios e Juliana Riani , da UERJ, não há pobres (ou quase), assim como não há negros (ou quase). É a urbanização do Apartheid.
4. Adensar, adensar, adensar?
Os mapas acima mostram que, em essência, a discussão do adensamento democrático e racional da cidade de São Paulo já está comprometido, e isso desde a década de 1920. Adotar "verdadeiramente" o discurso do adensamento hoje em dia implicaria em ter que derrubar todos os bairros-jardins para, no lugar, construir milhares de prédios de dez andares, compactos e muito ocupados, por toda a população, inclusive a mais pobre.
Ora, as zonas exclusivamente residenciais são hoje tombadas, e muito protegidas, para a infelicidade do mercado imobiliário, que há muito tempo vem pressionando para transformar os bairros-jardins em paliteiros, e para a felicidade dos que ali moram (e o temor que têm de perdê-las para o mercado). Claro que, a estas alturas, não se deve pretender acabar com os bairros residenciais, e nem se deve culpabilizar quem, ao longo do tempo e de boa fé, teve a oportunidade de lá morar. Eu mesmo ou certamente qualquer leitor deste blog ficaria feliz se pudesse, algum dia, morar em um bairro-jardim. Eventualmente, a proposta de adensamento do Plano poderia, entretanto, recortar um pouco esses bairros em suas avenidas estruturais, por onde passam ônibus, e que geralmente já permitem a verticalização. Até ai, tudo bem. Mas quem garante que o mercado faria isso de forma adequada, produzindo um desenho urbano de qualidade? Mais do que isso, quem garante que esse adensamento seria de fato mais democrático?
Pois os exemplos que temos mostram que "adensar" em São Paulo não significa nem de longe ter boa qualidade urbana. Se na briga de poderosos, entre bairros-jardins e frentes imobiliárias, os primeiros conseguem ainda se salvar (mobilizam-se muito para isso), os mais fracos, em compensação, foram sacrificados. De fato, os bairros não tombados, ocupados por sobradinhos pequenos, como a Pompéia, a Lapa, a Moóca, Pinheiros, Santana, Tatuapé, etc., foram sendo reiteradamente e implacavelmente "devorados" e transfigurados pelo mercado que, sem planos, sem lógica, sem desenho, sem proteção dos espaços públicos, sem redimensionamento das ruas, sem regulação do Estado, segundo sua livre vontade (algumas vezes pagando altas propinas ao chefe geral de aprovações, como na gestão passada), vai alinhando prédios cada vez mais altos (e shoppings, dezenas e dezenas de shoppings) .
A coisa começa assim (em foto do acervo do Lab-Quapá/FAUUSP):
.....e acaba como em Moema (em montagem do Google Earth)
Então, a pergunta que fica é: como a proposta de um Plano Diretor que foca essencialmente no adensamento (ao longo dos corredores) pode garantir que esse impulso construtivo não se dê com a mesma lógica que fez o mercado ir ocupando passo a passo a cidade não protegida? Uma lógica de faroeste, de compra sob pressão e expulsão do antigos moradores (a história da Berrini, nos anos 80, é interessante de ser estudada), de ocupação rápida, verticalizada sem desenho prévio nem projeto urbano, resultando em bairros saturados, sem infraestrutura necessária para os novos empreendimentos.
O que a prefeitura quer é que o Plano Diretor canalize a atividade do mercado nessas regiões do centro expandido não tombadas, que já são seu objeto de desejo e de atuação "selvagem", porém tentando contê-lo ao longo dos eixos de transporte coletivo, os corredores de ônibus. Uma ideia aparentemente razoável, que se não garante de maneira nenhuma a democratização dessas áreas, ainda poderia gerar alguma melhoria no caos total que hoje presenciamos, em termos de desenho e ocupação da cidade, desconcentrando a dinâmica econômica dos bairros de sempre e melhorando o desequilíbrio pendular.
Mas essa proposta do PD parece trombar com algumas questões de urbanismo, bastante significativos, que entretanto não parece terem sido lembrados na sua elaboração.
A primeira questão é que APENAS PERMITIR O ADENSAMENTO CONSTRUTIVO NÃO GARANTE UM BOM DESENHO URBANO. Ou seja, coeficientes de aproveitamento altos e pagamento de outorga onerosa podem incentivar a construção , mas só isso. Pela cidade afora, vemos que o pipocar de prédios por si só não cria bons espaços urbanos, com calçadas largas, praças, etc. A Nova Faria Lima é uma boa prova disso. Um plano urbanístico deveria vir, como o nome indica, com diretrizes urbanísticas. Tudo bem, pretende-se deixar adensar. Mas como? Com que desenho? que calçadas? com praças? com recuos? com limites de altura para permitir a insolação e a ventilação?
Um concurso realizado em São Paulo na gestão Marta Suplicy, chamado "Bairro Novo", é um exemplo interessante dessa discussão. Ele se destinava a propor a urbanização de uma área ainda vazia, de um milhão de m², a apenas 3 km do centro, na Barra Funda.
Vejam que interessante. Os arquitetos vencedores, Euclides Oliveira, Carolina de Carvalho e Dante Furlan, diante do fato de que era uma área livre, e que portanto não havia sofrido a urbanização "patrimonialista" de bairros jardins, o que lhes permitia seguir um padrão inédito, propuseram justamente a solução preconizada por Gropius. Um bairro bastante denso populacionalmente, mas nem tanto construtivamente, com edifícios de altura regulada em cerca de dez andares, formando grandes blocos com espaços livres internos. A densidade, se não me engano, girava em torno de 600 hab/ha, para uma população total de cerca de 40 mil pessoas (clique aqui para ler a respeito no site Vitruvius).
Embora muito correta do ponto de vista do desenho, e mesmo que significando um adensamento populacional inédito, a proposta, entretanto, não resolvia a questão da democratização do acesso à cidade ou, no caso, a esse novo bairro. E, mais uma vez, nem tanto por culpa dos arquitetos, mas pela própria proposta da Prefeitura, que por trás de uma roupagem "democrática" no fundo promoveu uma urbanização "pelo mercado". Vejamos.
Para cerca de 40 mil pessoas, se fossemos sugerir que 25% dessa população pudesse ser de baixa renda (e não mais do que isso), teríamos de ter habitações sociais para cerca de 10 mil pessoas. Ou seja, em torno de 3 mil unidades habitacionais. O edital do concurso, entretanto, exigia.....600, ou menos algo em torno de 5,5% do total de habitações a produzir.
O resto da história é tipica da nossa urbanização: nada foi feito, o projeto abandonado na gestão seguinte, e o concurso acabou servindo para mostrar ao mercado todo o potencial da área. A mesma, que valorizou muitíssimo com tudo isso, foi posteriormente comprada por uma importante incorporadora, que ali lançou um dos maiores empreendimentos imobiliários de luxo da cidade, com 28 torres (clique aqui), aprovado recentemente pela mesma prefeitura que quer "mudar a lógica" com o PD. Com um lindo parque "de acesso público" (a ver), mas sem nenhuma previsão de habitações de interesse social, embora com a chegada dos novos e ricos habitantes, um enorme contingente de pessoas passará a trabalhar por ali, nos diversos serviços que irão surgir. Toda uma população que continuará vindo de longe, alimentando o desequilíbrio pendular de que tanto se fala.
Mas voltemos ao adensamento - sem projeto e desenho urbano - ao lingo dos corredores, no nosso PD atual. Claro que a prefeitura, na proposta do plano, diz que a questão da qualidade será considerado. Mas não basta. Diante da experiência prática de atuação do nosso mercado imobiliário, habituado ao laissez-faire, tudo isso já deveria vir desenhado no plano. A verdade é que, em uma cidade do tamanho de São Paulo, é impossível entrar em tal detalhamento em um plano geral. E aí chegamos a uma outra incongruência dos planos diretores: não é possível governar uma cidade de mais de dez milhões de habitantes sem descentralização administrativa, sem sub-prefeitos eleitos com poder político para fazer o planejamento local, sem conselhos legislativos na escala das subprefeituras, que em São Paulo chegam a ter mais de meio milhão de habitantes. É, simplesmente, impossível.
A segunda questão é que o termo "adensar" é um pouco impreciso, e pode se referir a várias coisas. Adensar por meio do incentivo de maiores coeficientes construtivos, como se propõe no plano, leva a um ADENSAMENTO CONSTRUTIVO, com muitos prédios levantados. O que não significa que seja também um ADENSAMENTO POPULACIONAL. Ou seja, construtoras podem transformar um bairro em uma enorme selva de pedra, mas nem por isso há garantias de que se obtenha o desejado adensamento populacional, se esses prédios não forem vendidos. A Av. Berrini, aliás, sofreu anos com taxas de vacância bem acima do desejado pelo mercado, levando vários empreendedores a dificuldades.
Vejamos, por exemplo, o distrito de Jardim Paulista, justamente aquele da foto mostrada anteriormente, que engloba a área densamente construída que vai da Rua Estados Unidos até a Av. Paulista. A montagem do Google mostra o nível de adensamento construtivo dessa área, com uma impressionante quantidade de prédios.
No mapa abaixo, do Censo IBGE de 2010, pode-se observar que apesar da grande quantidade de prédios, a densidade populacional (marrom escuro = mais denso) nem é tão significativa assim. A área correspondente à imagem Google não é predominantemente marrom escura, como seria de se esperar, mas apresenta densidades bastante modestas, em torno de 300 habitantes por hectare (as áreas amarelas, muito pouco densas, são a dos jardins tombados, exclusivamente residenciais, abaixo da rua Estados Unidos).
Por que isso acontece? Porque os apartamentos da região são enormes, e portanto absolutamente fora da lógica da "cidade compacta" defendida por Gropius. Mesmo verticalizados, são bairros exclusivos em que mora pouca gente, sem contar os imóveis vazios dado seu alto preço. É por isso que, quando se houve o mercado imobiliário defender a "necessidade de adensamento mais democrático", a frase soa, para quem conhece história, uma piada.
Vejamos, apenas como comparação, o distrito de Jd. São Luis, no Sul da cidade, em plena periferia pobre. Pois bem, muito embora lá a densidade construtiva seja reduzida, sem prédios mas com muitos barracos e casas precárias, as densidades populacionais são mais de três vezes superiores às dos jardins. Favelas, mesmo sem muita verticalização, são sempre muito densas populacionalmente (as áreas grandes em amarelo correspondem à represa, englobadas no setor censitário do IBGE, muito embora ninguém, ainda, more na água).
Ou seja, mais uma vez, se não houver forte regulação estatal (que não foi devidamente dimensionada no PD), o que vai determinar a maior ocupação populacional serão as regras econômicas de mercado, de formação de preços e de oferta e demanda, e não o fato da área ser ou não mais densamente construída.
Dai decorre a última questão a levantar sobre "a cidade que teremos graças ao Plano Diretor" (com a devida ironia): adensar ao longo de corredores de ônibus pode ser ótimo, mas se isso for feito somente na base de coeficientes construtivos e de incentivo ao mercado, NADA, ABSOLUTAMENTE NADA, GARANTE QUE NO FIM NÃO TENHAMOS, APENAS, A PRODUÇÃO DE CORREDORES CHEIOS DE PRÉDIOS DE CLASSE MÉDIA ALTA.
Pois se adensarem os corredores, os empreendedores evidentemente vão querer lucrar com isso, já que esse é o seu papel. Em outras palavras, quanto mais caro venderem seus apartamentos ao longo dos corredores, mais elitizados serão esses eixos. E entre eles, nada permite supor que as casinhas que se mantiverem "protegidas" com seus quintais, não irão obviamente valorizar também. São Paulo teve um aumento dos preços imobiliários de cerca de 150% em poucos anos. Vive-se uma bolha especulativa intensa. Paga-se aqui por um apertamento o que se pagaria em paris ou Nova York. Por que, sendo minimamente racionais, deveríamos acreditar que nos corredores adensados isso não será assim? Ainda mais que, anunciadas a construção de novos corredores, os preços ao longo das vias imediatamente subirão. Isso, aliás, já quase inviabiliza a própria proposta de novos corredores, pois as desapropriações ficarão caras demais para a prefeitura.
Ou seja, adensar demograficamente é uma coisa, PORÉM É NECESSÁRIO TAMBÉM DEFINIR QUEM É A POPULAÇÃO QUE ESTÁ ADENSANDO. Não tem por onde: para se romper com o padrão do apartheid urbano, deve-se promover o adensamento democrático. Com lugar para todos, dos mais pobres aos mais ricos (se os últimos não quiserem, aí sim podem ir morar longe, de carro, nos alphavilles). Embora com alguma melhoria na distribuição das atividades e dos fluxos pela cidade, no que se propõe agora, AINDA TEREMOS UMA CIDADE SEGREGADORA. Os pobres continuarão de fora. A cidade do Apartheid se mantém. Ou seja, voltamos ao começo.
Uma das "soluções" propostas no Plano é a de limitar, por um complexo sistema de cálculo de quotas, o tamanho dos apartamentos a 100 m², forçando maior adensamento populacional. De fato, isso pode funcionar quanto à garantir que pelo menos esses corredores tenham maior densidade populacional (desde que os imóveis sejam, vendidos, é claro). Porém, tal limitação, evidentemente, não representa nenhuma garantia de democratização. Ou seja, de que QUEM vai morar ali também possa ser a população mais pobre. Pois a concentração da riqueza em São Paulo é tanta, que apartamentos de 70 ou 100 m² podem ser facilmente vendidos por preços em torno de meio milhão de Reais. Estamos bem longe, como se vê, de beneficiar a população mais pobre.
Então, como fazer? É possível promover a dinâmica urbana de adensamento que a prefeitura quer nesse plano rompendo, ao mesmo tempo, com a lógica do apartheid? Seria, se ela tivesse, como dito no começo, colocado essa questão em PRIMEIRO plano, e não de forma evasiva. Se a Lei da Solidariedade Urbana tivesse sido proposta (e detalhada, não jogada para uma futura e imponderável regulamentação) JUNTAMENTE com a do adensamento dos corredores, estaria garantido que para qualquer empreendimento nos corredores a produção de habitação social em proporções minimamente significativas ocorreria. Se houvesse a delimitação PRECISA de quantidades de ZEIS a serem implantadas em cada corredor, a prefeitura poderia forçar a produção de habitação social. Se houvesse uma diretriz clara e auto-aplicável de desapropriação de prédios vazios há mais de 5 anos nas áreas de entrono de corredores, a prefeitura poderia fazer estoque de terra e de prédios para destinar à habitação social. Enfim, o mais difícil, deveria haver uma proposta efetiva de controle fundiário pela prefeitura. Ou seja, mexer na sagrada propriedade da terra.
Enfim, SE HOUVESSE UM CONJUNTO PRIORITÁRIO E CLARO DE MEDIDAS JÁ DEFINIDAS DE GARANTIA DE RESERVA DE ÁREAS PARA HABITAÇÃO SOCIAL NESSES CORREDORES, a "cara" do plano, e da cidade que com ele se pretende, seria de fato outra. As "cotas de solidariedade" definidas nos terrenos a serem despropriados para a passagem de novos corredores é uma proposta interessante, como já dito, mas sem ser melhor definida, tornou-se uma conjectura. Nem mesmo está dito que esses pedaços de terrenos virtuais devem ir prioritariamente para habitações sociais. Pode-se, por exemplo, usar-los para praças públicas ou outros equipamentos, que darão "cara" de democracia mas servirão, de fato, a valorizar ainda mais os bairros de classe média que se formarão.
Vale lembrar, aliás, que a proposta "inovadora" do Arco do Tietê e os projetos já apresentados, padecem do mesmo mal: nenhum enfrenta, de fato, a questão central, do apartheid urbano. As habitações populares aparecem sempre como "medida necessária", desde que em pequeno número e sem atrapalhar a dinâmica econômica "que conta". Não custa lembrar, estamos falando de quase 4 milhões de pessoas a serem integradas à cidade. Qualquer proposta que não considere pelo menos metade da produção imobiliária prevista para essa população estará, de fato, sendo apenas reprodutora do status quo segregador.
Chegamos ao fim desta longa postagem. Pessoalmente, acho que ela não servirá para muita coisa, assim como o Plano Diretor. No fim, propostas muito complexas se engavetam, pois não servem aos propósitos imediatistas e bem mais objetivos do mercado da construção. Talvez tenhamos sim alguns corredores. Talvez parte deles venha a ostentar, em alguns anos, uma fileira de prédios altos. Talvez isso facilite um pouco a vida de parte dos paulistanos, que não precisarão tanto dos seus carros e poderão usar ônibus.
Já será um grande avanço. Mas não terá sido desta vez que a cidade de São Paulo terá mostrado ao país que chegou a hora de radicalizar na democratização urbana e na inclusão democrática e cidadã dos pobres. Esperando que enquanto isso ela não continue para sempre na sua (nem tão) lenta mas segura trajetória rumo à implosão social.
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NOTAS
[1]. Bertrand Delanoë, popular prefeito de Paris, enfrentou oposições semelhantes às que se vê em São Paulo, quando nos início dos anos 2000 propôs fazer corredores de ônibus por toda a cidade, mesmo que em duplicação à já fenomenal rede de metrô e, em um segundo momento, quando encampou a implementação da bicicleta como modal de transporte efetivo na cidade. Lá, as bikes compartilham os corredores de ônibus (não ouso imaginar o que daria isso aqui) e usam faixas nas ruas na contramão dos carros. Hoje, ambas as medias são extremamente populares e ajudaram a transformar ainda mais o padrão de mobilidade daquela cidade (que, apesar do metrô, tinha e ainda tem congestionamentos significativos).
[2]. GROPIUS, Walter. Construction horizontale, verticale ou de hauteur intermédiaire, 1931 in Architecture et société, Paris: Éditions du Linteau, 1995.